Sanitarista analisa os impactos da decisão sobre o rol taxativo para os usuários e a judicialização da saúde
As empresas de planos de saúde estavam obrigadas a oferecer, no mínimo, aquilo que estava descrito no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mas, agora, elas se tornam livres para ofertar, no máximo, aquilo que é descrito. Na prática, essa mudança de um rol mínimo para máximo é como o sanitarista José Sestelo avalia a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que desobriga as empresas operadoras de saúde a cobrirem procedimentos e tratamentos que estejam fora da lista estabelecida pela ANS. Saiba mais na entrevista que ele concedeu à repórter da revista Radis, Lisiane Morosini.
Se antes as empresas de planos de saúde estavam obrigadas a oferecer, no mínimo, aquilo que estava descrito no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), agora elas se tornam livres para ofertar, no máximo, aquilo que é descrito. Na prática, essa mudança de um rol mínimo para máximo é como o sanitarista José Sestelo avalia a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que desobriga as empresas operadoras de saúde a cobrirem procedimentos e tratamentos que estejam fora da lista estabelecida pela ANS, chamada de rol taxativo. Com a decisão do STJ, caiu por terra o entendimento anterior de que o rol da ANS era exemplificativo, o que abria a possibilidade de o usuário, a pedido médico, incluir novas terapias, exames e medicamentos não previstos nesta lista. Caso a operadora negasse algum procedimento, por exemplo, o beneficiário tentava obter essa cobertura pela via judicial.
Segundo Sestelo, a nova interpretação torna o caminho muito mais difícil para os usuários. Em entrevista à Radis, ele afirmou que a decisão é um indício da força do lobby empresarial na sociedade e no meio jurídico. “Ela é favorável às empresas. Elas passam a ter o entendimento de que, liminarmente, essas pessoas [beneficiários] não têm direito [a outras coberturas]. Podem recorrer, mas a tendência é que não consigam um resultado judicial favorável”, afirmou o pesquisador, que integra o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e representa a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) na Comissão de Saúde Suplementar do Conselho Nacional de Saúde (CISS/CNS). Para ele, é enganoso pensar que a medida vai diminuir a judicialização. “Pelo contrário, vai aumentar. A judicialização é um indício muito forte de mau funcionamento do nosso sistema de saúde”, observou.
Como você avalia a decisão do STJ sobre o rol taxativo?
Esse debate não é uma novidade, mas um capítulo novo dentro de um quadro que já existia que é a judicialização de questões de saúde. Entendo que a judicialização é um indício muito forte de mau funcionamento do nosso sistema de saúde. O ideal seria que esse tipo de questão não fosse parar nos tribunais, que a gente tivesse um sistema de saúde com um nível de organização em que a controvérsia sobre incorporação de tecnologias e procedimentos obedecesse a uma lógica diferente da lógica judicial. Veja o caso da Colômbia, onde o sistema de saúde é altamente judicializado. O financiamento é público, mas os prestadores e intermediários são empresas privadas. A oferta é dividida em pacotes, de acordo com a capacidade de pagamento dos usuários, com pacotes mais amplos e limitados. Essa segmentação sempre gera exclusões de cobertura. E, no caso da Colômbia, gera recursos judiciais. As pessoas tentam superar as barreiras impostas pelo sistema. No nosso caso, é como se a gente estivesse enveredando nessa direção, o que não é nada bom.
Qual o impacto prático do rol taxativo?
O STJ validou a execução do rol taxativo, com exceções, e não um rol exemplificativo. Essa é uma decisão favorável às empresas de intermediação [de serviços]. Um indício também da força do lobby empresarial na sociedade em geral e no meio jurídico em particular. Nós temos o caso de pessoas com condições crônicas, pessoas autistas, com síndrome de Down, que são liminarmente excluídas. É como se a controvérsia fosse resolvida de antemão. A decisão facilita a vida das empresas que passam a entender que liminarmente essas pessoas não têm direito. Elas podem recorrer, mas a tendência é que não consigam um resultado judicial favorável.
O poder de negociação dos beneficiários fica ainda mais reduzido?
Sim. As empresas passam a ter mais facilidade para negar coberturas e procedimentos. Ao contrário do que está sendo dito, isso não vai diminuir, mas aumentar a judicialização. Porque as pessoas vão continuar recorrendo. Eu entendo que a discussão não está encerrada e que o caminho judicial é o último que nos resta. O ideal seria que a gente pudesse promover uma mudança estrutural no sistema e que isso fosse feito não pela via judicial, mas por meio de mecanismos de regulação que fossem universais, efetivos, democráticos, tanto com relação ao que é ou não incorporado como com relação a preços.
O que a decisão do STJ sinaliza para um país que tem um sistema público de saúde, como o SUS?
Acredito que ela destaque o quanto nós estamos mal. Entendo que, quando o assunto vira matéria para juízes, é porque não conseguimos nos organizar de forma que ele fosse resolvido pela burocracia do Ministério da Saúde. A Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde], que seria uma instância de avaliação e incorporação de novas tecnologias, deveria ter o seu trabalho reconhecido de forma universal em todo o sistema de saúde, não apenas no SUS especificamente. Nunca foi assim. E a Conitec ultimamente esteve envolvida no caso da cloroquina. Ela se tornou uma instância de regulação muito suspeita, infelizmente.
Qual a diferença entre o rol mínimo e o máximo?
Havia uma controvérsia se o rol era exemplificativo ou taxativo. Havia uma interpretação mais restritiva por parte das empresas que sempre defenderam que ele fosse taxativo, ou seja, que as pessoas tivessem acesso exclusivamente ao que estava previsto ali e nada mais. Originalmente, a própria ANS denominava esse rol como um rol mínimo, significando que as empresas estavam obrigadas a oferecer, no mínimo, aquilo que está descrito no rol. Obviamente que elas podiam oferecer mais, mas não podiam oferecer menos. Com essa nova interpretação, o rol se tornou um rol máximo. As empresas são obrigadas a oferecer, no máximo, aquilo que está no rol. Quem se sentir prejudicado poderá eventualmente ser contemplado em casos excepcionais a critério da autoridade judicial. Agora, a probabilidade de ser atendido é menor. Até então, havia jurisprudência informal.
O que leva à judicialização em saúde?
As empresas, de rotina, negavam a cobertura principalmente de procedimentos de internação hospitalar, os mais variados, não apenas com relação a condições crônicas ou cirurgias eletivas. Pode-se dizer que esse expediente era juridicamente questionável, mas praticado quase que rotineiramente pelas empresas. Quando havia uma negação, o cliente poderia entrar na Justiça e tinha grande chance de conseguir uma decisão favorável porque havia um entendimento no Judiciário que favorecia o usuário. Com a nova interpretação do STJ, a situação se inverte. Há pouca probabilidade de o usuário recorrer à Justiça e conseguir reverter uma negação de cobertura, se ela não estiver claramente prevista no rol e contemplada nas exceções descritas nos votos dos ministros. As chances são mínimas.
Por que é importante lutar pelo rol exemplificativo?
Há diversos procedimentos que podem ser indicados de forma precoce. A chance de produzirem resultados positivos aumenta quanto mais precocemente forem introduzidos no desenvolvimento de uma criança. O simples fato de adiar o acesso a esses procedimentos que poderiam atenuar ou dar uma condição mais favorável já cria, em si, uma condição pior para a vida futura de crianças e jovens que se tornarão adultos com mais limitações. Em termos percentuais, não é uma quantidade grande de indivíduos. A questão não é essa, mas que tipo de sociedade nós queremos ser. Não é aceitável do ponto de vista ético e sanitário tratar as pessoas com deficiência ou com condições crônicas de saúde como um estorvo, como pessoas que tem que se virar. O Brasil é um país de renda média, industrializado, razoavelmente urbanizado e acho que a gente aos trancos e barrancos conseguiu alguns avanços oferecendo apoio e suporte a pessoas com diversos tipos de deficiência. Quando o setor empresarial, e mesmo algumas categorias profissionais, comemoram um aumento no nível de exclusão, entendo como algo que vai na contramão do que a gente gostaria para o nosso país. Por isso é possível e desejável que essa decisão seja revertida.
#RolTaxativoMata
A campanha #RolTaxativoMata ganhou as redes sociais e, diante da pressão exercida por ativistas e organizações especialmente ligadas ao Transtorno do Espectro Autista (TEA), a ANS recuou e ampliou (23/6) a cobertura de tratamentos indicados por médico com transtornos globais do desenvolvimento [CID F84]. De acordo com o Uol (24/6), a partir de 1º de julho, serão obrigatórios tratamentos ilimitados para autismo infantil e atípico, transtorno desintegrativo da infância (psicose), síndrome de Rett e síndrome de Asperger, entre outros. Nas redes sociais, o Instituto Lagarta Vira Pupa, que defende os direitos de pessoas com deficiência, considerou um “avanço para muitas famílias” e salientou que a luta é pelo “rol exemplificativo, que ofereça tratamentos e procedimentos adequados para todos, sem exceções deste ou daquele”.
Radis



