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Comunidade LGBTQIA+ sofre com dificuldades de acesso aos serviços de saúde

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Publicado em:29/06/2022
Por Danielle Monteiro

Comemorado em 28 de junho, o Dia Internacional do Orgulho Gay foi criado com o objetivo de alertar sobre a importância do combate à homofobia e da construção de uma sociedade livre de preconceitos de gênero e orientação sexual. Apesar das conquistas, a comunidade LGBTQIA+ ainda tem um longo caminho a percorrer na luta pela garantia de seus direitos, especialmente quando o assunto é acesso aos serviços de saúde. 

Uma recente pesquisa liderada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) trouxe à tona o que diversos outros estudos já revelavam: a comunidade LGBTQIA+ tem maior dificuldade de acesso ao atendimento à saúde, em comparação com o restante da população. O estudo, que ouviu 6.693 pessoas acima de 50 anos, das quais 1.332 foram identificadas como LGBTQIA+, concluiu que ter mais de 50 anos e pertencer aquele grupo no Brasil reduz a chance de um bom atendimento à saúde. A desigualdade também foi observada no índice de depressão (37% em LGBTQIA+ e 28% em não-LGBTQIA+) e de exames de prevenção, como câncer de mama, câncer de cólon e câncer de colo uterino. 

Deficiente visual, a consultora em diversidade e ativista pelos direitos humanos Walleria Suri é uma entre várias mulheres trans que frequentemente esbarram em dificuldades quando chegam ao serviço de saúde. “A não ser que sejam centros muito especializados nesse segmento, no geral as unidades de saúde não estão preparadas. As pessoas não sabem me conduzir, me atender, acham que temos que ter sempre um acompanhante. Quanto à questão da identidade trans, é pior ainda. Tem pouquíssimos lugares no Brasil preparados para receber essa população, tanto no quesito ambulatorial, quanto no cirúrgico”, desabafa.



Estigma, invisibilidade no atendimento ginecológico e negação de nome social

Segundo a pesquisadora e coordenadora do curso de especialização em Gênero e Sexualidade do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural (Dihs/ENSP), Angélica Baptista, cada letrinha do acrônimo LGBTQIA+ é um universo e enfrenta vários e diferenciados problemas no atendimento à saúde, tanto no sistema público quanto no privado. 

As mulheres cisgênero lésbicas, por exemplo, frequentemente esbarram na chamada lesbofobia ginecológica. “As questões de saúde da mulher cisgênero são muito voltadas para o aspecto reprodutivo. Sendo assim, a gestão dos riscos e agravos de saúde também é pautada por isso. Nesse sentido, muitas ginecologistas negligenciam a saúde da mulher lésbica, simplesmente porque elas não têm relações sexuais com homens, deixando de solicitar preventivos e outros exames, e fazendo uma anamnese (histórico de todos os sintomas narrados pelo paciente sobre determinado caso clínico) que não contempla suas práticas sexuais, como se elas não estivessem sujeitas a adquirir doenças sexualmente transmissíveis”, explica Angélica.

O psicólogo clínico e ex-aluno do curso de especialização em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos do Dihs/ENSP, Vladimir Bezerra, explica que, historicamente, as políticas públicas de saúde foram desenhadas e pensadas sem considerar as especificidades da comunidade LGBTQIA+, gerando, como consequências, estigma e falta de acesso equânime às oportunidades sociais, que perpetuam em um tratamento excludente e de anulação de direitos essenciais. “Nesse sentido, podemos citar o caso das pessoas trans, que têm, constantemente, o direito ao uso do nome social negado em diversos serviços. Tal dificuldade acaba por segregar e desmotivar muitas pessoas a exercer seus direitos como cidadãos. Especificamente nos serviços de saúde, temos diversas violações: desde o não tratamento pelo nome social, até mesmo discriminação racial associada à discriminação por gênero e expressões de gênero. É uma questão estrutural bastante densa porque envolve aspectos políticos, sociais e econômicos também”, observa.

Outra barreira enfrentada especialmente por mulheres trans está na realização de exames clínicos de rotina, como o exame de próstata, e no acompanhamento da terapia hormonal. “Há um desconhecimento, pouca literatura e evidência, e poucos profissionais que conhecem a questão da terapia hormonal mais profundamente. Há muitos experimentos entre a comunidade, e a medicina precisa se aproximar disso para manter a saúde das pessoas que optaram por fazer a transição de gênero”, alerta Angélica. “Homens trans, que querem ser mães, e que entram em uma gravidez, também sofrem um estigma muito grande em todos os serviços ginecológicos, desde o pré-natal até o próprio auxílio à amamentação”, complementa a pesquisadora. 

Vladimir acredita que, dentro da comunidade LGBTQIA+, as pessoas trans são as que talvez mais sofrem preconceito e violências sistemáticas pela sociedade, devido ao desconhecimento do que é ser trans e à educação machista, de base heterossexual e binária, que considera homens e mulheres não determinados apenas pelo sexo biológico. Educação esta que, segundo ele, perpetua preconceito e violência. “É preciso entender que a sexualidade é um campo muito mais diverso e complexo do que o sexo biológico em si. A sexualidade é uma construção social, forjada pelo sujeito de modo muito particular e que merece a atenção e o entendimento dos profissionais de saúde e de toda a estrutura ao redor”, defende. Para o psicólogo, sexualidade "é ter em mente que não se 'nasce' homem ou mulher, mas faz-se homem e mulher ao longo do desenvolvimento humano". É possível ser o que se deseja ser, segundo ele. "É comum, hoje no consultório, receber pessoas dispostas a transicionar de gênero, inclusive em uma fase adulta mais avançada", conta.

Adolescentes LGBTQIA+, que expõem sua orientação sexual ou identidade de gênero, também não escapam das dificuldades no acesso aos serviços de saúde. Expostos ao preconceito e à discriminação, conforme revela estudo publicado na Revista Gênero, realizado no Ceará, eles enfrentam, como barreira, a exigência da presença de um parente no ato da consulta. Por conta do estigma, muitos perderam laços com seus familiares. “Os graus de violência incluem desde manifestações ofensivas contra suas identidades e expressões até agressões físicas. Em alguns casos, muitos são expulsos de casa, perdem acesso a direitos básicos e precisam recorrer a diversos meios de sobrevivência. No acesso à saúde, da mesma forma, eles não encontram acolhimento para suas questões, dificultando ainda mais um acompanhamento efetivo de seus problemas”, explica Vladimir.

Para Angélica, quando o assunto é acesso de adolescentes LGBTQIA+ aos serviços de saúde, a transição hormonal e a saúde dos intersexos são temas que merecem especial atenção. “Essa última é uma questão bastante complicada e controversa porque, se eles nascem com os dois órgãos sexuais, existe um protocolo para isso. Até o primeiro ano de idade do bebê, são os pais que escolhem o sexo. E isso traz uma confusão, que tem fundo biológico, para a vida toda da pessoa”, atenta. Adolescentes lésbicas também enfrentam barreiras, conforme relata a pesquisadora, pois elas têm receio de falar com um profissional de saúde sobre a orientação sexual e, com isso, diagnósticos importantes são deixados de lado, os quais poderiam ser feitos já na adolescência. 


Conquistas na redução das desigualdades na saúde

É fato que o caminho para a igualdade na saúde ainda é longo para a comunidade LGBTQIA+. Mas, nesse percurso, há importantes e recentes conquistas a serem celebradas, segundo os pesquisadores. Recentemente a transsexualidade saiu da categoria de transtornos mentais, conforme constava da 10ª Classificação Internacional de Doenças (CID 10). Além disso, está em discussão, pela International Organization for Standardization, uma norma que aumenta o espectro da orientação sexual e identidade de gênero por países, de acordo com nomenclaturas culturais e territoriais. “Outra conquista é a política de cotas para a comunidade LGBTQIA+ em universidades privadas e públicas. O lugar de fala das pessoas trans na academia está aumentando. Existem ótimos cientistas e pesquisadores, que são pessoas trans e falam por elas, contam sua história de vida, fazendo pesquisas com a comunidade. Elas não precisam de um porta-voz”, exemplifica Angélica.

Para Vladimir, outro avanço na luta da comunidade LGBTQIA+ pela igualdade de acesso à saúde foi a mudança nos protocolos de atendimento, frutos das gestões federais entre 2003 e 2016: “Um olhar mais progressista estimulou pesquisas na área do HIV/Aids e IST's e modificações nos protocolos de prevenção etc. Ainda assim, os desafios se apresentam diante da ascensão de um pensamento conservador. É preciso, como profissional de saúde, estar atento”. Na lista de conquistas, ele também cita o Programa Brasil Sem Homofobia, o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, o Programa Nacional de Direitos Humanos e a Política Nacional de Saúde Integral de LGBTIS.

Políticas públicas para a redução de desigualdades na saúde

Os pesquisadores acreditam que a solução para reduzir as desigualdades no acesso aos serviços de saúde pela comunidade LGBTQIA+ está nas políticas públicas. “A Política Nacional de Saúde Integral das Lésbicas, Gays, bissexuais, Travestis e Transsexuais, do Ministério da Saúde, precisa efetivamente ser colocada em prática. Temos vários estados da Federação que não possuem os conselhos previstos para atender a comunidade LGBTQIA+, conforme indicam dados do aplicativo Dandarah, fruo de projeto de pesquisa da ENSP. Esses conselhos têm o papel fundamental de fomentar uma rede de cuidados para aquela população”, defende Angélica. Além disso, segundo ela, é necessário que os Princípios de Yogyakarta, documento internacional sobre direitos humanos nas áreas de orientação sexual e identidade de gênero, sejam efetivamente considerados pelos militantes de direitos humanos no Brasil. “A questão da identidade de gênero e orientação sexual é um direito humano, é o direito de amar e de livre expressão”, destaca.

Para Vladimir, além de efetivadas, é preciso que as políticas públicas sejam interseccionais, já que as experiências de acesso aos serviços públicos de saúde variam de acordo com a etnia, classe social e gênero. “É preciso entender que a experiência de uma pessoa LGBTQIA+ branca, de classe social média, é distinta de uma pessoa negra, periférica. As dificuldades se somam e se multiplicam. Como profissionais de saúde, é fundamental um olhar interseccional para a questão”, salienta. E a inclusão, claro, não pode ser deixada de lado, segundo ele: “Precisamos de uma educação menos machista no Brasil. A ideia rudimentar de que mulheres vestem rosa e homens vestem azul anula a beleza da complexidade do arco-íris. Sujeitos são diversos e precisam ser incluídos. Uma educação que privilegia a diversidade e a diferença é fundamental para termos avanços significativos em diversos âmbitos da sociedade”, conclui.



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