'Educação não é só entrega de conteúdos', diz professora sobre o retorno às aulas
Diante da impossibilidade de retorno às aulas presenciais, com a pandemia de Covid-19, as propostas de ensino remoto emergencial ganharam força — não somente entre as instituições particulares, mas também para escolas e universidades públicas. No entanto, alunos e trabalhadores da educação se deparam com uma realidade: a exclusão digital, que dificulta a adoção de medidas como aulas e avaliações pela internet. “Feito às pressas, o ensino remoto esbarra na falta de acesso à internet e a dispositivos tecnológicos por parte de estudantes e professoras e professores e na impossibilidade de estudo e planejamento por parte do corpo docente sobre aulas à distância que não reforcem um modelo tradicional de ensino”, aponta Luísa Guedes, diretora do Sindscope (Sindicato dos Servidores do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro) e professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Para ela, o retorno às atividades presenciais depende de investimento e de medidas sanitárias efetivas.
A pandemia também afeta o papel da escola como espaço de interação e desenvolvimento. “A escola é um lugar importantíssimo de socialização de crianças e jovens na sociedade em que vivemos”, afirma Luísa. Por isso, não basta pensar alternativas para a “entrega de conteúdo” aos estudantes, como se somente isso garantisse o processo de aprendizagem — a escola também deve ser vista como “um lugar que proporciona debate, de encontro com a pluralidade de ideias e com realidades diferentes, de produção de pensamento e contato com as artes”, define a professora. “A ideia de que conteúdos podem ser entregues e recebidos não dá conta do que acontece a partir do encontro entre adultos, crianças e adolescentes, que é a produção de conhecimentos”, explica.
Para a educadora, a pandemia criou um cenário propício para a ampliação da modalidade de Educação a Distância (EaD) no Ensino Básico e implementação do homeschooling ou educação domiciliar — que já eram projetos defendidos pelo governo federal antes da chegada do novo coronavírus. O perigo, segundo ela, é transformar em “novo normal” o modelo de ensino precário adotado de forma emergencial na pandemia. “É importante lembrar que já havia um projeto por parte do governo federal sustentado por um discurso de ‘inovação’ e de ‘modernização’ do sistema educacional, mas que, na verdade, se traduz em menos investimentos do poder público na educação”, analisa. Ela conversou com o repórter da Radis, Luiz Felipe Stevanim, sobre as pressões e as ameaças em torno da adoção do ensino remoto emergencial, o problema da exclusão digital entre os estudantes e a luta por condições adequadas de retorno às atividades.
Desde o início da pandemia, tem havido pressões para a implementação do ensino remoto emergencial (primeiro, pelas escolas particulares; e em seguida, sobre as próprias escolas públicas). Como essas pressões têm sido sentidas pelos trabalhadores da educação?
Da perceptível impossibilidade de retorno às aulas presenciais, decorre a solução pragmática do ensino remoto emergencial. As escolas particulares, rapidamente, se reorganizaram para dar conta dessa demanda, como medida para garantir o pagamento das mensalidades. O que temos visto é um prejuízo da saúde física e mental desses estudantes, de suas famílias e de professoras e professores, tendo estes, com seus salários reduzidos nesse período de pandemia, que se adaptar a um trabalho para o qual não foram formados e que nem sequer escolheram ao assinarem seus contratos. As escolas públicas passaram a sofrer esse tipo de pressão e algumas redes já têm assumido essa modalidade de ensino, ainda que a grande maioria de estudantes não tenha tido acesso a ele e que docentes não tenham garantidas as condições materiais e de formação para realizar este tipo de trabalho.
Como os trabalhadores da educação têm reagido?
A resistência tem sido feita através dos sindicatos de trabalhadores da educação, que têm construído fóruns de luta, cujas pautas são a preservação das vidas, a garantia da qualidade do processo de ensino-aprendizagem, da igualdade ao acesso à educação, da autonomia do trabalho docente e a defesa da não privatização da educação pública. É importante lembrar que já havia um projeto de ampliação da Educação à Distância e de implementação do homeschooling [ensino domiciliar] por parte do governo federal sustentado por um discurso de “inovação” e de “modernização” do sistema educacional, mas que, na verdade, se traduz em menos investimentos do poder público na educação. A implementação do ensino remoto normaliza um modelo que abre caminhos para a implementação da EAD como modelo de ensino oficial, futuramente. Feito às pressas, ainda, esbarra na falta de acesso à internet e a dispositivos tecnológicos por parte de estudantes e de professoras e professores e na impossibilidade de estudo e planejamento por parte do corpo docente sobre modelos de aulas à distância que não reforcem um modelo tradicional de ensino. Daí, concluímos que tecnologia, por si só, não é sinônimo de inovação.
Que interesses e motivações estão envolvidos na adoção do ensino remoto?
Esse modelo de educação balizado pelas TIC’s (Tecnologias da Informação e Comunicação) surge nesse momento como uma solução salvadora. A questão é que a sua implementação, desde antes, recomendada por organismos internacionais como o Banco Mundial e, recentemente, indicada pelo Conselho Nacional de Educação, a pretexto da pandemia, segue uma agenda empresarial que apresenta alternativas ao ensino presencial, o que significa a venda de pacotes privados de ensino remoto, incluindo plataformas digitais, para as redes públicas. Aceitarmos às pressas essa alternativa implicaria, além das questões que já mencionei, a privatização da educação pública e é contra isso também que estamos lutando, trabalhadores da educação, nas entidades sindicais, quando negamos o ensino remoto. Entendemos que nos colocar contra essa alternativa, ainda que emergencial, neste momento, é defender, portanto, a educação pública. O Colemarx (Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação) da UFRJ recentemente lançou um dossiê sobre esse tema chamado “Em defesa da educação pública comprometida com a igualdade social: porque os trabalhadores não devem aceitar aulas remotas” e lá apresenta os estudos sobre as grandes corporações do mercado educacional, um material de grande relevância. Além das questões que eu já problematizei, o ensino remoto emergencial, principalmente neste momento político, ainda traz um prejuízo à autonomia do trabalho de professoras e professores que, expostos nas redes sociais, perdem o controle sobre a autoria do seu trabalho, estando sob o risco da sua fala ser reproduzida de maneira descontextualizada por parte daqueles que fazem parte do campo conservador e que nos últimos anos vêm atacando a educação pública e especialmente os docentes que se colocam de maneira crítica às desigualdades sociais, de gênero e raciais.
Como as desigualdades sociais e de acesso às tecnologias digitais entre os estudantes de escolas públicas são sentidas nesse contexto de pandemia?
Algumas pesquisas sobre o acesso a dispositivos tecnológicos, à internet e à qualidade desse acesso por parte de estudantes e suas famílias têm sido divulgadas em reportagens com alguma frequência nesse período de pandemia. Com variações de índices, incluindo se em locais urbanos ou rurais, se estudante da escola pública ou de família de baixa renda, são significativos os números percentuais de estudantes no país (nenhum abaixo de 30%) que não têm acesso à internet, ou se têm, a internet é acessada pelo celular apenas ou, se acessada, através de planos pré-pagos. Números que denotam uma desigualdade no acesso a aulas remotas. Deveria ser uma preocupação nossa que estudantes tivessem acesso às redes e a dispositivos tecnológicos independentemente da pandemia se defendemos uma educação igualitária. E a impossibilidade de aulas presenciais, decorrente do isolamento social, tem nos trazido luz a essa questão. No Colégio Pedro II, ainda que a gente saiba que os índices nacionais não estariam tão distantes da nossa realidade a ponto de que nenhum estudante ficasse excluído no caso da adoção do ensino remoto, temos tentado recolher informações sobre as condições de acesso das famílias dos alunos de uma forma mais absoluta. E temos esbarrado justamente na dificuldade de acesso por via remota a algumas famílias. Por enquanto há o entendimento entre nós, institucionalmente e entre a categoria de servidores reunida em assembleia, de que, não havendo acesso igual para todos, não haverá atividade de ensino e, portanto, não haverá contabilização de carga horária letiva.
Que outras dificuldades se apresentam à adoção do ensino remoto para crianças e adolescentes?
Acredito que esse posicionamento nosso tem preservado de alguma forma os estudantes de uma ampliação das desigualdades educacionais e consequentes desigualdades sociais. Ainda é preciso levar em conta os casos de estudantes que, mesmo que tivessem acesso à internet e a dispositivos compatíveis com um modelo de ensino remoto que fosse adotado, não teriam condições de acompanhar as aulas de suas casas, por não haver um espaço reservado para estudo ou pela necessidade de compartilhar o suporte tecnológico com outros membros da família. No caso das crianças pequenas, ainda, por não terem autonomia para gerir seus processos de ensino-aprendizagem, teria que ser garantido que houvesse a presença de membros familiares que os ajudassem na mediação das tarefas, o que supomos não ser possível de garantir de forma emergencial. Soma-se a todas essas questões o acesso também à mediação por alunos com necessidades educacionais específicas, se seguimos defendendo a educação igualitária entre os estudantes. Não podemos oferecer o contato presencial desse professor/mediador que, em muitos dos casos, se faz necessário. Enfim, são questões que extrapolam os limites da escola e fazem parte de um contexto socioeconômico que dificultam ou mesmo inviabilizam a adoção de um ensino remoto emergencial. Essas razões elencadas me parecem suficientes, inclusive, para que o Enem seja adiado para o período após a pandemia. Por isso, essa é uma luta que está vinculada à negação do ensino remoto nas condições em que esse modelo se apresenta como alternativa emergencial ao isolamento social necessário.
A escola é também um espaço de socialização, desenvolvimento e vivência, e não apenas de transmissão ou “entrega” de conteúdos. Como esse componente socializador é prejudicado no contexto da pandemia?
A escola é um lugar importantíssimo de socialização de crianças e jovens na sociedade em que vivemos. Um lugar que proporciona o debate, de encontro com a pluralidade de ideias e com realidades diferentes das que as crianças ou os adolescentes têm familiaridade, lugar de produção de pensamento, de contato com as artes, de formação e de produção cultural. A ideia de que conteúdos podem ser entregues e recebidos não dá conta do que acontece a partir do encontro entre adultos, crianças e adolescentes, que é a produção de conhecimentos. Um encontro que não é possível no ensino remoto ou na educação à distância. A defesa da ampliação da EAD no Ensino Básico e da implementação do homeschooling ou educação domiciliar já eram parte do plano de governo do Bolsonaro, em 2018, quando se candidatou à eleição. O que acontece é que a pandemia cria um cenário propício para a aceleração desse projeto que tem alguns objetivos que parecem claros.
E quais seriam?
A educação domiciliar, especificamente, atende a uma agenda liberal/conservadora que visa reduzir não só investimentos na educação, mas também a participação do Estado nas esferas sociais, além de restringir a formação de crianças e jovens aos valores da família. A implementação do ensino remoto abre portas para a implementação da EAD como modelo para o Ensino Básico e aqueles que os defendem utilizam-se de um discurso de inovação, do que seria uma adaptação da educação aos avanços tecnológicos, mas que na verdade trabalha no horizonte de substituição do ensino público para a esfera privada. Esse modelo à distância travestido do discurso de modernização pressiona o sistema educacional a assumir um caráter tecnicista que reduz a educação à entrega de conteúdos, que é o que tem de mais tradicional no ensino. Essa nova roupagem para esse modelo é o que tem sido chamado de uberização do ensino.
Quais as consequências da adoção desse modelo?
Com esse modelo à distância ou domiciliar, o espaço físico escolar seria substituído por um ambiente virtual e individualizado e os estudantes deixariam de conviver e de ocupar as ruas. Restringindo-se assim ao ambiente doméstico, sem possibilidade de confrontarem-se com outras realidades e, portanto, mais propícios a naturalizarem as imposições sociais de classe, raça e gênero. O nosso trabalho como professoras e professores se reduziria ao de passar conteúdos previamente elencados e passíveis de maior controle, o que significaria, também uma perda de autonomia e, por consequência, de qualidade do ensino se nosso horizonte é uma educação transformadora. Então, ainda que tivéssemos todas as condições necessárias para a implementação do ensino remoto, mesmo que considerado não ideal, mas defendido pelo seu caráter emergencial e, ainda, que tivéssemos superado a questão das plataformas privadas de ensino à distância, construindo plataformas públicas, teríamos pela frente dois outros desafios: o de resistir ao discurso de que Educação à Distância é sinônimo de uma “educação inovadora” e o de resistir à sua ampliação quando superado o caráter emergencial do ensino remoto.
Quando se fala em retorno às aulas, que condições seriam adequadas para garantir o direito à educação sem colocar vidas em risco?
Em março, ainda, quando se confirma a chegada da covid-19 no Brasil, uma das primeiras medidas foi a de fechar as escolas, o que deixou evidente pra sociedade a gravidade da situação, explicitando, portanto, uma situação de não normalidade. Assim, a volta às aulas tem, hoje, um peso simbólico para os projetos de reabertura, para a construção da ideia de que se restaurou a normalidade e que sustentaria a posição negacionista tomada pelo governo. Além disso, obviamente, o retorno às escolas das crianças e adolescentes, sobretudo, os filhos da classe trabalhadora, tem importância crucial para a retomada da economia, de forma a atender a uma demanda do mercado. Daí a pressão sobre as redes de ensino. Como se vivêssemos uma crise pedagógica e não uma crise sanitária que agrava os problemas sociais e econômicos. No entanto, ainda que haja uma pressão para a reabertura das escolas, está claro que não temos condições de retornar às atividades presenciais, sem colocar em risco a vida de estudantes, de suas famílias e dos professores e dos técnicos de educação, mantendo os protocolos de saúde necessários.
E o que seria necessário para construir essas condições?
A construção de uma alternativa para o retorno às aulas presenciais precisaria de políticas sanitárias e de investimento na educação que não estão sendo construídas. Pelo contrário, temos um governo negacionista e que aposta na desinformação da população, o número de mortes vem aumentando enquanto há evidências de subnotificação desses casos, não há testes suficientes, temos estados e municípios que estão realizando reaberturas inconsequentes de uma quarentena que nem chegou a ser feita com o rigor necessário e, ainda vivemos sob a Emenda Constitucional 95 que congela os gastos públicos em saúde e educação por 20 anos. Esse é parte do cenário em que algumas redes de educação anunciam protocolos de biossegurança para o retorno às aulas presenciais. Fazem parte desses protocolos algumas medidas como manter portas e janelas abertas para ventilação do ambiente; trabalho escalonado de equipes; verificação da temperatura antes do início das atividades; testagem de todos os profissionais de educação; utilização de EPIs; distanciamento de um metro e meio; evitar o compartilhamento de equipamentos e ferramentas; seguir as regras de etiqueta respiratória para proteção, em casos de tosse e espirros; lavar as mãos com água e sabão ou higienizar com álcool 70%; e evitar cumprimentar com aperto de mãos, beijos ou abraços. Aí a gente olha pro nosso contexto pré-pandemia: salas de aulas com número excessivo de alunos, estruturas físicas precárias, quadro insuficiente de profissionais de educação e de pessoal da limpeza, problemas de abastecimento de água, falta de material de limpeza, incluindo sabão para lavar as mãos.
Quais as expectativas dos trabalhadores da educação nesse momento?
Temos cobrado das prefeituras, do governo do estado e da União a apresentação concreta do valor dos investimentos a serem realizados para a garantia desses protocolos anunciados. Haverá ampliação do número de profissionais da educação para a execução de um trabalho escalonado e para que se efetive o rodízio de alunos por turma garantindo o distanciamento por metro quadrado? Serão fornecidos EPI’s necessários para todos, material de higiene pessoal e de limpeza para desinfecção do material coletivo? Haverá ampliação do quadro do pessoal da limpeza para garantir a desinfecção desses materiais e de todo o espaço físico entre turnos de profissionais e estudantes em rodízio? Essas são algumas das perguntas. Mas ainda temos uma preocupação que é o deslocamento dos profissionais, dos estudantes e dos seus familiares entre as suas casas e as escolas. Como os sistemas de educação vão garantir a oferta de transporte público seguro para a comunidade escolar? Eu penso, ainda, como é que faz para que crianças mantenham o distanciamento umas das outras e de nós, professoras e professores? E mais, em que concepção de educação caberia um ensino-aprendizagem de crianças pequenas que vão à escola, mas que não podem estar juntas, brincar, abraçar. E o material coletivo? Como faz pra compartilhar? Enfim, são muitas perguntas que sabemos serem retóricas porque apontam medidas políticas pontuais e estruturais que precisariam ser tomadas neste momento e que sabemos não serem de interesse dos governantes.
Por fim, quais os legados e consequências da pandemia para a educação no país?
Acredito que a pandemia nos coloca, na verdade, a necessidade de olhar para os grandes temas, como os da democratização, da igualdade e dos direitos. É como se ela revivesse na gente, professoras e professores, pesquisadores do seu ofício e comprometidos com uma educação democrática e popular, o sentimento de que precisamos lutar para a transformação de antigos problemas que não foram superados e que são consequência de um modelo capitalista. E um modelo, que no Brasil, tem mostrado seu retrato mais perverso nesse momento em que a morte de mais de 70 mil pessoas é banalizada em nome dos interesses do mercado e do conservadorismo. Assim, defender hoje o direito à educação pública universal gratuita laica e de qualidade é defender as bases da democracia que está sob ataque. Não nos submeter a um modelo que provoca a uberização do ensino e a destituição da autonomia do trabalho docente, preconizados nos projetos de reformas educacionais que fazem parte da agenda do governo federal, é defender um outro modelo também de relações de trabalho. Estamos resistindo às investidas de normalizar a exploração das pessoas, de formar trabalhadores sem direitos e combatendo as medidas de controle social autoritárias. Tudo isso tem a ver com a educação, porque pensar o projeto de educação pública que se quer é pensar no tipo de sociedade que desejamos construir e essa sociedade que queremos é aquela constituída por pessoas livres, autônomas, portadoras de direitos. E para que sejam tudo isso, é preciso estarem vivas.
Fonte: Entrevista da Radis