Entrevista: Gisella Cristina de Oliveira Silva fala de sua pesquisa sobre trabalho infantil
Antes dos 16 anos de idade o trabalho é considerado infantil, portanto, ilegal, exceto nas situações de aprendizagem estabelecidas por lei. Mas, um total de 168 milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, participaram do mercado de trabalho em todo o mundo, em 2015. Com a onda de governos neoliberais de extrema direita, a pobreza aumentando, e junto o desemprego e a fome, tende a elevar o trabalho infantil a níveis ultrapassados. Na entrevista concedida ao Informe ENSP, a pesquisadora Gisella Cristina de Oliveira Silva afirmou que tornar natural o trabalho infantil, tal como descrito pelo presidente do Brasil em declarações recentes, distorce um problema social que ainda afeta milhões de crianças e adolescentes e suas famílias, e merece atenção do Estado.
Co-autora do artigo Características da produção científica sobre o trabalho infantil na América Latina, publicado no Cadernos de Saúde Pública em julho de 2019, ela também disse não ter dúvidas de que os cortes orçamentários atuais no investimento em ciência impactarão na produção de dados subjacentes ao tema, realidade que se mostra ainda mais grave, diante do desemprego alto, redução da cobertura de proteção social e aumento da pobreza no país, questões que se relacionam diretamente com o trabalho infantil. Confira a entrevista!
Informe ENSP: O artigo analisou as características da produção científica sobre trabalho infantil na América Latina, de 2004 a 2014. Foram encontrados 114 trabalhos, nas bases de dados Lilacs e SciELO. Os artigos foram categorizados com base nos conceitos de campo e agentes sociais de Pierre Bourdieu, destacando os produtores, os locais de publicação, os objetos e discursos. Observou-se um crescimento da produção no período, especificamente a partir de 2006. O Brasil ocupou a posição dominante na produção científica com 80,7% do total, seguido da Colômbia, Argentina e México. Na sua opinião, o que representa esse crescimento?
Gisella Cristina de Oliveira Silva: A posição de destaque da produção brasileira é esperada por ter sido o primeiro país na América Latina a implementar em 1992 o Programa Internacional para Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC), proposto pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que destinava recursos financeiros com o objetivo de combater o trabalho infantil em todas as suas formas e onde quer que ele se apresentasse nos territórios nacionais; fato que pode ter despertado o interesse para realizações de pesquisas científicas. O aumento, a partir de 2006, pode estar relacionado à incorporação dessa temática de forma mais estruturada pelo estado brasileiro, que pode ser observada tanto pela reativação da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (CONAETI) em 2003, como pela publicação do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalhador Adolescente, também em 2003, onde o país assume como objetivo a erradicação do trabalho infantil. Entre as próprias diretrizes do plano está a promoção de estudos e pesquisas, integração, sistematização e análise de dados sobre todas as formas de trabalho infantil. Fatos, inclusive, que demonstram a importância do problema social do trabalho infantil ser tratado como um problema público, que merece atenção do Estado e seus agentes.
Como referencial teórico, o estudo adotou a abordagem da sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu, especificamente com base na noção de campo científico como um espaço relativamente autônomo com leis e lógicas próprias, comportando relações de força e de dominação, e como tal fazendo imposições, solicitações; nesse circuito, o que está em jogo é o monopólio da autoridade científica, e mais, da competência científica, entendida aqui como a capacidade de falar e de agir legitimamente, que é socialmente reconhecida a um agente pelas relações objetivas entre os agentes que aí se encontram.
Informe ENSP: Apenas 14,9% das pesquisas, no entanto, receberam financiamento, diz o artigo. Como avalia os cortes no investimento em ciência, principalmente nas áreas de humanas, e quais os impactos para a saúde coletiva, campo interdisciplinar com vários conhecimentos?
Gisella Cristina de Oliveira Silva: Compreende-se que os investimentos em pesquisa no Brasil são realizados pelo Governo Federal. Mas os recursos não são distribuídos de forma homogênea entre as diversas unidades de pesquisas, laboratórios, universidades e bolsas de estudos, que impulsionam os mais importantes trabalhos científicos do país. Pesquisas como essas, da área de ciências humanas, sentirão muito mais os cortes, pois já contam com menores investimentos. É importante lembrar que esse estudo foi oportunizado pela bolsa de doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), instituição que teve seu orçamento fortemente reduzido. Com os cortes no investimento em ciência pode haver, inclusive, interrupção de linhas de pesquisas, com a redução de editais específicos que financiam pesquisas relacionadas a essa e outras temáticas ligadas às ciências sociais no país. Não tenho dúvidas de que os cortes impactarão na produção de dados subjacentes ao trabalho infantil, realidade que se mostra ainda mais grave, se considerarmos o contexto atual de desemprego alto, redução da cobertura de proteção social e aumento da pobreza no país, questões que se relacionam diretamente com o trabalho infantil.
Informe ENSP: Os produtores dessas pesquisas sobre trabalho infantil são de origens diversas, com a participação de psicólogos (26,3%), enfermeiros (17,5%) e economistas (13,2%). Os estudos estão situados em subáreas das Ciências Humanas, constituídas pelos discursos da Psicologia Social e do Desenvolvimento; Ciências da Saúde com destaque para os estudos epidemiológicos, pautados nos conceitos da enfermagem do trabalho e na subárea de Ciências Sociais Aplicadas com os estudos econômicos. Observou-se que os objetos de estudos relacionados ao trabalho infantil focam seu interesse na relação deste com a saúde, a educação, o trabalho e a assistência social, com pouca interdisciplinaridade nas publicações. Por quê?
Gisella Cristina de Oliveira Silva: A pouca interdisciplinaridade nas publicações pode ter sido pelo fato de que os autores publicam os resultados de suas pesquisas de acordo com a sua área de formação e atuação profissional. Isso se alinha à reflexão de Bourdieu, segundo a qual a ordem científica estabelece as intervenções científicas, os lugares de publicação e os objetos de pesquisa. Assim, todos os autores de determinada formação social têm em comum um conjunto de esquemas de percepção fundamentais comumente utilizados para classificar e qualificar os objetos nos diferentes domínios de sua prática.
Informe ENSP: Segundo o artigo, no Brasil, a Região Sudeste (57%) reúne a maioria da produção, entre os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, seguida da Região Nordeste (23,7%) com estudos em João Pessoa (Paraíba), Bahia e Rio Grande do Norte. Em menor número, a Região Sul (10,8%) com estudos no Rio Grande do Sul e Santa Catarina; Região Centro-oeste (4,3%) com estudos no Distrito Federal, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; e a Região Norte (4,3%) com estudos apenas no Pará. A que se deve a majoritária presença das regiões Sudeste, Nordeste e Sul nas publicações?
Gisella Cristina de Oliveira Silva: A majoritária presença das regiões Sudeste, Nordeste e Sul nas publicações pode ser explicada a partir da existência de cursos de Pós-Graduação com foco na temática observada, bem como, os interesses específicos de grupos de pesquisas dessas regiões, que tendem a exercer um efeito estruturante sobre as representações e as práticas no campo científico, sendo capazes de expandir o número de publicações e legitimar o interesse por diversas temáticas.
Informe ENSP: A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou que no ano de 2015, 168 milhões de crianças e adolescentes, com idades entre 5 e 17 anos, participaram do mercado de trabalho em todo o mundo. Só na América Latina foram 12,5 milhões de crianças. Assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo o tráfico de drogas e homicídios, e exploração sexual e comercial é um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que prevê sua erradicação em todas as suas formas até 2025. Na análise da produção científica dessa pesquisa, emergiram 10 temáticas, sendo estas os objetos de interesse que se apresentaram entre as três subáreas que compõem o espaço científico do trabalho infantil. Essas temáticas são constitutivas dos discursos legítimos. Quais são eles?
Gisella Cristina de Oliveira Silva: Entre as sete temáticas de estudo sobressaíram três discursos legítimos. O primeiro deles refere-se aos estudos que abordaram as características socioeconômicas e demográficas do trabalho infantil, que estão interessados na identificação dos padrões, das tendências evolutivas e dos fatores condicionantes desta prática. O segundo discurso legítimo diz respeito à relação do trabalho infantil e as consequências sobre a saúde, como: as desordens do sistema musculoesquelético, os acidentes de trabalho, as notificações compulsórias, a segurança de alimentos, os inquéritos de saúde e os inquéritos de qualidade de vida de crianças e adolescentes em situação de trabalho. Constata-se também que os objetos de estudo nessa subárea científica das Ciências da Saúde utilizam como principal abordagem metodológica a epidemiologia por meio da predominância de desenhos de estudos transversais e ecológicos. Nas últimas décadas, as abordagens epidemiológicas nas pesquisas vêm repercutindo na contribuição relativa da ciência brasileira na produção do conhecimento na América Latina e no mundo, em torno de questões como condições de saúde, os determinantes e a implementação de políticas e ações para melhorá-los. O terceiro discurso legítimo que se apresenta nessa subárea é a relação entre trabalho infantil e educação, com o interesse pelos seguintes objetos: as práticas de estudantes sobre a escola, trabalho e futuro; evasão escolar e atraso escolar, todos comumente associados com o ingresso e permanência no mercado de trabalho. Destaca-se que a interdisciplinaridade é mais frequente nessa subárea, o que pode estar relacionado à expansão do campo da saúde coletiva 16, especialmente engendrada nos programas de pós-graduação na área, que favorecem a pluralidade e a heterogeneidade de referências epistemológicas e operacionais na construção da realidade social.
Na subárea das Ciências Humanas, os resultados demonstram que os 55 artigos indexados nos periódicos científicos correspondentes a esta subárea apresentam distintos objetos legítimos de pesquisa, mas que podem ser agrupados em seis temáticas de estudo. Dentre as temáticas, destacam-se três discursos legitimadores, são eles: Experiência do Trabalho Infantil; Trabalho Infantil Doméstico; Programas de Transferência de Renda e Trabalho Infantil. Esses objetos estão estruturados, principalmente, nos discursos da Psicologia Social e do Desenvolvimento. Verifica-se que os estudos que estão intimamente ligados aos discursos legítimos da experiência sobre o trabalho infantil se interessam, de modo geral, pelas dimensões econômicas, sociais, culturais e simbólicas que estruturam as percepções, os significados, as práticas e as representações sobre o trabalho infantil em diferentes contextos.
Alguns discursos específicos sobre a experiência do trabalho infantil se associam com as diversas questões da organização estrutural do mercado de trabalho: o direito de brincar e as vivências lúdicas no contexto do trabalho infantil; o processo de inserção laboral e as atividades ocupacionais desenvolvidas, principalmente, nas relações informais do trabalho e, especificamente, na área urbana (ruas, comércio, residências, unidades domésticas de produção e nos serviços); a organização familiar, motivações e práticas de socialização; e as experiências no cotidiano do trabalho explorado. Acresce-se aos discursos a investigação e problematização sobre o trabalho formal de jovens brasileiros em “condição de aprendiz”, relativos à garantia de proteção aos seus direitos, à formação de identidade pessoal e ocupacional.
Na análise da subárea das Ciências Humanas destacaram-se os discursos sobre a caracterização das atividades do trabalho infantil doméstico - havendo a presença do gênero como variável analítica apenas nesta subárea - que abordou como objeto de estudo as condições de trabalho infantil, tipos e características, descrição das atividades desenvolvidas por gênero e faixa etária; as motivações para o início desta prática e remuneração, bem como a relação com o processo de escolarização e desempenho escolar.
Finalmente, o outro discurso legítimo que se encontra nesta subárea diz respeito aos estudos que relacionam os programas de transferência de renda e trabalho infantil com a compreensão dos seus aspectos institucionais e da efetividade das políticas sociais, particularmente no Brasil e na Argentina. Os estudos apresentaram em comum as análises das condições operacionais dos programas, as limitações, os benefícios, bem como as experiências desenvolvidas. Abordam, ainda, as ações socioeducativas, as rotinas escolares, frequência escolar, as dinâmicas familiares e as mudanças geracionais com base nos programas, em função do recebimento de benefícios.
Informe ENSP: Com a onda de governos neoliberais de extrema direita na América Latina e em outras regiões, a pobreza aumentando, e junto o desemprego e a fome, tende a elevar o trabalho infantil a níveis ultrapassados. E também perante às declarações do atual Presidente do Brasil de que "o trabalho infantil não prejudica as crianças" e ainda que "não apresentaria um projeto para descriminalizar o trabalho infantil, pois seria massacrado", como a pesquisa sobre o trabalho infantil pode auxiliar na melhor compreensão do tema conforme interesses que dependem de que lugar se fala ou se ocupa no Governo, nas instituições, nos grupos de poder e na sociedade de modo geral?
Gisella Cristina de Oliveira Silva: Tornar natural o trabalho infantil, tal como descrito pelo atual presidente do Brasil em declarações recentes, distorce um problema social que ainda afeta milhões de crianças e adolescentes e suas famílias, no Brasil e no mundo. Antes dos 16 anos de idade o trabalho é considerado infantil, portanto, ilegal, exceto nas situações de aprendizagem estabelecidas pela Lei da Aprendizagem.
É preciso reconhecer que a prática do trabalho infantil pode trazer consequências para a vida das crianças e adolescentes ao afetar a saúde e interferir direta e drasticamente em todas as dimensões do seu desenvolvimento físico-biológico, emocional e social. Além disso, essa prática pode ocasionar graves acidentes de trabalho, mutilações, adoecimento e óbitos.
Compreende-se que os fatores que conduzem as crianças e adolescentes ao desenvolvimento dessa prática são os mais diversos: a situação de pobreza das famílias e o auxílio para complementação da renda familiar; a dificuldade de acesso a uma educação pública de qualidade; a debilidade das políticas socioeconômicas e os aspectos culturais que condicionam percepções e orientações positivas para o trabalho como aprendizagem para o futuro, pautadas na justificativa da socialização da criança; a instabilidade conjugal dos pais e estruturas familiares poligâmicas, bem como problemas interpessoais e violência doméstica.
Portanto, é compromisso da família, do Estado e da sociedade criar uma rede de proteção que dê condições para que crianças e adolescentes tenham acesso à educação integral, contextualizada e de qualidade, à saúde, à afirmação e reconhecimento cultural e à moradia. Para tanto, é essencial que seu ingresso no mercado de trabalho na idade se dê de forma adequada, proporcionando espaço para seu amadurecimento profissional e prevenindo o seu comprometimento físico e emocional. Esse não é um desafio brasileiro apenas, mas global.
É de fundamental importância reconhecer os avanços do aparato jurídico de proteção à criança e ao adolescente, no combate ao trabalho infantil, dos acordos internacionais propostos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), dos quais o Brasil é signatário, Sobre Idade Mínima de Admissão ao Emprego e Sobre as piores formas de trabalho infantil, na defesa de seus direitos individuais como cidadão.
Sobre a pesquisadora
Gisella Cristina de Oliveira Silva é membro do conselho de política editorial da revista Ciência & Saúde Coletiva e editora associada da revista Cadernos de Saúde Pública. Graduada em Licenciatura Plena e Bacharelado em Ciências Biológicas pela Universidade de Cuiabá (2005). Com Aperfeiçoamento em Vigilância Sanitária pela Fiocruz (2007), ela é mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Mato Grosso (2011), e doutora em Saúde Pública pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.
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