Busca do site
menu

Uma crise que não nasceu hoje: pesquisador analisa conjuntura política e conflitos socioambientais

ícone facebook
Publicado em:29/04/2016

Pouco a comemorar, muito com que se preocupar. Às vésperas do dia do trabalhador, na semana em que se relembra as vítimas de acidentes de trabalho, o Informe ENSP conversou com Ary Miranda, pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/ENSP), para fazer uma breve análise da atual conjuntura. Em pauta, a adoção de um modelo exploratório que tem como consequência tragédias como a que aconteceu em Mariana, em Minas Gerais, a desorganização dos movimentos sindicais a partir do avanço do neoliberalismo e a crise política e econômica por que passa o país.

Entre os dias 11 e 16 de abril, quatro caravanas percorreram rotas ao longo do Rio Doce visitando territórios atingidos pela lama tóxica da Samarco/Vale/BHP. Ary Miranda esteve na culminância que encerrou as caravanas com uma série de eventos e debates e viu uma reoxigenação dos movimentos sociais. O pesquisador, entretanto, acredita que mais do que tentar fazer previsões sobre o atual momento político, é importante compreender os processos históricos que culminaram na atual crise.

Informe ENSP: Ary, a tragédia que aconteceu em Mariana pode ser vista por diversos ângulos. É uma tragédia ambiental e também um acidente de trabalho, uma vez que 16 dos 18 mortos eram trabalhadores da Samarco/Vale/BHP. Como se deve pensar esse desastre numa perspectiva maior, da adoção de um modelo predatório de exploração de riquezas naturais no Brasil?

Uma crise que não nasceu hoje: pesquisador analisa conjuntura política e conflitos socioambientaisAry Miranda: É importante a gente colocar como primeira reflexão, quando se pensa tudo que acontece no Brasil do ponto de vista de impactos socioambientais, a inserção do país na ordem capitalista internacional. Trata-se de uma reafirmação do Brasil e dos países do hemisfério sul como produtores de commodities minerais, agrícolas/pecuárias e petróleo, o que traz uma capacidade de geração de impacto socioambiental enorme. É um papel que é dado ao Brasil e reafirmado pelo estado brasileiro. Ao longo do século XX, principalmente nos anos 1950, com o desenvolvimentismo de Juscelino, há momentos em que se busca incrementar a industrialização no país, mas nossa característica nunca foi a de, por exemplo, ancorar a pesquisa num sentido de desenvolvimento tecnológico que pudesse alavancar um outro modelo produtivo. O grande componente da balança comercial brasileira está na primarização da economia.

Eu acho interessante falar do que aconteceu em Mariana porque está no escopo desse processo. Primeiro, o que aconteceu tem que ser tratado como um crime; não foi um acidente, porque a volúpia pelo lucro, pela acumulação, mantém o ritmo da produção mesmo quando as commodities caem de preço no mercado internacional. Nesses momentos, a primeira ação dessas empresas é racionalizar custos. Isso significa relaxar claramente na questão da segurança, naquilo que são elementos que não agregam valor à produção deles.

Informe ENSP: Mas essa caracterização da tragédia como um crime, em que as empresas envolvidas são os autores, não é o que se lê nos discursos e investigações oficiais...

Ary Miranda: É interessante discutir como o estado brasileiro está tratando desse assunto. Primeiramente, muitos dos que estão no poder, hoje, foram financiados pela Samarco. Isso significa que o nível de comprometimento desses governantes com as empresas é enorme. O termo de ajustamento de conduta, que foi firmado entre governo federal, os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, a Samarco, a Vale e a BHP, é uma aberração. Primeiramente, todas as populações ficaram de fora das discussões e decisões do termo. Em segundo lugar, a proposta é a de criação de uma fundação de direito privado para lidar com os danos da tragédia, e essa fundação seria administrada pela Samarco. É como se você desse ao criminoso o poder de gerenciar as consequências do próprio crime.

Informe ENSP: Você participou da caravana do Rio Doce. O que viu e ouviu por lá?

Ary Miranda: Foram quatro caravanas que percorreram o Rio Doce saindo de diversos pontos. Foram ouvidos inúmeros relatos de grupos sociais atingidos e de representantes das comunidades e etnias. No final, foi feito um debate em praça pública e, em seguida, um ato público com uma passeata pela cidade de Governador Valadares, que terminou com um ato em frente à sede da Vale. Foi criado um Fórum Permanente da Bacia do Rio Doce, com um conjunto de instituições que estão trabalhando em defesa dessas populações, como universidades e entidades representantes dos movimentos sociais para que se possa manter uma atividade permanente de enfrentamento dessas questões. Nosso entendimento é que é preciso barrar esse acordo de que falei, para que seja feito um novo, que envolva as populações atingidas. Dessa caravana saiu também um documento, uma carta que está disponível no site da Abrasco.

Há alguns casos emblemáticos dessa tragédia que demonstram a forma como as empresas e o estado estão lidando com suas consequências. Uma senhora de 69 anos, por exemplo, teve sua máquina de lavar danificada e solicitou uma nova máquina à Samarco, como indenização. A assistente social pediu um laudo médico para verificar se ela não tinha força para torcer a roupa. Depois que o pessoal do MAM, o movimento dos atingidos pela mineração, os atingidos por barragens, o MST e outras organizações que estão dando proteção a essa população, começaram a pressionar, algumas foram resolvidas, mas sempre pela metade. A senhora recebeu uma máquina nova, mas de qualidade inferior a que tinha. Outro caso emblemático é sobre as indenizações às famílias dos mortos. Uma mulher que estava grávida foi levada pela enxurrada, perdeu a criança e não teve direito à indenização porque a Samarco alegou que a criança ainda não tinha nascido.

Informe ENSP: Ary, 28 de abril é o Dia Mundial em Memória das Vítimas de Acidentes e Doenças do Trabalho. Os acidentes de trabalho, no Brasil, têm números bastante significativos. Por quê?

Ary Miranda: Primeiramente, é preciso dizer que o capital não tem compromisso com a vida dos trabalhadores. Sempre que se tem uma perspectiva de minimização dos impactos dos processos de trabalho sobre a saúde é quando se tem movimentos organizados, sindicatos, etc. Os acidentes são uma consequência da fragilidade das organizações que defendem os direitos dos trabalhadores. No Brasil, vemos essa incidência enorme de acidentes principalmente em áreas em que se tem uma fragilidade orgânica, como a construção civil.

Informe ENSP: E o capital tem uma grande capacidade de migrar para áreas onde essa organização é frágil...

Ary Miranda: Sim, inclusive nesse projeto de se criar infraestrutura no campo para fortalecer o agronegócio, se em algumas cidades se tinha um grau de exigência maior para implantação de algum empreendimento, as empresas se deslocavam para outra com menos organização e exigências.

Informe ENSP: Ary, estamos falando dessa tragédia, de direitos sociais e trabalhistas num momento de grave crise política em que as forças que, de certa forma, já estão se beneficiando desse processo falam abertamente em mudanças na legislação que trarão ainda mais retrocessos em conquistas sociais. Como você analisa a atual situação política do país?

Ary Miranda: A crise que estamos vivendo no Brasil, hoje, é uma crise séria, com múltiplas dimensões, e toda a articulação das forças que estão engendrando o golpe - porque é um golpe, e é preciso que se diga - encarnam a concepção mais radicalizada dos neoliberais dos anos1990, dos governos tucanos. Por isso, estão todos tão afinados nesse processo. Se lermos a Carta para o Futuro, do PMDB, vemos, entre as propostas, um compromisso com as privatizações, a revisão de toda legislação que condiciona repasses de recursos federais para estados municípios na área social e um alinhamento das relações internacionais aos interesses econômicos dos países do chamado norte desenvolvido. São uma série de compromissos que fragilizam as políticas sociais e colocam tudo nas mãos do mercado, o que provavelmente significará um retrocesso nas conquistas feitas nos últimos  doze, quinze anos no Brasil.

Informe ENSP: E é possível fazer algum tipo de previsão quanto ao desfecho dessa crise?

Ary Miranda: O cenário Brasileiro é incerto. A cada momento surge um dado novo. O que vai acontecer depende da manutenção dos movimentos sociais, que se reoxigenaram, se fertilizaram muito nesses dois meses. Não dá para fazer nenhuma previsão dada a dinâmica da conjuntura, mas existe um problema estrutural que é mais importante de ser pensado. É um processo que começa com a chamada reestruturação produtiva, a partir da crise do fordismo nos anos 1970. É quando o capital reconfigura sua dominação, o que ganha lastro político com a eleição da Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos. A partir desse momento, tem-se um avanço do chamado neoliberalismo com a desregulamentação dos fluxos do capital financeiro, privatizações, desregulamentação de formas de contratualização e fragilidade enorme do mundo do trabalho. Esse último componente, que é central nessa reestruturação produtiva, desorganiza o trabalho de diversas formas, com trabalhos sazonais, teletrabalho e as terceirizações, que ainda podem ser ampliadas agora. Os postos de trabalho foram pulverizados. Nesse processo, as empresas vão se desresponsabilizando quanto aos trabalhadores. Esse fenômeno que fragmentou o trabalho fragiliza os movimentos sociais e, consequentemente, os partidos políticos que defendem os trabalhadores. Para te dar um exemplo, no fim da Segunda Guerra, com o arranque do fordismo, quando se viveu os anos dourados do capitalismo, com pleno emprego e o processo de recuperação da Europa destruída, houve um aumento significativo da sindicalização, com ganhos reais de salários, etc. Para você ter uma ideia, o partido comunista italiano, o maior do ocidente, chegou a ter, em 1949, cerca 2,9 milhões de filiados. Hoje, ele praticamente não existe mais.

Então, o que vivemos é essa desestruturação do mundo do trabalho, com sindicatos e partidos fragilizados. Você me perguntou o que vai acontecer. É difícil precisar, embora o cenário desenhado pareça ser de consolidação do golpe. Se não temos um golpe como o de 1964, com característica de domínio civil/militar, da força bruta assumindo o Estado fechando o congresso, os partidos, com a prática da tortura, desaparecimento de corpos, assassinatos, se não há um contexto favorável a um golpe com essas características, temos a judicialização da política brasileira, uma nova forma que a direita está usando para tentar inviabilizar uma série de enfrentamentos. Agora, esses processos são contraditórios, e temos, por outro lado, algum movimento que reage e está na rua. É a esperança na perspectiva da resistência e da criação de outro cenário.


Seções Relacionadas:
Entrevistas

Nenhum comentário para: Uma crise que não nasceu hoje: pesquisador analisa conjuntura política e conflitos socioambientais