A primeira mesa-redonda comemorativa dos 59 anos da ENSP teve um significado importante. O pesquisador Ary Miranda, coordenador da mesa, apresentou os dois palestrantes, Sônia Fleury e Nelson Rodrigues dos Santos, como duas "fontes primárias" da Reforma Sanitária brasileira. Sônia defendeu o Sistema Único de Saúde (SUS), mas criticou a administração da precariedade. “Parte dos gestores da saúde assume a conivência com o mercado por meio das organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público, parcerias público-privada.” No início do evento, foi exibido o vídeo História das conferências de saúde, produzido pelo Canal Saúde. A oitava edição desses eventos, ocorrida em 1986, foi a mais representativa, com a participação de cerca de 4 mil pessoas, e lançou as bases do SUS.
Sônia Fleury disse estar animada com as manifestações atuais. “É muito bom que as pessoas tenham ido às ruas reivindicar um SUS padrão Fifa. Não pediram planos de saúde mais baratos. Exigem responsabilização pela corrupção, prestação de contas.”
Ela lembrou que o conceito de reforma sanitária, apesar de seu referencial teórico advir do modelo italiano, surgiu no auditório térreo da ENSP, pronunciado pela pesquisadora da Fiocruz Cristina Possas. A Reforma Sanitária brasileira, explicou a sanitarista, tem dois componentes: instituinte e instituído. O instituinte é o desejo de ruptura, de um projeto diferente, estabelecimento de estratégias e alianças. “Hoje, há um pulsão instituinte forte, um desejo de aprofundar a democracia, de construção de uma agenda pública”, disse.
Já o instituído, informou Sônia, é o SUS que foi construído. “Existia uma tensão entre o movimento sanitário e a institucionalização. Dentro do movimento, ocupávamos dois espaços conflituosos: um grupo era da Previdência Social; outro, a Fiocruz. O SUS nasce dentro da seguridade social. O grande ganho da Constituição Federal de 1988 foi tirar os direitos sociais da ordem econômica e dar a eles a primazia de direito social.”
No entanto, ela admitiu que o erro do movimento foi pensar que institucionalizar o SUS seria suficiente, apesar de reconhecer que a maior criatividade foi colocar o instituinte dentro do instituído, ou seja, a conferência dentro do sistema. “Ficamos voltados para administrar um Estado que não é nosso”, concluiu.
“Perdemos a capacidade de se sensibilizar, falta solidariedade com a população que chega ao hospital e não é atendida. Perdemos a ligação orgânica com a sociedade.” Segundo Sônia, a Reforma Sanitária que culminou na criação do SUS não era setorial, mas sim um projeto de democracia, de sociedade. “Só tem uma saída: radicalizar a democracia, radicalizar a Reforma Sanitária.”
Nelson Rodrigues dos Santos relembrou momentos históricos da Reforma Sanitária com saudosismo. “Apesar da ditadura política, os anos de 1970 foram anos dourados, quem diria, pela capacidade de mobilização, fé no futuro e noção de força social. A partir dos anos de 1990, nem tão dourados assim.”
De acordo com ele, o subfinanciamento do SUS começou nos anos 1990, quando metade da previsão orçamentária foi cortada. Isso acarretou um desinvestimento na capacidade instalada dos serviços de saúde e uma incapacidade de atender a população que crescia vultosamente. Além disso, disse ele, os recursos humanos passavam por terceirizações crescentes.
Apesar de metade da população ter sido incluída no sistema de saúde em uma década, os pagamentos são por procedimentos, disse o sanitarista. “A média e alta complexidades são a entrada principal da população, gerando grandes desperdícios e diagnósticos tardios. Paralelamente, aconteceram, nos anos 2000, subversões crescentes dos recursos. Hoje, o Tesouro Nacional cobre a rentabilidade dos planos privados.”
Nelson denunciou o novo rumo atual: o anti-SUS, que quer riscar o sistema da Constituição. “As classes médias e as centrais sindicais estão cobertas pelos planos privados. Então, só os pobres são atendidos pelo SUS.” Para ele, resta apenas a resistência. Nelson exemplificou os casos positivos como a permanência dinâmica do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e os movimentos das ruas. “A sociedade não quer saber desse Estado.”
Por fim, Nelsão, como é chamado carinhosamente pelos amigos, disse trazer uma visão de militante idoso que começou no movimento municipal de saúde, nos idos de 1970, nas periferias urbanas. Por ocasião da 8ª Conferência, ocorreu o casamento sinérgico, quando encontrou jovens sanitaristas discutindo conceitos como a universalidade. Ele completou sua fala com elogios ao papel histórico da ENSP.