Busca do site
menu

Estudo de piolhos pode desvendar hábitos de populações antigas

ícone facebook
Publicado em:31/08/2012
 
O piolho infecta populações humanas há pelo menos 10 mil anos. É até citado na Bíblia como uma das dez pragas enviadas por Deus para o povo de Israel ser libertado do Egito. No entanto, o parasito pode, hoje, fornecer informações sobre hábitos, rotas migratórias, evolução de doenças infecciosas, além da higiene e formas de relacionamento das populações antigas.
 
Essa descoberta é possível graças à paleoparasitologia, o estudo de parasitos em material antigo. Pelo encontro de vestígios de parasitos, é possível identificar infecções que acometiam populações no passado, humanas ou de animais, a partir de fontes como coprólitos (fezes fossilizadas ou preservadas por dessecação), tecidos mumificados, restos de cabelos e sedimento de urnas funerárias. 
 
A equipe do laboratório de paleoparasitologia da ENSP, coordenada pelo pesquisador Adauto Araújo, realiza esses estudos em populações antigas. Recentemente, a equipe recebeu um escalpo com diversas amostras de piolho adulto, que estão sendo estudadas para descoberta de sua origem. O estudo é desenvolvido por Juliana Dutra, aluna de pós-doutorado da Faperj e orientada por Adauto no laboratório. Em entrevista ao Informe ENSP, ela revela dados interessantes sobre as populações pré-históricas e como o parasito pode desvendar hábitos dessas populações.
 
Informe ENSP: Qual é o campo de estudos da paleoparasitologia?
 
Estudo de piolhos pode desvendar hábitos de populações antigasJuliana Dutra: Paleoparasitologia é o estudo de parasitos em material antigo. Pelo encontro de vestígios de parasitos, procuramos identificar infecções que acometiam populações no passado, humanas ou de animais. A principal fonte de estudos para a paleoparasitologia são os coprólitos, que são fezes fossilizadas ou preservadas por dessecação, além de tecidos mumificados, restos de cabelos e sedimento de urnas funerárias, por exemplo.
 
A atuação da paleoparasitologia promove interação entre a parasitologia, arqueologia, paleontologia, história, geografia, antropologia, biologia e outras ciências. A grande importância disso tudo, para além do achado científico, é a relação histórica que pode ser estabelecida com a evolução das doenças, o comportamento das populações, as rotas migratórias, os hábitos alimentares, etc. Para isso, a presença dos pesquisadores Adauto e Luiz Fernando Ferreira aqui na Escola é algo fantástico. Alem do caráter da pesquisa, é a história da nossa evolução.
 
Informe ENSP: Estudos que utilizam técnicas de biologia molecular auxiliam a investigação de infecções em populações extintas, e a presença de parasitos nessas populações pode aprofundar o conhecimento sobre a história desse tipo de infecção. Como o estudo em piolhos vem sendo desenvolvido na ENSP? 
 
Juliana Dutra: Entre os parasitos mais conhecidos estão os piolhos humanos, insetos sem asas que se alimentam do sangue do hospedeiro e têm olhos pouco desenvolvidos, mas fortes garras, usadas para se prenderem aos pelos do corpo e fios de cabelo. Dessa forma, os achados da paleoparasitologia mudaram muito a perspectiva do Brasil a respeito das doenças associadas aos colonizadores ou permanecentes da nossa pré-história. No caso dos piolhos, seus ovos podem ser encontrados em fios de cabelo presentes em sedimentos arqueológicos, em escalpos, nos cabelos de corpos humanos mumificados e em utensílios como pentes, cocares, chapéus e outros.
 
Apesar do registro de textos clássicos que narram a coceira em gregos, chineses e indianos, o vestígio de infestação de piolho (Pediculus humanus capitis) mais antigo, publicado no Brasil por Adauto Araújo, é de cerca de 10 mil anos atrás. Foi constatada a presença de lêndeas em fios de cabelo humano encontrados em um sítio arqueológico do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí.
 
Assim, a presença do piolho no continente americano com datação de 10 mil anos muda toda a noção da migração do homem para cá. Acredita-se que a origem do piolho seja africana. O parasito deve ter chegado e se estabelecido aqui por meio de migrações até mesmo antes dos colonizadores. É uma infecção pré-histórica brasileira, e o achado evidencia a dispersão dessa infecção.
 
Informe ENSP: E o que o estudo dos piolhos pode acrescentar na história da humanidade?
 
Juliana Dutra: Trabalhar com piolho é algo desafiador. É um ectoparasita, não possui asas e precisa de um contato para propagar a infecção. Em poucos trabalhos, encontramos o piolho adulto em amostras mumificadas, pois, quando a temperatura corporal resfria após a morte, a tendência é que o piolho abandone aquele corpo. Já os ovos dos piolhos, as lêndeas, graças a uma substância aderente liberada pelas fêmeas, grudam-se nos cabelos, nos pelos pubianos e também nas roupas. Por isso, é mais fácil encontrarmos lêndeas nos trabalhos.
 
Os estudos sobre a origem dos piolhos em todo o continente americano podem fornecer muitas informações sobre rotas migratórias e contatos entre povos antigos, já que a transmissão do inseto se dá por contato interpessoal. Dessa forma, a partir das informações encontradas, podemos analisar hábitos. Quando se encontram num mesmo sítio ou sepultamento várias amostras do parasito, há indicação de uma comunidade, de um contato mais íntimo entre as populações. Além disso, com o auxílio da biologia molecular, é possível determinar se é um piolho de cabeça ou de corpo, já que, em humanos, temos as espécies de cabeça, os dos pelos do corpo e da região pubiana, conhecido como chato.
 
Informe ENSP: Como o Laboratório de Paleoparasitologia da ENSP trabalha com todas essas informações?
 
Juliana Dutra: As primeiras descobertas sobre a infecção por piolhos datam do século 19. No Brasil, os primeiros estudos foram realizados ainda na metade do século 20 pelo parasitologista Olímpio da Fonseca, do Instituto Oswaldo Cruz. Esse pesquisador examinou múmias e cabeleiras de indígenas pertencentes ao Museu Paulista e descreveu infecções por piolhos.
 
No Laboratório, atualmente estudamos um escalpo que foi analisado pelo Olímpio da Fonseca, entregue, no ano passado, ao Adauto Araújo pelo pesquisador Pedro Linardi. Ainda não desvendamos a origem do escalpo, mas, pelo tipo de tecido que o envolve, cremos que é peruano. Desse modo, contamos com o trabalho da pesquisadora do Departamento de Endemias Samuel Pessoa Scheila Mendonça, responsável pela análise arqueológica. Mas essa cabeleira possui algo difícil de encontrar: uma alta concentração de piolhos adultos e muito bem conservados.
 
Estudo de piolhos pode desvendar hábitos de populações antigas
 
A cabeleira possui uma infecção longa, pois é possível determinar sua duração pela distância da lêndea do couro cabeludo. Quanto mais distante o ovo estiver da cabeça, maior o tempo de sua postura, pois a fêmea os coloca bem próximos ao couro cabeludo por causa do calor. Ainda sobre os piolhos adultos, pelo fato de não terem abandonado o corpo após a morte do indivíduo, é provável que ele habitasse em um local quente. A partir da coleta de várias informações, tentaremos desvendar sua origem.
 
Informe ENSP: A infecção por piolho pode trazer algum dano à saúde do homem?
 
Juliana Dutra: O fato de o piolho ter uma relação de parasitismo longa com um mesmo hospedeiro influencia muito o perfil da relação parasita–hospedeiro, pois acreditamos que a relação pode ser prejudicial ao hospedeiro. No entanto, existem infecções longas por piolhos e, após o diagnóstico, percebe-se que não há relação alguma com a morte. Temos até trabalhos recentes com três múmias de crianças de 15, 7 e 6 anos de idade que morreram de tuberculose, apesar de estarem infestadas de piolho. Isso indica que não se trata de uma infecção comprometedora, não há diagnóstico de morte por pediculose.
 
Informe ENSP: Você faz pós-doutorado na ENSP, orientada pelo Adauto Araújo. Como é seu projeto de pesquisa?
 
Juliana Dutra: Estou na Escola há um ano e vim continuar meu projeto no Programa de Apoio a Pós-Doutorado da Faperj. Uma parte do meu projeto pessoal é a paleoepidemiologia da infecção por Pediculus e tenho dois alunos envolvidos nesse projeto. Além deles, cooriento mais seis alunos no Programa de Vocação Científica (Provoc) e no doutorado. Como meus trabalhos de mestrado e doutorado envolveram ultraestrutura e análise por microscopia eletrônica, tenho desenvolvido algumas técnicas específicas para análise de material arqueológico. Parte desses resultados será apresentada oralmente no 48º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, que acontece em setembro de 2012, no Rio de Janeiro, em uma tarde dedicada à paleoparasitologia.

Seções Relacionadas:
Entrevistas

Nenhum comentário para: Estudo de piolhos pode desvendar hábitos de populações antigas