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Desigualdade social é o principal problema de saúde no país

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Publicado em:05/05/2008

No dia 31 de março, a Folha de São Paulo publicou os resultados de uma pesquisa do Datafolha (em anexo), na qual 29% dos entrevistados citaram espontaneamente a saúde como principal problema do Brasil. O índice que era de 21% em novembro – o mesmo da violência e bem perto do desemprego, apontado por 18% dos entrevistados – chegou a alcançar 41% entre os cariocas, em meio à epidemia de dengue. O mau desempenho da área, na opinião da população, colocou a saúde no centro de inúmeras discussões sobre a efetividade do SUS e sobre a necessidade de mais recursos para o setor, trazendo para os jornais a palavra de diversos especialistas em saúde pública. Para comentar os resultados da pesquisa e discutir o que pode ser feito para mudar esse quadro, o Informe ENSP, conversou com o diretor da Escola, o médico sanitarista Antônio Ivo de Carvalho, que enfatizou a melhoria dos determinantes sociais de saúde e o aprimoramento do sistema como soluções para o problema.

Informe ENSP: A que o senhor atribui o resultado da pesquisa do Datafolha?

Antônio Ivo de Carvalho
: O resultado certamente reflete a eclosão de alguns problemas pontuais que vêm sendo fartamente discutidos pela mídia, como a epidemia de dengue no Rio de Janeiro e a questão da febre amarela, mas não é só isso. Eu penso que a preocupação com a saúde é histórica. Ela está sempre na cabeça das pessoas, como uma representação social de potência, e isso fica muito claro quando se ouve: ‘Saúde é o que importa’, ‘Saúde é o que interessa’, ‘Se estamos com saúde, somos capazes de enfrentar todos os outros problemas’. Logo, sem querer minimizar o resultado da pesquisa, parece-me que essa preocupação também está muito ligada à questão da saúde como uma prioridade para os seres humanos.

Fora isso, no entanto, eu acho que realmente ainda existem alguns problemas de saúde bastante graves no país, decorrentes, principalmente, de dois fatores: o quadro de desigualdade social e a diversidade de problemas de saúde existentes no país. O Brasil enfrenta, simultaneamente, problemas de saúde relacionados à pobreza e à falta de acesso a políticas sociais, como a alta ocorrência de doenças infecto-contagiosas, mas, ao mesmo tempo, um perfil de doenças de países desenvolvidos, com altos índices de doenças crônicas resultantes da urbanização acelerada, do sedentarismo, do tabagismo, da violência, entre outros.

Informe ENSP: Vinte anos depois da Constituição de 88, que estabelece o SUS, o que podemos comemorar na área da saúde?

Antônio Ivo
: Nesses últimos 20 anos, a saúde brasileira, medida pelos índices oficiais, tem melhorado continuamente. O índice de mortalidade infantil, por exemplo, caiu de 69.1 crianças menores de um ano mortas em mil nascidos vivos, em 1980, para 26.6, em 2004. O que representa uma redução de 60% em 24 anos. A expectativa de vida ao nascer – medida que representa a estimativa de duração de vida de uma pessoa ao nascer, considerando os obstáculos, em nível de mortalidade, que ela terá de enfrentar com as taxas atuais – passou de 62.6 anos, em 1980, para quase 72 anos, hoje.

Além disso, o SUS, por conta do princípio da universalidade, agregou enormes segmentos da população que não tinham acesso a nada. Hoje, 70% da população, cerca de 140 milhões de brasileiros, dependem exclusivamente do sistema público de saúde. O restante da população, que tem plano de saúde, ainda que não se dê conta, também se utiliza eventualmente do SUS, seja nos casos de emergência, seja em procedimentos de alta complexidade, como os transplantes ou no caso das imunizações, cujas campanhas semestrais, únicas no mundo, cobrem todas as crianças do país. Também é preciso destacar alguns êxitos sanitários reconhecidos e laureados internacionalmente, como o Programa Nacional de DST/Aids, que atende cerca 180 mil pacientes com anti-retrovirais distribuídos gratuitamente, e o maior número de transplantes públicos no mundo.

Informe ENSP: O que é preciso para que todas essas vitórias sanitárias, que ocorreram nesse período e que resultam em grandes melhoras nos índices médicos de saúde, representem efetivamente mais saúde para a população?

Antônio Ivo
: É preciso entender que o SUS foi concebido para ser um sistema público e universal, com base no direito de que todo cidadão tem acesso à saúde. A Constituição, no entanto, deixa claro que o acesso à saúde não é apenas acesso a serviços de saúde, mas que depende do acesso a políticas, meios e serviços produtores de saúde, como os de educação, emprego e segurança, entre outros. A questão é que o SUS vem se desenvolvendo num ritmo mais acelerado que as demais áreas, isso faz com que o sistema de serviços de saúde ainda se veja diante de uma demanda que poderia ter sido resolvida antes de a pessoa necessitar de cuidados, ou seja, antes de adoecer.

Informe ENSP: De que forma essas questões sociais interferem na área da saúde?

Antônio Ivo
: Hoje, tanto os agravos que atingem a população excluída, resultantes da falta de acesso a saneamento, habitação, emprego e bens culturais, quanto os agravos decorrentes dos altos índices de violência urbana, e as doenças crônicas que tendem a afetar a população mais rica ou as pessoas de idade mais avançada, acabam gerando uma sobrecarga enorme no sistema de serviços de saúde. É como se a saúde estivesse tentando subir uma escada rolante que está descendo. Existe produção social de sofrimento e de incapacidades que sobrecarregam o sistema de saúde, sem que haja uma luz no fim do túnel. Se não investirmos em promoção de saúde, alteração de hábitos de vida e em uma política urbana de redução de violência, por exemplo, podemos construir quantas unidades e centros cirúrgicos quisermos que não daremos vazão à demanda.

Informe ENSP: O que tem sido feito no sentido de melhorar essa situação?

Antônio Ivo
: Hoje, o Ministério tem tentado discutir com a sociedade temas que não são propriamente da saúde, mas que são de interesse do governo e da sociedade e que interferem diretamente na saúde. Um exemplo disso é a política de redução de consumo de bebida alcoólica como estratégia para a redução de acidentes que causam mortes e incapacidades, ou ainda a questão do controle da natalidade, necessária para evitar morte por abortamento resultante de gravidez indesejada. Ou seja, a saúde vem tentando discutir questões que dependem de ações intersetoriais, pois os serviços de saúde sozinhos não têm como enfrentar um processo social que só aumenta a demanda. Não se pode expandir a capacidade de atendimento do sistema indefinidamente; é preciso pôr em prática estratégias anteriores a essa sobrecarga.

No caso do envelhecimento progressivo da população, que também sobrecarrega os serviços por sua vez, nós temos um paradoxo: quanto mais eficazes são os serviços e as políticas de saúde em prolongar a vida e evitar a morte na juventude e na infância, maior é a sobrecarga do sistema de serviços de saúde. O fato é que o SUS não pode ser considerado o único vilão da história, uma vez que os problemas que a população enfrenta nessa área não podem ser resolvidos apenas no âmbito da saúde. O que não quer dizer, é claro, que o sistema não necessite de aprimoramentos no seu modelo.

Informe ENSP: Que tipo de mudanças são necessárias?

Antônio Ivo
: Hoje, a idéia de que os serviços devem atender desordenadamente a quem chega está ultrapassada. Na verdade, é consenso que o SUS precisa aumentar, de maneira sistêmica, o vínculo entre as suas unidades, fortalecendo as redes de atenção. A ENSP vem trabalhando com o Ministério no esforço de criação e desenvolvimento de um sistema chamado Territórios Integrados de Atenção à Saúde (Teias), cuja idéia é associar, num mesmo território, os serviços de saúde a outros programas e serviços governamentais, como os de educação de jovens, de geração de renda e de atendimento aos idosos, por exemplo. O objetivo é permitir que a realidade social se transforme e seja capaz de produzir saúde, pois o serviço de saúde em si não produz saúde, ele apenas recupera a saúde perdida na forma de doença.

Dentro do sistema de saúde, é preciso aproximar as unidades entre si, para que todos os cidadãos possam, a partir do ‘Saúde da Família’, que atende atualmente cerca de 90 milhões de brasileiros, ser encaminhados a unidades de maior complexidade quando for necessário; é um sistema integrado em rede, territorializado e regionalizado. Esse é um desafio que precisa envolver todas as esferas de governo, mas também a academia: remodelar o SUS para que ele funcione efetivamente como um sistema de fato integrado.

Informe ENSP: Muitos acreditam que a área da saúde faz pouco e gasta muito. Até que ponto isso é verdade?

Antônio Ivo
: Há alguns anos, o gasto público com a saúde se mantém em cerca de US$150 anuais por habitante. Isso significa menos de um dólar por dia, o que é menos do que gastam, por exemplo, o Chile, a Argentina e o México, e significa 10% do gasto per capita no Canadá e em outros países europeus. Portanto, não é possível imaginar um sistema universal com esse nível de financiamento. Até porque, a participação pública nos gastos totais de saúde, que era de cerca de 70% há dez anos, caiu para 45%, enquanto nos países que têm sistemas mais amplos ela se mantém acima de 50%. Isso significa que, apesar de termos um sistema público de saúde, quem menos investe é o setor público.

Considerando apenas a alocação de recursos, o Brasil destina ao setor saúde 3,2 % do PIB, menos que quase todos os países da América Latina e menos da metade do que gastam os países desenvolvidos. Quando se fala em orçamento da União, a Saúde aparece como uma das maiores rubricas. Isso dá uma idéia um pouco distorcida de que a Saúde gasta muito. A comparação, no entanto, não pode ser com outros setores de governo, mas com o setor saúde no plano internacional e com as necessidades nacionais.

Informe ENSP: O que leva a essa situação?

Antônio Ivo
: Em primeiro lugar, há uma tendência do setor econômico dos governos de conter custos. A área social vive em disputa com a área econômica, tentando mostrar que os recursos dirigidos à Saúde não podem entrar apenas na coluna de gastos. A Saúde tem que ser considerada uma atividade econômica que movimenta cerca de 7 a 8% do PIB. Apoiar a saúde, permitindo que ela se movimente na prestação de serviços é uma política virtuosa para a economia do país e não onerosa. Isso sem contar que a produção de saúde numa população é um ativo econômico, no sentido de que o mercado de trabalho pode funcionar com mais eficiência.

Informe ENSP: Há alguma perspectiva de mudança quanto a isso?

Antônio Ivo
: Há várias propostas para aumento de recursos para o setor, como a EC 29, que estabelece alíquotas em cada esfera de governo para gastos em saúde, o que pode representar uma saída, principalmente com a derrubada da CPMF. A EC 29 é uma reivindicação antiga, recentemente aprovada no Senado, mas cuja aprovação na Câmara e efetivação depende de muita negociação política.

Informe ENSP: Voltando ao resultado da pesquisa da Datafolha, é possível relacionar a percepção da saúde como uma prioridade e, portanto, como um ‘problema’, à própria implantação do SUS?

Antônio Ivo
: Sem dúvida alguma, a implantação do SUS permitiu uma experiência nova a um enorme contingente da população que não tinha direito a nada. Isso certamente estimula o desejo por mais acesso ou por acesso a serviços mais diversificados e a tratamentos mais complexos. Num processo dinâmico, o SUS ajuda a construir a consciência cidadã e, portanto, a consciência sobre os direitos do cidadão. A população que encontra dificuldade ao acesso ideal, que não é atendida na hora que precisa e nem com os recursos necessários, acaba voltando sua insatisfação para os serviços, sem se dar conta de que muitos de seus problemas de saúde decorrem da falta de políticas num nível anterior.

O SUS deve produzir políticas de promoção da saúde em todos os níveis. Aqui na ENSP, estamos realizando, junto com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, um curso para conselheiros tutelares, cujo objetivo é a redução da violência. Tentar trazer a ação pública para um momento anterior à doença, seja por meio da oferta de outros serviços, seja por aperfeiçoamento da legislação, é uma política virtuosa para a Saúde.

Informe ENSP: A epidemia da dengue no Rio de Janeiro e o destaque dado pela imprensa à febre amarela também reforçam a imagem negativa da Saúde para a população?

Antônio Ivo
: A dengue retornou ao Brasil nos anos 80, e, desde então, estamos convivendo com a presença do mosquito, que não foi eliminada e nem controlada, e do vírus da doença. O que aconteceu no Rio, agora, é que esses e outros fatores externos, no âmbito da saúde, se juntaram e fizeram eclodir um surto que atingiu com gravidade uma quantidade não habitual de pessoas. De que adianta pedir à população que não estoque água, o que propicia à criação de larvas, se o fornecimento é irregular e um dia tem água na torneira e no outro não. Há uma questão de política pública local que acaba pressionando o sistema para um nível que ele não está dimensionado. A saúde vira vilã de um problema que deveria ter sido evitado antes por políticas efetivas de controle de vetores e de saneamento.

Quanto à imprensa, eu creio que ela é importante para permitir o intercâmbio de opiniões e até mesmo para a formação de opinião pública, despertando a preocupação nas pessoas e chamando atenção da sociedade e das autoridades para o problema. Isso é fundamental para que o que aconteceu por aqui não se repita no restante do país. O Ministério vem alertando sobre a presença de vetores em outras regiões, mas é preciso que as autoridades locais se mobilizem num esforço de ação social para evitar que isso se transforme em casos, se transforme em doentes.


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