Homens jovens e aborto: Qual é a perspectiva masculina diante da gravidez imprevista?
Estudo revela três modos distintos de participação masculina no processo decisório sobre a interrupção da gestação
Por Danielle Monteiro
“Mas homens passam por situação de aborto?”. Quando indagados sobre sua perspectiva frente à gravidez imprevista e à tomada de decisão pela interrupção da gestação, jovens do gênero masculino, ao participarem da pesquisa Heterossexualidades, Contracepção e Aborto (HEXCA), lançaram logo essa pergunta, com tom de espanto. A reação dos rapazes não surpreende. Afinal, conforme apontam estudos, a participação masculina na reprodução e no processo decisório sobre a interrupção da gravidez geralmente não é incluída no debate e, nem mesmo, na própria literatura científica sobre aborto.
Na tentativa de preencher essa lacuna, a pesquisa HEXCA buscou analisar a concepção de homens frente à gravidez imprevista e o aborto, adotando uma perspectiva relacional de gênero para a análise do fenômeno. Um dos artigos com os resultados do estudo analisou a perspectiva de homens jovens e foi publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). O artigo revela que a complexidade das relações de poder estabelecidas entre o casal, seus familiares e amigos gera distintos desfechos em relação à participação masculina no processo decisório sobre a interrupção da gravidez.
Segundo os pesquisadores, abordar o tema do aborto na perspectiva dos homens é imprescindível, pois as tensões entre gêneros, assim como as diferenças entre classes sociais e as desigualdades de raça e de escolarização, são igualmente parte integrante do processo decisório sobre a gravidez imprevista no Brasil.
“Assumir a tensão instaurada entre os gêneros na questão do aborto, entre o princípio da autonomia reprodutiva feminina e o da responsabilidade masculina com a concepção, a contracepção e a decisão de levar ou não a gravidez a termo, é uma tarefa central para aqueles que pesquisam o tema por um prisma antropológico nas ciências sociais e na saúde coletiva. Decerto, o debate sobre o aborto é feminista, ao apostar na premissa política do direito ao próprio corpo por parte das mulheres, mas não deve ser feminino, podendo incluir os homens na reflexividade inerente ao assunto”, argumentam os pesquisadores.
Para a realização do estudo, foram entrevistados 13 homens, com idades entre 18 e 27 anos, de camadas populares e médias, residentes no estado do Rio de Janeiro, com ao menos um episódio de interrupção da gravidez em suas biografias. A pesquisa HEXCA também foi realizada com a geração de homens mais velhos, entre 40 e 49 anos, que não foi objeto de análise desse artigo.
Formas de participação dos homens jovens no processo decisório do aborto
O estudo revela que existem três modos distintos de participação ou envolvimento masculino no processo de negociação entre o par e/ou seus familiares, que culminam no desfecho da interrupção da gravidez. São eles: desconhecimento prévio do aborto, caso em que não houve negociação entre o par; acordo consensual entre o casal pela decisão de interromper a gestação; e desacordo entre o casal, prevalecendo a decisão feminina favorável ao aborto, apesar da posição contrária do parceiro.
A situação de desconhecimento prévio do aborto, caso em que não houve negociação entre o par, foi mais comum entre os informantes de classes populares, estando presente entre cinco dos oito rapazes.
Já no caso de acordo consensual entre o casal pela decisão do aborto, foram encontradas duas situações distintas: o consenso (quando ambos desejam o aborto) e o acordo por concessão. “No acordo por concessão, o parceiro cede (embora quisesse ter ou ‘assumir’ o filho, na expressão popular) em favor do desejo ou decisão da mulher, concordando com o aborto. No outro grupo, os parceiros reconhecem a precedência da autonomia reprodutiva feminina e não se interpõem ao aborto”, explicam os autores do artigo. Na segunda classificação, estão presentes as narrativas de quatro entre os cinco informantes de camadas médias: “Em termos gerais, a paternidade não se impõe como uma aspiração imediata para este grupo de jovens de camadas médias. Todos concordaram com a decisão de suas parceiras, sendo também favoráveis ao aborto ou deixando-as livres para decidir, baseados em uma postura que defende ser da mulher a decisão no tocante ao desfecho de uma gravidez”, narram os autores do artigo.
Em contrapartida, no que diz respeito ao terceiro modo de participação masculino – desacordo entre o casal, prevalecendo a decisão feminina favorável ao aborto, a despeito da posição contrária do parceiro, com ajuda ou não deste –, não foram encontrados casos entre os informantes de camadas médias. Por outro lado, essa forma de participação masculina esteve presente em metade dos informantes de camadas populares. “Era comum entre os jovens de camadas populares afirmar ser contrário ao aborto, em termos gerais, e também contrário ao aborto vivido por si, especificamente. É possível que a posição comum, entre os rapazes de camadas populares, contrária ao aborto, explique o desacordo entre o casal. No entanto, em alguns casos, esse desacordo não se traduz em falta de apoio”, explicam os pesquisadores.
Segundo os autores do artigo, o papel desempenhado pela gravidez na publicização da virilidade masculina pode explicar o desacordo no casal e a contrariedade dos homens: “As normas de gênero que conferem imenso valor à dimensão ‘assumir o que fez’ nas trajetórias dos jovens populares ajudam a compreender que o desenlace majoritário, em evento subsequente, seja o de levar a gestação a termo. É como se o jovem não pudesse, mais uma vez, se furtar de ‘assumir sua responsabilidade’ no processo reprodutivo, com pena de colocar sua identidade de homem maduro e viril em risco”.
Ainda no que diz respeito a esse terceiro modo de participação masculina, o estudo também indica outro elemento frequentemente presente na narrativa dos homens: a contrariedade ou insegurança das parceiras no que se refere ao relacionamento em si ou a sua condição social. “É como se os homens revelassem algumas de suas próprias suspeitas em relação aos motivos que levaram as parceiras a decidirem pelo aborto, estando eles de acordo ou não: na ocasião do evento, eles estão desempregados, são mais novos, ou ainda estão em processo de escolarização”, afirmam os pesquisadores.
Não foi encontrada, entre os rapazes de ambas as classes sociais, a situação de imposição masculina para não levar a gestação adiante, o que, para os autores do artigo, é um resultado positivo e contrasta com o que foi observado nas narrativas de homens mais velhos, com idade entre 40 e 49 anos, que também foram contemplados pela pesquisa HEXCA. Os resultados do estudo com essa faixa etária foram abordados em outro artigo científico.
Inserções sociais e desfechos dos eventos reprodutivos
Ao analisar os eventos reprodutivos segundo inserção social, o estudo revela que os jovens de classe média apresentaram um único aborto em seu percurso. Já no caso dos rapazes de camadas populares, as trajetórias reprodutivas são mais complexas: entre os oito sujeitos, três deles apresentam dois abortos em suas trajetórias; em outro registro, quatro já são pais (metade do grupo estudado).
“O dado aponta para, pelo menos, três questões: o patente adiamento da paternidade entre os rapazes de camadas médias; uma prontidão menos evidente, entre os jovens desse grupo, em levar a termo a primeira gestação; os jovens de camadas populares estão mais sujeitos às intercorrências de gestações e abortos, sendo justamente este o grupo com menos autonomia para realizar abortos em condições seguras, devido à ilegalidade”, observam os pesquisadores.
Diante dos resultados, os autores do artigo defendem a necessidade de um debate mais amplo sobre descriminalização do aborto, para fazer frente ao crescimento do conservadorismo moral e religioso que assola o Estado brasileiro, comprometendo sua laicidade. “Articulações políticas no hemisfério sul têm incidido em grande retrocesso frente às conquistas obtidas nas últimas décadas no Brasil, no tocante à formulação de políticas públicas para afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos. Há no legislativo brasileiro uma série de iniciativas que visam impedir a prática de aborto em qualquer circunstância, anulando os três permissivos legais existentes no país para a autorização do aborto legal – risco de vida da gestante, gravidez decorrente de estupro e gravidez de fetos anencéfalos –, bem como impedir a distribuição da contracepção de emergência no Sistema Único de Saúde”, alertam.
A pesquisa HEXCA
A pesquisa Heterossexualidades, Contracepção e Aborto (HEXCA) foi realizada, paralelamente, no Rio de Janeiro, Brasil, em Buenos Aires, na Argentina, e em Bogotá, na Colômbia.
Financiado pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/Instituto de Medicina Social/UERJ), o estudo é fruto de uma cooperação com a Universidade de Buenos Aires e a Universidade Nacional da Colômbia.
Foi coordenado pela professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Autonomia e Saúde (NAUS/UERJ), Maria Luiza Heilborn; a antropóloga e professora da Universidade Nacional da Colômbia, Mara Viveros Vigoya; e a pesquisadora da Universidade de Buenos Aires, Mónica Petracci.
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