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“Migração é um determinante social da saúde”, afirma pesquisador em seminário da Fiocruz

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Publicado em:27/06/2025
*Por Tatiane Vargas

Evento discute justiça reprodutiva, gênero e migração a partir de uma perspectiva interseccional e de direitos humanos

A migração como fator estruturante das desigualdades em saúde foi um dos destaques do segundo dia (24/6) do Seminário Nacional Interculturalidade, Migrações, Gênero e Saúde, promovido pelo Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). O evento teve como foco central a justiça reprodutiva e seus vínculos com as dinâmicas migratórias e de gênero.

O convidado da conferência foi o doutor em Saúde Coletiva pela Fiocruz e mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ, Richarlls Martins. Pesquisador, professor adjunto da UFRJ e presidente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento da Presidência da República, Martins é também coordenador executivo do Plano Integrado de Saúde nas Favelas do Rio de Janeiro (Fiocruz). Ele apresentou uma análise crítica sobre as interseções entre saúde, migração, reprodução e justiça social.

“Migração é um determinante social da saúde. Ela impacta diretamente os modos de nascer, viver e morrer das pessoas”, destacou o pesquisador, ao abordar a necessidade de políticas públicas sensíveis às desigualdades estruturais que afetam especialmente mulheres migrantes, negras e pobres. A conferência, coordenada pela pesquisadora Corina Mendes (Fiocruz), está disponível em vídeo.

Justiça reprodutiva: entre disputas históricas e a construção de uma agenda democrática

A exposição abordou a justiça reprodutiva como conceito-chave para entender as disputas contemporâneas em torno dos direitos das mulheres e das populações migrantes. Martins destacou que os direitos reprodutivos, historicamente, foram marcados por políticas de controle populacional que frequentemente violaram os corpos de mulheres pobres, negras e migrantes.

“Historicamente, a política populacional esteve cercada por um viés controlista, incidindo diretamente sobre a fecundidade feminina. A justiça reprodutiva emerge como reação a essas violações e como expressão da luta por autonomia”, afirmou.

O pesquisador relembrou o papel dos movimentos feministas, especialmente nos anos 1980, que denunciaram práticas como a esterilização forçada e lutaram pela autonomia reprodutiva das mulheres. Destacou ainda a atuação das mulheres negras brasileiras, que pautaram o debate nacional e provocaram ações como a criação de uma CPI sobre esterilização forçada no início dos anos 1990.

Do Cairo a Pequim: direitos reprodutivos como pauta global

O conferencista enfatizou o marco representado pela Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo (1994), que reconheceu internacionalmente os direitos reprodutivos como parte dos direitos humanos.

Contudo, Martins observa que o conceito de justiça reprodutiva ainda estava ausente nesse reconhecimento internacional, mesmo sendo defendido por movimentos de mulheres negras desde aquela década. Enquanto os direitos reprodutivos garantem a escolha sobre ter ou não filhos, a justiça reprodutiva amplia o debate, exigindo condições concretas para o exercício dessa escolha, como acesso à saúde, alimentação e segurança.

“Não é possível falar em direitos reprodutivos sem considerar a fome, o racismo, a violência e a desigualdade educacional. É disso que trata a justiça reprodutiva”, pontuou. A Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim (1995), também foi relembrada como um momento decisivo para a institucionalização dos direitos sexuais e da perspectiva de gênero nos documentos da ONU. Mas o avanço gerou reações: foi naquele momento que setores conservadores internacionais passaram a mobilizar o termo “ideologia de gênero”, como tentativa de barrar os novos consensos.

Interseccionalidade e resistência: o legado dos movimentos de mulheres negras

Martins destacou que conceitos hoje fundamentais, como interseccionalidade, foram consolidados em espaços como a Conferência de Durban (2001), fruto direto da mobilização internacional de mulheres negras. A interseccionalidade - que reconhece a sobreposição de opressões relacionadas a raça, classe, gênero e sexualidade - tornou-se central na formulação de políticas públicas mais inclusivas.

“A justiça reprodutiva é uma agenda construída pelas vivências e lutas das mulheres negras, que ocuparam espaços políticos e sociais e imprimiram novas direções às políticas públicas”, afirmou. O pesquisador ressaltou ainda os avanços institucionais no Brasil nos anos 2000, como a criação de políticas específicas para a saúde da população negra e LGBT, além de planos nacionais de direitos sexuais e reprodutivos.

Migração, natalidade e desafios contemporâneos

Em um cenário marcado por transformações demográficas, como o envelhecimento da população brasileira e a queda da natalidade, o pesquisador alertou para o risco de retorno de políticas natalistas conservadoras que instrumentalizam os corpos das mulheres migrantes como resposta à crise demográfica.

“A migração está no centro da justiça reprodutiva. Ignorar isso é deixar de enfrentar as desigualdades que afetam diretamente a fecundidade, a saúde e a vida das mulheres migrantes”, advertiu.

Martins mencionou a importância da Lei de Migração (2017) e o reingresso do Brasil no Pacto Global da ONU para Migração como marcos positivos. Contudo, apontou lacunas: até 2023, o SUS não possuía orientações normativas específicas para a atenção à saúde da população migrante. A primeira norma técnica foi publicada apenas em abril daquele ano.

A situação é ainda mais preocupante quando se observam dados de fecundidade entre mulheres migrantes, como as venezuelanas, que apresentam taxas superiores à média nacional, realidade que exige respostas específicas das políticas públicas.

Dados inéditos do Censo e o futuro das políticas interseccionais

A conferência foi encerrada com a expectativa pelos microdados inéditos do Censo Demográfico 2022, que serão divulgados no próximo dia 27 de junho. Pela primeira vez, o IBGE incluirá dados integrados sobre fecundidade e migração.

“Esses dados serão fundamentais para orientar políticas públicas mais justas, baseadas em evidências e comprometidas com a equidade. Porque migrar, ser mulher, ser negra, ser jovem, tudo isso transforma radicalmente o modo de nascer, viver e morrer”, concluiu.


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