Ciência e prevenção: conheça o trabalho do Nosmove na vigilância de mosquitos vetores de arbovírus
Por Barbara Souza
Após a grave epidemia de dengue em 2024, com mais de 6 mil mortes confirmadas pela doença, o Brasil segue em alerta. Apesar da redução no número de casos na comparação ao mesmo período do ano passado, a situação segue preocupante: até abril de 2025, o país registrou mais de um milhão de casos prováveis, com 681 mortes confirmadas e 714 em investigação, segundo dados do Ministério da Saúde. Em São Paulo, estado com o pior cenário, circulam, simultaneamente, todos os quatro sorotipos do vírus da dengue. Múltiplos sorotipos podem aumentar as chances de reinfecções, o que gera risco de formas mais graves da doença.
Mesmo com a inclusão da vacina Qdenga no Calendário Nacional de Vacinação, priorizando crianças e adolescentes de 10 a 14 anos, as medidas preventivas, como a eliminação de criadouros do mosquito Aedes aegypti, vetor principal dos vírus dengue, Zika e chikungunya, seguem fundamentais para conter a propagação da dengue e de outras arboviroses . Nesse sentido, o Núcleo Operacional Sentinela de Mosquitos Vetores, o Nosmove, da Fiocruz desempenha um papel fundamental de monitoramento contínuo das populações de mosquitos nos diferentes campi da Fiocruz, impactando o controle e a prevenção das arboviroses.
Localizado no campus Manguinhos, no Rio de Janeiro, o Nosmove, vinculado a Vice-Presidência de Atenção, Ambiente e Promoção da Saúde-VPAAPS/Fiocruz, realiza vigilância entomológica contínua, incluindo a coleta e análise de ovos, larvas e mosquitos adultos para identificação de locais com maior infestação para direcionar as intervenções, além de detectar vírus circulantes nos mosquitos adultos coletados nas dependências da instituição. O Nosmove é coordenado pela entomologista e pesquisadora do Laboratório das Interações Vírus-Hospedeiros do IOC/Fiocruz, Nildimar Honório, e pelo pesquisador do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental, da ENSP/Fiocruz, Paulo Bruno.
Eles alertam para a complexidade cada vez maior das arboviroses. “São doenças multifatoriais. Por isso, é fundamental conhecer diferentes aspectos da biologia e da ecologia dos mosquitos vetores, visto que há vários parâmetros importantes no processo de transmissão, relacionados a eles, ao hospedeiro — que, no caso, é o homem — e aos vírus, com seus diferentes sorotipos e graus de virulência”, explica Nildimar.
O desafio aumenta à medida em que se agravam as mudanças climáticas, a urbanização desordenada e a precariedade no saneamento básico — fatores que favorecem a proliferação do mosquito Aedes aegypti. Com isso, os casos já não aumentam apenas em determinadas épocas do ano, e a vigilância precisa ser constante. Eliminar água parada em vasos, calhas e recipientes expostos é uma das formas eficazes e imediata de prevenção — e depende do engajamento de todos. “Em 2024, houve uma epidemia sem precedentes no país, com mais de 6 milhões de casos. Antigamente, havia uma concentração muito intensa nos meses de verão, mas hoje há registros de casos de arboviroses mesmo no inverno, com transmissão ao longo do ano todo”, comenta a pesquisadora.
A responsabilidade com a saúde das pessoas que transitam pela Fiocruz é uma das principais preocupações do Nosmove. “Aqui no campus Manguinhos temos locais sensíveis, como o Centro de Saúde Escola da ENSP, o Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI), o Núcleo de Saúde do Trabalhador (Nust), a Creche Fiocruz e o Instituto de Ciência e Tecnologia em Biomodelos (ICTB). São locais prioritários para o monitoramento vetorial, devido à intensa circulação de pessoas e vigilância dos primatas não-humanos. Pensando em proteger trabalhadores, estudantes e visitantes, o Nosmove envia relatórios técnicos mensalmente para as unidades, informando sobre focos com água parada, presença de ovos de Aedes, larvas e mosquitos coletados em cada inspeção entomológica, a fim de direcionar as ações de vigilância e controle vetorial, incluindo a eliminação dos criadouros”, detalha o pesquisador da ENSP sobre a atuação do núcleo, que também abrange espaços da Fiocruz fora de Manguinhos, como o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), o Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), os campi Maré e Fiocruz Mata Atlântica e o Complexo Tecnológico de Medicamentos de Farmaguinhos, em Jacarepaguá.
“Com o monitoramento, com a busca ativa e vistorias sistematizadas, podemos fazer uma intervenção eliminando criadouros. Se há locais que recebem pacientes virêmicos e uma população de mosquitos está ali, é possível que se estabeleça um ciclo de transmissão”, completa Nildimar. Ela destaca que, até 9 de abril deste ano, o núcleo já havia enviado aos diferentes setores das unidades vistoriadas 76 relatórios das inspeções das populações de mosquitos adultos.
No Núcleo, Nildimar e Bruno contam com uma equipe de quatro profissionais terceirizados — biólogos e técnicos — contratados por projeto da Coordenação de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Presidência da Fiocruz que atuam desde a implantação das armadilhas de oviposição, captura de mosquitos adultos até a identificação dos mosquitos e detecção viral. Eles coletam e analisam ovos, larvas e pupas em criadouros naturais, como bromélias, e também em artificiais, como canteiros de obras. Para a captura de mosquitos adultos é utilizado um aspirador movido à bateria, que coleta diferentes espécies de mosquitos, incluindo Ae. aegypti, Ae. albopictus, Culex quinquefasciatus, dentre outras espécies em menor frequência.
Além de realizar os serviços de vigilância entomológica e de subsidiar ações de saúde da Fiocruz por meio de relatórios com informações sistematizadas, o Nosmove atua em outras frentes: pesquisa, divulgação científica e formação. O núcleo recebe alunos de pós-graduação para a realização de pesquisas, ministra palestras em escolas, unidades de saúde e comunidades, e capacita profissionais e gestores do SUS. Um exemplo é a colaboração com o estado do Rio de Janeiro, na qual monitora os mosquitos e forma profissionais em campo para atuarem na vigilância entomovirológica. O trabalho vai da captura dos mosquitos até a detecção do viral, caso o inseto esteja infectado — seja dengue, Zika, chikungunya ou até mesmo a busca pelo vírus oropouche.
Em breve, o Nosmove vai lançar diferentes produtos de projetos importantes, resultados de parceria com o Ministério da Saúde. Serão eles um manual das metodologias de estratificação de áreas de risco para arboviroses urbanas, um atlas, um painel e três ARBOPOPs (protocolos operacionais das metodologias de estratificação). Todo material foi elaborado no âmbito do programa ArboAlvo que, desde 2019, visa a aprimorar a vigilância e o controle de arboviroses urbanas como dengue, Zika e chikungunya. O projeto foi realizado com profissionais de quatro capitais brasileiras: Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Campo Grande (MS) e Natal (RN).
As iniciativas contribuem para a identificação de áreas de maior risco de transmissão dessas doenças, permitindo intervenções mais eficazes e direcionadas, a fim de predizer surtos e/ou epidemias. Tudo foi feito a partir de dados do Ministério da Saúde, coletados pelos serviços de vigilância das cidades sentinela, e de outras fontes governamentais como, por exemplo, o IBGE, sobre os territórios.
O manual reúne cinco metodologias para auxiliar gestores e equipes de profissionais do SUS na otimização das ações de vigilância e do direcionamento de recursos no enfrentamento das arboviroses, enquanto identifica potenciais áreas de maior risco por meio da integração de indicadores epidemiológicos, entomológicos, socioambientais. (Estratificação pelo Índice de Receptividade Territorial às Arboviroses Urbanas; Estratificação pela Análise de Cluster de Casos de Arboviroses; Estratificação pela Análise de Cluster do Índice de Densidade de Ovos de Aedes, Estratificação pela Detecção de Clusters Simultâneos de Pronta Resposta e Estratificação por meio de Modelos estatísticos espaço-temporais)
Também está prestes a ser disponibilizado um painel nacional inédito que cruza dados epidemiológicos, entomológicos e socioambientais, permitindo a consulta a uma série temporal longa de dados de todos os municípios brasileiros. Por meio da plataforma, será possível comparar as diferentes dimensões de informações. Já o Atlas condensa gráficos, tabelas, mapas e textos que traçam um panorama do cenário das arboviroses, facilitando tomadas de decisões pelos gestores.
O ArboAlvo tem como prioridade a formação de profissionais de saúde sobre metodologias de estratificação de áreas prioritárias para intervenção em arboviroses urbanas. A iniciativa é coordenada pelo IOC, em parceria com a ENSP/Fiocruz, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz). O Programa conta ainda com pesquisadores do Programa de Computação Científica (PROCC/Fiocruz), da Fiocruz Minas, dos Institutos de Estudos em Saúde Coletiva e de Matemática da UFRJ e do Instituto de Matemática e Estatística da UFF.
Parceria de longa data
A parceria entre Paulo e Nildimar começou em 2008, quando se conheceram durante ações de combate à dengue em Manguinhos. Os pesquisadores frequentavam as reuniões do Fórum Social de Manguinhos, que à época enfrentava um grave surto da doença na comunidade. Eles, juntamente com outros/as servidores/as da Fiocruz e lideranças comunitárias locais, criaram o Programa de Controle da Dengue em Manguinhos. Mais tarde, a iniciativa foi absorvida pela antiga Rede Dengue, da Fiocruz. Em 2011, realizaram um projeto de monitoramento das escolas e das unidades de saúde da região. Com a participação da população local, utilizavam armadilhas de oviposição para identificar a presença do mosquito transmissor. Incentivada pelo pesquisador da ENSP/Fiocruz e um dos maiores especialistas em endemias no Brasil, Paulo Sabroza, Nildimar criou o Nosmove.
Antes de receber esse nome, o núcleo teve outras denominações: Laboratório de Controle de Vetores e Pragas e Núcleo de Apoio às Pesquisas em Vetores (Napve). O Nosmove ocupa uma casa no campus de Manguinhos onde morou o ilustre técnico de laboratório Joaquim Venâncio, que dá nome à EPSJV.