Em webinário da ENSP, profissionais defendem criação de linha de cuidado de saúde da criança negra
Por Barbara Souza
As três profissionais de saúde convidadas para palestrar no webinário “Saúde da Criança Negra: avanços necessários ao cuidado integral” defenderam a criação de uma linha de cuidado específico para essa população. Realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) nesta segunda-feira (16/12), o evento teve a participação da médica de família e comunidade Larissa Jatobá, da especialista em Serviço Social e Saúde Michelle Garcia e da doutora em Odontopediatria Letícia Martins. A moderação foi feita pela assessora da Vice Direção de Atenção à Saúde e Laboratórios de Saúde Pública (VDAL/ENSP) e doutora em Saúde Coletiva pelo IFF/Fiocruz, Claudia Fonseca Santamarina. A atividade está disponível na íntegra no canal da ENSP no YouTube, onde foi transmitido ao vivo.
Durante pouco mais de duas horas, elas discutiram sobre os principais entraves à integralidade do cuidado à saúde das crianças negras, como os determinantes sociais, com destaque para o racismo e suas diversas expressões. Além disso, o webinário propôs formas de profissionais de todos os níveis de atenção podem aprimorar suas práticas para que as crianças negras tenham melhor acesso à saúde. A ideia é unir esforços para reduzir indicadores relacionados ao adoecimento e à morte das crianças negras. “O racismo é um determinante social do adoecimento das populações e tem incidido de forma silenciosa na saúde e na longevidade das crianças negras”, afirmou Claudia ao lembrar que estudos apontam que crianças negras tem 39% mais chances de morrer antes dos 5 anos.
Médica em atuação na Clínica da Família Anthidio Dias da Silveira, no Rio de Janeiro, e mestre em Saúde Pública pela ENSP, Larissa Jatobá compartilhou sua experiência como mulher negra na graduação em Medicina, sua passagem pelo mestrado e analisou o cenário da saúde das crianças negras. “A gente não vai bem. Dados epidemiológicos mostram que elas estão com os piores indicadores de saúde, e também sociais. São mais pobres, têm mais riscos de doenças infectoparasitárias, de desfechos negativos pós-infecções respiratórias, além da pior escolaridade, pior acompanhamento de pré-natal e outros”, lamentou. Como sinais de que uma criança pode estar sofrendo racismo, Larissa citou condições de pele e cabelo, como alopécia, dermatite atópica, ressecamento e feridas e piolho, além de comprometimentos do desenvolvimento psicomotor e da aprendizagem.
Larissa apontou que há lacunas na formação dos profissionais de saúde que prestam esse cuidado, o gera desdobramentos. “Espaços de cuidado também são formadores, mas não tenho visto que continuamos aprendendo. Percebo que os livros-texto que orientam nosso trabalho, como a caderneta da criança, não fazem sequer referência à palavra racismo”, disse. Outra crítica que a médica fez foi sobre a abordagem no atendimento às crianças, que geralmente as deixa em segundo plano, focando nos pais ou demais cuidadores. “Pergunta-se muito pouco para elas próprias o que estão sentindo e sofrendo, mas centrar o cuidado na criança é muito importante”, defendeu.
Assistente social da Pediatria do Hospital Federal de Bonsucesso e especialista em Serviço Social e Saúde pela Uerj, Michelle Garcia compartilhou um pouco da sua experiência na unidade de saúde, que é de nível terciário de complexidade. “As crianças que atendo são filhas dessa realidade, de eventos que acometem majoritariamente mulheres negras. A falha no cuidado vem antes do nascimento, em muitos casos”, disse ao mencionar problemas que marcam majoritariamente as pessoas negras, como baixa qualidade de pré-natal e de assistência ao parto, violência obstétrica e mortalidade materna. “Gostaria muito que a atenção básica fosse mais atuante e presente, pois vários casos desses poderiam ser evitados”, completou.
Michelle também destacou que muitas dessas crianças são filhas de família monoparental feminina, na qual a mulher que precisa “prover tudo” e, muitas vezes, isso resulta no agravamento de quadros de saúde. “As condições de vida das crianças negras é que produzem o adoecimento e são atravessadas pelo racismo. Precisamos ter um olhar racializado para compreender o cenário e oferecer serviço de saúde que atenda às necessidades dessas crianças. Ou então, vamos continuar perdendo vidas por causas evitáveis”, alertou a assistente social.
Professora da Faculdade de Odontologia da UFMG e doutora em Odontopediatria pela mesma universidade, Letícia Martins abordou os aspectos sociais, ambientais, culturais e psicológicos que afetam a saúde das crianças negras. Ela também compartilhou a pesquisa sobre saúde bucal que realizou recentemente em Ribeirão das Neves (MG) com 369 crianças de 4 a 6 anos. “62,5% nunca foram ao dentista. 63,3% não usam fio dental e 17% não usam pasta com flúor. 76,5% apresentam cárie”, destacou a palestrante, listando ainda a ocorrência alta de outras condições bucais nessa população, como oclusão e traumatismo dentário. “A população negra está inserida nos piores contextos de determinantes sociais, maior prevalência de doenças e não são ainda abraçadas. Precisamos cada vez mais de debates como esse e trabalhar em cima disso para melhorias efetivas”, afirmou.
As palestrantes concordaram sobre a presença de mais profissionais de saúde negros como um meio de ter uma assistência melhor para crianças negras. Além disso, elas também comentaram sobre a alimentação delas, repleta de alimentos ultraprocessados de baixo valor nutricional, o que tem impactado diretamente a saúde bucal, como destacado por Letícia Martins. Ao tecer críticas à pressão das indústrias alimentícia e farmacêutica, preocupada com os baixos índices de aleitamento materno das crianças negras, a médica Larissa Jatobá disse que a “população deveria estar melhor informada sobre isso e a regulamentação também deveria ser melhor”. Larissa Jatobá falou sobre alguns achados da pesquisa que realizou durante o Mestrado Profissional em Saúde Pública, descritos na dissertação “Saúde da criança negra e cuidado antirracista na Atenção Primária à Saúde”.
Entre a leitura das mensagens recebidas durante o webinário, a moderadora Claudia Santamarina fez um balanço das falas das convidadas e ressaltou a importância de haver uma linha de cuidado específico para as crianças negras, com orientações e meios, investimento em educação permanente em saúde para profissionais mas também em educação popular sobre o tema. “As falas apontam para a necessidade urgente da criação de uma linha de cuidado de saúde da criança negra que contemple esses aspectos, inclusive nutricionais, odontológicos e também os três níveis de atenção”, disse. “Com essa recomendação que vocês três fazem, vemos como é importante olhar para a infância da criança negra com as especificidades que existem no universo da criança. E olhar para isso com a dimensão da equidade. Não basta a gente pensar só no acesso”.
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