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'Cuidado que medica, mas não sabe retirar medicação'; evento debate desafio da retirada dos psicofármacos

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Publicado em:06/12/2024

Por Bruna Abinara 

O aumento do uso das drogas psiquiátricas e os obstáculos para a desmedicalização e a desprescrição do cuidado com saúde mental foram o tema central do 8º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas. Realizada pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), a atividade reuniu pesquisadores nacionais e internacionais para debater novas abordagens em relação à retirada segura dos psicofármacos. O evento aconteceu nos dias 5 e 6 de dezembro, no auditório na Escola, com transmissão pelo Youtube 

A mesa Panorama internacional sobre as iniciativas e os desafios da retirada das drogas psiquiátricas abriu a programação do primeiro dia de evento. Idealizador do seminário, o pesquisador do LAPS/ENSP Paulo Amarante explicou que o assunto adquire potência internacional pela crescente produção acadêmica sobre os psicofármacos e, também, pela criação do Instituto Internacional pela Retirada das Drogas Psiquiátricas. Paulo caracterizou o aumento do uso e a dificuldade na retirada dessas substâncias como um novo e grave problema de saúde pública. “O cerne do debate é a necessidade de despatologizar, desmedicar, desprescrever e desdiagnosticar”, concluiu o pesquisador. 

“Temos uma forma de cuidado que medica as pessoas, mas que não sabe retirar a medicação”, afirmou o jornalista estadunidense especializado no tema da indústria farmacêutica na psiquiatria Robert Whitaker. O editor do site Mad in America apresentou o panorama histórico do campo e citou inciativas internacionais que apostam em novos modelos de cuidado.  

Robert explicou que uma mudança da narrativa sobre os transtornos mentais ocasionou o aumento do consumo de psicofármacos. No passado, condições depressivas ou ansiosas, por exemplo, eram vistas como episódicas. Dessa forma, o tratamento desses quadros não estava atrelado às drogas psiquiátricas. Porém, uma reformulação teórica na década de 1980 caracterizou as condições psiquiátricas como doenças biológicas associadas a um desequilíbrio químico. A partir de então, a recuperação passou a ser centrada na administração de medicamentos. Segundo o especialista, essa narrativa era falsa e escondia os efeitos danosos das drogas psiquiátricas.  

“Essas drogas, em vez de corrigir uma anormalidade, estavam criando uma anormalidade. Em 1996, esse fenômeno foi descrito: essas substâncias perturbam a atividade normal do cérebro, que, em resposta, desenvolve uma série de adaptações compensatórias em sua atividade. Assim, o cérebro passa a operar em uma maneira qualitativa e quantitativamente diferente do normal”, explicou Robert. Da constatação de que o organismo se modifica na presença das drogas psiquiátricas, explicou o jornalista, é possível entender os efeitos adversos a curto e longo prazo, além dos sintomas de abstinência na retirada da medicação.  

“Essa é uma história de esperança”, insistiu o especialista. Mesmo que o processo seja difícil, há muitas histórias de quem conseguiu se recuperar dos danos causados pelos psicofármacos. O compartilhamento de experiências e o apoio entre usuários foram os pontos principais destacados por Robert nas iniciativas bem-sucedidas de desmedicalização 

“No Brasil, vocês têm os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), um recurso público preparado para oferecer serviços de desmedicalização, algo que não existe na maioria dos países. Além disso, pelo mundo, não existem tantos seminários sobre o tema a nível nacional, como esse é. Por isso, vocês têm a oportunidade de fazer algo verdadeiramente transformador e liderar essa mudança”, concluiu.  

Em seguida, o psicólogo clínico e professor sênior da Universidade de Zurich, na Suíça, Michael Pascal Hengartner, ressaltou que muitas pesquisas ainda estão sendo desenvolvidas e que muito ainda não se sabe sobre os efeitos da retirada das drogas psiquiátricas no cérebro. Porém, ele destacou que o fato de as substâncias gerarem síndrome de abstinência não é uma descoberta nova, mas que os profissionais do campo têm negado e negligenciado a problemática. "Esse fenômeno é conhecido desde que essas drogas foram criadas e introduzidas no mercado", garantiu o pesquisador. 

Michael também explicou que, na década de 1990, o termo "síndrome de descontinuação" foi criado pela indústria farmacêutica, que buscava desassociar os antidepressivos da conotação negativa de "síndrome de abstinência". "É um termo enganoso que não é apoiado por evidências e minimiza as potenciais consequências adversas da retirada de antidepressivos", declarou o professor.  

O pesquisador destacou que a retirada ou diminuição na ingestão de antidepressivos causam abstinência, porque esses medicamentos geram dependência. Na farmacologia básica, dependência e vício são fenômenos diferentes. Segundo o professor, enquanto o vício é uma consequência psicológica caracterizada por um comportamento compulsivo e impulsivo, a dependência designa uma reação fisiológica quando o organismo se adapta por conta da presença de uma droga, sendo resultado do uso prolongado de determinadas substâncias. 

"A síndrome de abstinência de antidepressivos afeta em torno de 30% a 60% dos usuários, dependendo do tipo de fármaco e da duração do tratamento, e envolve sintomas mentais e físicos", explicou Michael. Por isso, o processo de diminuição ou de retirada das drogas psiquiátricas pode levar de meses até anos para ser concluído  

Mesa de abertura 

Na mesa de abertura do seminário, a Vice-Diretora de Ambulatórios e Laboratórios da ENSP, Fátima Rocha, que representou o diretor da Escola, Marco Menezes, destacou que a pedagogia da instituição posiciona o sujeito no centro do processo, buscando a promoção dos direitos humanos e uma política do cuidado emancipatória. Para a vice-diretora, o tema do seminário é de suma importância para o campo da saúde por tratar a biomedicalização e se propor a enfrentar uma série de desafios da área. "Vida longa à discussão da retirada dos psicofármacos e que possamos incorporar nas políticas públicas da região essa transformação no processo de cuidado", declarou.  

Em seguida, a coordenadora do LAPS/ENSP e presidente da Abrasme, Ana Paula Guljor, atribui à ENSP um papel central na promoção dos debates no campo da saúde mental. "Acreditamos que a discussão da patologização vida seja urgente no mundo e no Brasil, onde as respostas para questões coletivas são individualizadas e, com isso, cada vez mais se culpabiliza o indivíduo e patologiza situações que dizem respeito à determinação social do processo saúde doença", afirmou Ana Paula.  

Já o representante da organização uruguaia Observatório Latino-Americano de Direitos Humos e Saúde Mental Andrés Techera ressaltou que o evento promove o intercâmbio de saberes e o desenvolvimento de debates que levam à reflexão sobre três pontos principais. Em primeiro lugar, o impacto das desigualdades sociais estruturais para a naturalização da vulnerabilidade de parcelas da população. Em segundo, a precarização dos sistemas de saúde, que não conseguem responder aos problemas sociais, gerando um aumento no consumo de drogas psiquiátricas em decorrência da falta de acesso aos tratamentos adequados. Por fim, Andrés destacou a importância da cooperação entre instituições e universidades para a criação de novos dispositivos de cuidado e formação de profissionais capacitados. 

 Assista ao evento na íntegra pelo canal da ENSP no Youtube




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