Artigo analisa práticas e significados da ultrassonografia obstétrica em mulheres com abortamento
Por Bruna Abinara
A ultrassonografia (USG) obstétrica é uma prática central na atenção às mulheres com abortamento. Um estudo realizado em uma maternidade pública em Salvador, Bahia, revelou que o exame produz narrativas distintas sobre o aborto, moduladas pela moral hegemônica sobro o procedimento e sua criminalização. De acordo com os resultados da pesquisa, o estágio gestacional em que ocorre a interrupção da gravidez influencia se os profissionais ativam ou desativam a atribuição de um sentido de natureza humana ao produto da concepção. Os resultados da pesquisa etnográfica estão no artigo A cena da ultrassonografia na atenção ao aborto: práticas e significados em uma maternidade pública em Salvador, Bahia, Brasil, publicado na revista Cadernos de Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz).
O estudo é produto da dissertação de mestrado de Mariana Ramos Pitta Lima, defendida no Instituto de Saúde Coletiva, tendo como orientadora a professora Cecilia Anne McCallum, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, e como coorientadora a professora Greice Menezes, também do Instituto de Saúde Coletiva, ambas unidades da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
A pesquisadora Mariana Ramos Pitta Lima realizou uma etnografia ao acompanhar, durante vários meses, o trabalho de ecografistas e conversar com estes e outros profissionais de saúde envolvidos na atenção direta ao aborto, além das próprias mulheres, em uma maternidade da rede SUS em Salvador. Ela observou o cotidiano do serviço de USG obstétrica desta maternidade, entre novembro de 2014 e janeiro de 2015, acompanhando aproximadamente 200 exames, entre os quais 51 com abortamento. Os dados produzidos a partir das observações em campo foram submetidos à análise antropológica das três pesquisadoras. Este estudo é um esforço de mapear o campo da USG obstétrica na atenção ao aborto, que, segundo as autoras, ainda é pouco abordado na literatura científica no Brasil.
A pesquisa aponta ser necessário uma mudança do modelo de atenção ao abortamento no SUS. “É fundamental retirar as mulheres dos hospitais maternidades e garantir a humanização da atenção, mudanças que impliquem menor sofrimento das mulheres e respeito aos seus diretos reprodutivos e humanos”, afirmam.
A interpretação das imagens no centro da produção de discurso
Segundo as pesquisadoras, as noções de gravidez e de feto são produzidas a partir das imagens da USG obstétrica. “Ao conferir uma presença imagética antes ausente à ‘entidade biológica’ que se forma dentro do corpo da mulher durante o período gestacional, as tecnologias de visualização passaram a ocupar um lugar central na construção conceitual e social do concepto como ‘Pessoa’ no sentido antropológico”, argumentam. Segundo as autoras, no cenário brasileiro de criminalização do aborto, há uma disputa ideológica sobre a pessoalidade do nascituro, em que imagens fetais são usadas como um dos principais argumentos contrários ao procedimento.
A partir da observação dos exames, as autoras identificam que na interrupção da gravidez nos estágios iniciais da gestação, houve um distanciamento do conceito de aborto. Nos casos em que a USG obstétrica não revelou imagens compatíveis com feto ou gestação, os profissionais evitaram reconhecer a autenticidade da gravidez e a ocorrência de um aborto completo. “A inexistência de qualquer sinal de feto visibilizado na tela permitia que a gravidez e o aborto não fossem reconhecidos como tal, configurando uma ambiguidade sobre o que havia acontecido”, afirmam. As autoras indicam que, nesses casos, não foram usados termos como “embrião”, “feto” ou “bebê”, porque o abortamento completo nestes estágios impediu a atribuição de forma humana ao produto do aborto.
As pesquisadoras relatam que a maioria das mulheres recebeu diagnóstico de aborto incompleto, quando não há expulsão total do produto da concepção. Na prática do exame, o termo “restos” foi usado por profissionais e mulheres para se referir aos produtos biológicos remanescentes no útero. As autoras explicam que a presença dos “restos” atesta a gravidez e o abortamento, mesmo assim, a ausência de uma imagem fetal permite a desconstrução da ideia de vida.
No entanto, a pesquisa mostra que, quando a USG obstétrica revela apenas a ameaça de abortamento e a presença objetiva do feto, a pessoalidade deste é produzida a partir de práticas discursivas, imagéticas e sonoras. Segundo as pesquisadoras, a confirmação imagética da vitalidade fetal acionava “uma imposição de significados e valores morais por parte do profissional às mulheres – silenciadas em sua vontade de não dar continuidade à gestação – relativos ao abortamento”. Nesses casos, foi observada a adoção de um discurso centrado no “bebê” de forma a salientar sua condição de vida.
Nos casos observados de “gravidez autêntica”, tal como denominada pelas autoras, constata-se um cenário de violência simbólica, uma vez que a mulher deixa de ser uma pessoa autônoma e o cuidado passa a ser direcionado unicamente para o feto. “Não há espaço para ser uma pessoa autônoma singular, com direito a uma atenção direcionada a si, quando se descobre outra vida dentro da paciente”, afirmam. As pesquisadoras explicam que o status moral das mulheres com ameaça de abortamento passa a depender do cuidado com o feto. Elas apontam que essas pacientes são, a princípio, simbolicamente categorizadas como “antimães” e, quando a vitalidade fetal é confirmada, inicia-se um processo para transformá-las em boas mães a partir da indicação de cuidados pré-natais.
O extremo da caracterização como “antimães”, segundo o relato das pesquisadoras, ocorre quando a interrupção da gravidez se dá no segundo trimestre. “A situação que se detecta por meio da imagem de que o aborto ocorreu no segundo trimestre, foi uma daquelas que mais gerou discursos moralizantes. Opostamente à ‘gravidez inautêntica’ que se expressa em interrupções que aconteceram ‘cedo’, aqui o feto toma a forma de uma Pessoa, cada vez mais nítida e material, na medida em que a gravidez avança”, afirmam.
O artigo lembra que, apesar da minoria dos casos se enquadrar nesse contexto, os abortos no segundo trimestre são os que mais apresentam risco de vida para mulheres. Nesse sentido, as pesquisadoras defendem “a importância de se promover ações que possam favorecer o acesso à interrupção da gestação em estágios iniciais, a fim de se reduzir o estigma do aborto e a morte de mulheres resultante de procedimentos inseguros e clandestinos”.
Assim, o estudo concluiu que a linguagem técnica dos profissionais de USG obstétrica é rompida diante da imagem do feto, com a adoção de um discurso centrado na pessoalidade do feto, o que faz parte de uma assistência padronizada, centrada nas mulheres que vão dar continuidade à gravidez. “As mulheres pouco importam: se queriam a gravidez, se perderam espontaneamente, se estão sofrendo, sangrando, com dor, com medo de morrer, de serem descobertas e presas”, apontam as pesquisadoras.
O estudo reitera a importância de repensar o modelo de atenção a complicações de abortamento no Brasil, centrado em hospitais-maternidade, cuja missão principal é atender mulheres que irão ter filhos. A relação que se estabelece nesses espaços entre profissionais e mulheres em situação de abortamento é informada pela própria forma como a rede de atenção está organizada, para atender principalmente as mães e futuras mães. Sem repensar e reorganizar o sistema, haverá uma continuação da prática, inclusive nas consultas de USG, de atribuir valores negativas às outras, as tratando como “antimães”.