'O direito humano é inegociável'
Além de compartilharem trajetórias marcadas pela exclusão social, discriminação e luta por direitos, grupos vulnerabilizados, como indígenas, pessoas com deficiência e populações de países do continente africano, são também os mais impactados por eventos climáticos extremos, como ondas de calor, poluição do ar e desastres naturais. Essas questões foram amplamente discutidas no segundo dia do XI Seminário Internacional de Direitos Humanos e Saúde e do XV Seminário Nacional de Direitos Humanos e Saúde, realizado na ENSP em 26 de novembro. As mesas ressaltaram a necessidade de garantir uma vida digna a esses grupos e respeitar seus direitos de pertencimento à terra, independentemente de sua localização.
A ausência de escuta das populações indígenas, detentoras de conhecimentos essenciais sobre o manejo sustentável da terra, e a invisibilidade das pessoas com deficiência em sistemas que excluem “outras formas de ser e estar” foram destaques na mesa intitulada Grupos Vulnerabilizados: interseccionalidades na saúde em razão das mudanças climáticas.
“Propus algumas reflexões sobre a importância de reconhecermos a atuação dos povos indígenas no combate às emissões de gases poluentes e sua contribuição fundamental na luta contra as mudanças climáticas. Não há como ignorar as contribuições do nosso povo, pois consideramos a terra nossa mãe; ela é parte de nós, e temos a maltratado muito. Esses eventos refletem esses maus-tratos”, afirmou Wilza Neves Silva Pataxó, coordenadora do Núcleo de Povos Originários do Santuário Cristo Redentor e presidente do Instituto Fundo Biomas Indígenas.
Segundo Wilza, nos últimos 30 anos, os biomas indígenas perderam 1% de sua vegetação nativa, enquanto, nos territórios não indígenas, essa perda foi de 20,6%. “Esses dados devem ser considerados para pensarmos no quanto os povos indígenas podem ser aliados no combate às mudanças climáticas. Protegemos a floresta e trabalhamos no território porque ele, para nós, é sagrado. Amamos nossa terra e nosso espaço”. Ela destacou a importância de valorizar o conhecimento ancestral dos povos indígenas sobre manejo sustentável da terra e respeito às águas, ao solo e ao ar, aplicando-o como ferramenta para garantir a subsistência, não apenas no Brasil, mas em outros países também. “Esse conhecimento é um patrimônio para toda a humanidade e deve ser levado a sério”, reforçou.
Wilza também abordou o desmatamento provocado pelo garimpo e lamentou a desigualdade na defesa da terra: “Como lutar contra quem tem a pólvora? O garimpo contamina nosso solo com mercúrio, e isso provoca o adoecimento dos povos pela ingestão da água, dos peixes e dos alimentos”, lamentou.
O capacitismo ambiental
Já a pesquisadora Laís Silveira Costa, que desenvolve estudos e atua no ativismo em torno da saúde de pessoas com deficiência, apresentou o conceito de capacitismo ambiental. “As pessoas com deficiência sofrem desproporcionalmente os efeitos das mudanças climáticas. Estamos falando de um bilhão de pessoas esquecidas nos fóruns de planejamento, sem representatividade nesses espaços e que enfrentam uma total ausência de protagonismo”, afirmou.
Laís destacou que pessoas com deficiência são especialmente vulneráveis durante eventos climáticos extremos. “Em países com dados confiáveis, observa-se uma prevalência significativamente maior de mortes entre pessoas com deficiência. Isso não é um problema do corpo, mas da sociedade, que permanece conivente com essa exclusão”, criticou.
Ela pontuou que 16% da população mundial — cerca de 1,3 bilhão de pessoas — é sistematicamente silenciada, sendo que 80% desse grupo está concentrado no Sul Global, onde os efeitos das mudanças climáticas são mais severos. “O capacitismo ambiental impede a produção de conhecimento, a disponibilização de informações, recursos e serviços que incluam todos os corpos. Trata-se de uma característica estrutural de desprezo, que ignora as necessidades das pessoas com deficiência e as deixa vulneráveis a situações extremas”, concluiu.
A inegociabilidade da dignidade humana
Cuidar, defender o planeta e resguardar a dignidade humana foram os temas abordados pelo pesquisador e militante antirracista decolonial luso-senegalês Mamadou Ba ao falar sobre os direitos humanos na perspectiva africana. “É possível conciliar direitos humanos e o capitalismo racial extrativista?”, questionou o palestrante.
“Para um africano, sobretudo um africano de corpo negro, falar de sua perspectiva sobre direitos humanos e saúde é um exercício complexo e doloroso, tendo em vista uma História substancialmente trágica. O africano, notadamente o negro, foi, enquanto sujeito ontológico, o único da espécie humana a quem se decidiu colocar entre a condição de selvagem e a de não humano para justificar o projeto de excluí-lo da própria ideia de humanidade. Ao mesmo tempo, foi o único cujo corpo serviu como laboratório para experiências médicas a serviço do progresso científico e do bem-estar da humanidade. A escravidão transformou o corpo negro em objeto de experimentos médicos, unindo curiosidade científica e delírios de superioridade racial. Não se pode falar de direitos humanos sem considerar a história do imperialismo, do colonialismo, do capitalismo e do racismo”, refletiu.
Ao abordar a inegociabilidade da dignidade humana, Mamadou apresentou à plateia o Kurukan Fuga Kaaba, local do Grande Encontro dos Povos Mandé, onde, em 1236, foram aprovados os 44 artigos da Carta do Mandé. Considerada uma das primeiras declarações de direitos humanos do mundo, a Carta é reconhecida pela Unesco desde 2009. Ela articula-se em torno de quatro pontos fundamentais: respeito aos direitos humanos, prevenção de conflitos, igualdade de gênero e proteção ambiental. “Esse documento revela-se um primoroso tratado sobre a dignidade humana. Seu conteúdo é tão significativo para a preservação da vida em suas diversas formas de expressão que reflete o verdadeiro objetivo de qualquer filosofia de direitos humanos. É um dos primeiros marcos doutrinários dessa área.”
A doutrina vigente dos direitos humanos, segundo Ba, é colonialista e eurocentrada. Ao responder se é possível conciliar os direitos humanos com o capitalismo racial extrativista, ele foi categórico: “A resposta é obviamente negativa, pois, em um contexto atual de economia baseada em crises permanentes, na indústria da fome e da pobreza, vemos desigualdades gritantes e a insanidade do modelo econômico vigente. É uma economia de sofrimento. Como é possível que, mesmo com tanta riqueza produzida, ainda haja tanta miséria, especialmente na África? Se as tendências atuais continuarem, cerca de 582 milhões de pessoas sofrerão de subnutrição crônica em 2030, metade delas na África, onde 58% da população enfrenta insegurança alimentar moderada ou grave.”
Apesar do cenário caótico, Mamadou apontou caminhos. “Eles querem o fim do mundo, mas nós queremos continuar vivendo. A vida com dignidade é uma possibilidade em que acreditamos na África. Não nos renderemos às profecias do impossível. Nossa história não começou com o imperialismo europeu e não terminou com o neocolonialismo. Nosso destino não pode ser moldado por isso. É urgente descolonizar os direitos humanos, descentralizá-los e recentrá-los na humanidade em toda sua pluralidade”, concluiu.
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