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A “amiga que já abortou”: artigo revela importância de personagem central em narrativas sobre aborto

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Publicado em:17/07/2024

Por Danielle Monteiro

Um tabu, mas também um evento comum. Embora cercado por silêncios e segredos, o aborto induzido é um fenômeno corrente na vida reprodutiva das brasileiras, conforme indicam pesquisas. Essa dinâmica paradoxal, que envolve o tema da interrupção da gravidez, foi mote de um artigo científico publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva. O estudo revela que existe uma personagem com um papel central em narrativas sobre a descontinuidade voluntária da gestação: a “amiga que já abortou”.

Escrito pelas pesquisadoras da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Nanda Isele Duarte, Vera Marques e Liana Pinto, o artigo analisou 22 histórias de aborto induzido narradas publicamente, entre abril e dezembro de 2018, em uma plataforma internacional online de troca de depoimentos sobre a experiência.  Além da análise de narrativas, as pesquisadoras realizaram uma entrevista com representante da ONG que mantém o espaço e examinaram entrevistas, assim como outros materiais disponíveis publicamente sobre a organização. O estudo é fruto de resultados de uma pesquisa realizada no mestrado em Saúde Pública da ENSP.

Solidariedade feminina em rede

Em meio à troca de informações, saberes e apoio sobre a temática do aborto, entre mulheres usuárias da plataforma virtual analisada, uma figura recorrente chamou a atenção das autoras do artigo: a mulher que já passou pela experiência de provocar a interrupção da gravidez. “Nas histórias de Aline, Catia, Carolina, Laura, Graça, Priscila, Nadia, Teresa e Zuleica, esta personagem aparece em algum momento, seja na pele de uma amiga, tia, prima, vizinha, conhecida ou até mesmo uma desconhecida que acaba sendo alçada ao status de nova amiga. Neste trabalho, chamamos esta personagem-chave de “a amiga que já abortou””, explicam as pesquisadoras. 

O papel central dessa personagem é exemplificado na narrativa de Carolina, uma das usuárias da plataforma virtual, conforme relata o artigo. Inicialmente sem recursos para adquirir o medicamento indutor do aborto, ela contou com a ajuda financeira de uma conhecida que lhe foi apresentada por outras usuárias da plataforma. Com o dinheiro emprestado, Carolina comprou o medicamento e deu continuidade a sua jornada. “O auxílio ao acesso ao método, compartilhando recursos e informações, é uma das contribuições da ‘amiga que já abortou’ nas narrativas”, analisam as pesquisadoras.

O artigo também aponta que as mulheres ocupam lugar de destaque entre os personagens integrantes das redes primárias (relações de familiaridade, parentesco, vizinhança, amizade) acionadas nos relatos. “Muitas amigas e algumas mães e tias são citadas como personagens-chave nas narrativas, seja pelo apoio emocional que fornecem, pela confiança que as habilita ao papel de confidentes ou pela companhia solidária no momento da realização do aborto ou da busca por serviços de saúde. É o caso de Daiane, que, diante de uma gravidez imprevista e sem condições nem desejo de levá-la adiante, contou com a ajuda de sua mãe e de uma amiga, ainda que elas não fossem favoráveis ao aborto”, observam as autoras. 

Outro achado do estudo diz respeito à importância da mediação da internet para a troca de informações e apoio entre mulheres, reafirmando a contribuição das tecnologias de informação e comunicação na ampliação da capacidade de solidarização e mobilização de recursos das redes sociais. É o caso da estudante de 19 anos, Aline, narrado pelas autoras do artigo. A usuária da plataforma ‘fez amizade’ na rede com uma mulher que já havia abortado, que lhe passou dicas e o contato utilizado para a compra do medicamento: “Se não fosse por ela, estaria praticamente perdida”, desabafou Aline em seu relato. 

Conforme analisam as pesquisadoras, o artigo confirma o papel decisivo da solidariedade feminina na adoção de estratégias frente às restrições legais e morais da prática da interrupção da gravidez, indicando a existência de uma cultura do aborto compartilhada e transmitida entre diferentes gerações de mulheres. Segundo as pesquisadoras, essa é uma característica comum das redes de proteção mobilizadas no repertório de estratégias que as brasileiras desenvolvem para o aborto. “A ‘amiga que já abortou’ se revela um laço da rede, um ‘nó’ importante na rede mobilizada pelas mulheres. E, ao dividirem suas histórias na plataforma, estas mulheres tornam-se também um ‘nó’, um laço, um encontro na rede de outras, as suas leitoras”, afirmam as pesquisadoras.

Valorização da experiência e coletivização de estratégias

O artigo também revela que a experiência comum compartilhada é, junto com o cuidado em rede e a solidariedade, um aspecto fundamental na interação das mulheres na plataforma. 

As autoras observaram, ainda, que, na relação estabelecida por essas mulheres por meio da troca de narrativas, existem dois movimentos. O primeiro diz respeito ao reconhecimento de que elas estão conectadas por uma experiência socialmente compartilhada. O depoimento de Graça é um exemplo desse aspecto, segundo as pesquisadoras. A usuária da plataforma leu, na internet, todos os depoimentos que encontrou, já que precisava de ajuda. Conforme relatou, ler vários casos que deram certo foi fundamental, pois, mesmo sem fazer ideia de como eram aquelas mulheres, elas lhe proporcionaram conforto e incentivo, como nenhuma outra pessoa conhecida poderia fazer.

Já o segundo movimento se refere à coletivização de estratégias comuns para lidar com as dificuldades da experiência, conforme observado no relato de algumas usuárias da plataforma, que tiveram uma preocupação em serem minuciosas ao narrar suas histórias, a fim de ajudar mais mulheres que passavam pela mesma situação. “As narrativas transmitem, assim, uma necessidade de ‘retribuição’ ao ciclo que beneficiou essas mulheres no seu processo, como se elas pudessem se tornar, ao dividir sua experiência ali, a ‘amiga que já abortou’ de alguma mulher desconhecida”, observam as pesquisadoras. 

Nesse sentido, segundo as autoras do artigo, o compartilhamento da experiência comum entre as mulheres na plataforma se torna uma ferramenta de resistência à clandestinidade, à estigmatização e ao controle sobre seus corpos, sendo a solidariedade um princípio norteador das relações estabelecidas entre elas, suas ‘amigas que já abortaram’ e as desconhecidas que ainda irão abortar.

“As redes de solidariedade conectadas pela vivência e pela partilha comuns podem ser pensadas como fissuras em movimento frente ao ciclo vicioso perpetrado pela criminalização e estigmatização do aborto no Brasil. Podem, ainda, inspirar o campo da Saúde Coletiva a fomentar políticas públicas que considerem as dimensões relacionais e reticulares da cultura do aborto compartilhada, valorizando a experiência das mulheres no enfrentamento às desigualdades de gênero”, concluem as pesquisadoras. 








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