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Especialistas defendem promoção de cultura e trabalho em debate sobre psiquiatria democrática

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Publicado em:25/06/2024
*Por Bruna Abinara

O segundo dia do Seminário 'A Liberdade é Terapêutica', organizado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/ENSP), realizado no dia 21 de junho, teve início com a mesa "Psiquiatria democrática, trabalho e cultura, autonomia e emancipação". A atuação do bloco carnavalesco Loucura Suburbana foi destacada na mesa, como uma iniciativa bem-sucedida na promoção dos cuidados em saúde mental através da arte.

Mesa debate 'Psiquiatria democrática, trabalho e cultura, autonomia e emancipação'

O debate contou com a participação da psicóloga do Instituto Municipal Nise da Silveira e coordenadora do bloco carnavalesco 'Loucura Suburbana', Ariadne Mendes; do presidente da Cooperativa Social Agrícola Monte San Pantaleoni e membro fundador do Consórcio para Empresa Social, Giancarlo Carena; e do Presidente da Cooperativa Unisol Brasil e da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Leonardo Pinho.  A mediação da mesa ficou a cargo da professora do Curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Patrícia Dorneles, atuante há 30 anos no campo das políticas públicas culturais.  

Na abertura da mesa, Patrícia ressaltou a importância de debates sobre saúde e cultura frente ao cenário atual. Segundo a professora, houve um desmonte sistemático da cultura e da saúde nos últimos governos. "A cultura tem que ser valorizada como elemento central do desenvolvimento social, das políticas públicas e, principalmente, quando vivemos momentos de guerras culturais, em que precisamos valorizar outras narrativas", declarou a mediadora. A professora defendeu a retomada de inciativas para a valorização da cultura como fator significativo para a reforma psiquiátrica. 

A atuação do bloco carnavalesco 'Loucura Suburbana' foi destacada na mesa. Uma iniciativa bem-sucedida na promoção dos cuidados em saúde mental através da arte. A psicóloga Ariadne Mendes, coordenadora do projeto, começou sua fala recitando a marchinha do bloco, que diz "Deixa o amor fluir, que o 'Loucura Suburbana' vai passar... é o fim dos manicômios pelas ruas da cidade, explosão de emoção, sonho e realidade". 

Segundo Ariadne, a inspiração para o 'Loucura Suburbana' veio da criação de uma oficina permanente de artes em um ambulatório do Instituto Municipal Nise da Silveira. A ideia era oferecer atividades para os pacientes, que costumavam aguardar o atendimento por longos períodos. A psicóloga explicou que foi necessário um movimento de "desinstitucionalização do hospício" para dar fôlego às propostas culturais. "Foi toda uma luta dos trabalhadores de saúde mental para começar a descontruir a parte mais pesada, que era o hospício absoluto. Com esse trabalho, começamos a melhorar e humanizar o atendimento", afirmou.  

A palestrante relatou que a grande adesão dos participantes da oficina resultou na festa carnavalesca. A proposta inédita de criar o bloco e ir para a rua provocou uma "quebra na estrutura hospitalocêntrica do hospício", explicou Ariadne, e iniciou uma mudança total na instituição. A psicóloga contou que os moradores do Engenho de Dentro, bairro onde se situa o Instituto Nise da Silveira, não se envolveram no bloco no primeiro desfile, mas que passaram a acolher a festa cada vez mais. "As pessoas tinham muito medo dos habitantes do hospício. No início, ainda era um bloco da saúde mental saindo do hospital e ganhando as ruas. No entanto, aos poucos, o bairro foi tomando esse bloco como seu. Ao invés do medo, as pessoas se orgulham e admiram", disse.  

Para a coordenadora do bloco, foi assim que o 'Loucura Suburbana' conseguiu quebrar a hierarquia e o preconceito para reunir pacientes, familiares, profissionais da saúde mental e sociedade. "Quando a gente oferece espaço, as pessoas mostram o seu potencial e, a partir disso, podemos ver transformações. Em vez de dizerem 'Eu sou louco, meu diagnóstico é esse', se identificam como pintores, compositores, cantores, escritores", afirmou Ariadne.  

Mesa debate 'Psiquiatria democrática, trabalho e cultura, autonomia e emancipação', em Seminário Internacional na ENSP.

Em seguida, o presidente da Cooperativa Social Agrícola Monte San Pantaleoni e membro fundador do Consórcio para Empresa Social, Giancarlo Carena, ressaltou que estamos em meio a um processo de avanços e retrocessos no campo do cuidado com a saúde mental. A partir de um texto de Franco Basaglia, homenageado no evento, que diz "nós somos a instituição", o palestrante destacou a responsabilidade individual e coletiva em orientar ou reorientar o cuidado. "Os recursos podem invalidar ou sustentar processos de emancipação, isso depende de nós", afirmou.  

Giancarlo compartilhou sua experiência na área de saúde mental na cidade de Trieste, na Itália. O primeiro ponto destacado por Giancarlo foi a necessidade de reconhecer a capacidade das pessoas. "Basaglia entra no hospital e vê os internos, mas também vê pessoas que estão realizando atividades. Esse reconhecimento é um pilar, porque a psiquiatria ainda invalida as pessoas", declarou o palestrante. Para ele, o reconhecimento das capacidades individuais está na cultura dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), sendo fundamental para desenvolver estratégias em direção ao trabalho, através da valorização da contribuição de cada indivíduo.  

O palestrante também ressaltou a importância de se promover um "mix de sujeitos diferentes". Segundo Giancarlo, "devemos misturar as pessoas para ter uma engenharia social do possível". Ele explicou que, em Trieste, houve um esforço organizativo para multiplicar essas atividades. Nesse processo, o palestrante apontou duas preocupações: ocupar diferentes nichos do mercado e perguntar às pessoas o que elas gostariam de fazer. "Quando me pedem para fazer uma atividade estúpida, eu também me sinto estúpido. Se posso fazer algo que corresponda aos meus desejos e me dê satisfação, posso me sentir bem. Devemos fazer coisas belas e úteis, porque elas produzem, em si mesmas, saúde", explicou.  

Assim, Giancarlo defendeu a necessidade de se ter estratégias para atrair recursos e apoio para o desenvolvimento dessas atividades. "Ainda hoje existe um muro que divide a saúde e a assistência do mercado. Precisamos aprender a conectar os dois lados", afirmou o palestrante.   

Em seguida, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Leonardo Pinho, criticou o movimento que categorizou como "contrarreforma psiquiátrica". Segundo o palestrante, o cenário criado por governos recentes produziu uma guerra de narrativas sobre os CAPS, recolocou a internação como dispositivo central do cuidado, desregulamentou legalmente as intuições e impediu o financiamento de iniciativas de saúde mental. "A reforma psiquiátrica é parte da disputa do valor do Estado brasileiro. Nós queremos políticas públicas que produzem mais valor para as pessoas ou para o sistema financeiro?", questionou.  

Leonardo afirmou que estamos em uma fase de repactuação de políticas públicas. Ele explicou que o campo da reforma psiquiátrica subiu na hierarquia dentro do Ministério da Saúde e retomou o credenciamento de novos serviços. O palestrante reforçou que a missão do movimento é dar às pessoas o direito ao convívio, à cidade e à liberdade. "O objetivo do nosso tratamento não acaba em si mesmo. Ele é ferramenta de promoção de direitos humanos dessa população. Por isso, é importante pensar se a nossa centralidade está em fortalecer a autonomia e a emancipação delas", afirmou.  

Leonardo criticou a falta de editais e dispositivos de suporte para que os profissionais da saúde mental possam criar e sustentar iniciativas de cuidado inovadoras e de boa qualidade. Para o palestrante, os pontos de ausência se sobressaem. "Nós não construímos nenhum processo de ampliação de unidades de acolhimento ou de criar novas modalidades inventivas. Nós inventamos o CAPS, o 'Loucura Suburbana' e nós precisamos voltar a inventar", defendeu.  

Para concluir, Leonardo destacou a necessidade de instrumentos reais de resposta para que o trabalhador que está na ponta do processo possa atender às demandas e sustentar a reforma psiquiátrica. "Eu não estou olhando apenas o modelo institucional, estou olhando as pessoas. Elas devem ser a centralidade do nosso trabalho", defendeu. 

*sob supervisão da jornalista Tatiane Vargas.

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