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História e loucura: relação entre museus e luta antimanicomial é tema de debate

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Publicado em:23/05/2023
Por Danielle Monteiro

A relação entre museus e a luta contra o paradigma manicomial, assim como a importância da arte e cultura na mudança do modelo assistencial em psiquiatria, foram pauta da aula inaugural do curso de especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial coordenado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/ENSP). Com o tema História e Loucura: memórias e construção da cidadania e dos direitos humanos, a atividade aconteceu nesta quinta-feira (18/05), no Museu da República, em comemoração ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial e ao Dia Internacional dos Museus. 

Presente à mesa de abertura, o vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, Hermano Castro, relembrou a memória da psiquiatra que revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil, Nise da Silveira, e da ativista e vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018. Ele também destacou que a área da Saúde Mental foi uma das mais atingidas pelas políticas de desconstrução implantadas nos últimos anos no país. “O curso fortalece a política de reconstrução do país. Essa associação (com os museus e a figura de Nise da Silveira) é importante para nós e lança uma luz importante nas políticas que precisamos desenvolver”, disse. A atividade foi moderada pela educadora do Museu da República, Christine Azzi.

Representando o diretor da ENSP, Marco Menezes, a vice-diretora de Ambulatórios e Laboratórios da ENSP, Fátima Rocha, ressaltou que o campo da Saúde Mental trouxe muitos aprendizados para sua longa atuação na área de HIV/Aids no sentido de construção de respeito às diferenças. Ela enfatizou, ainda, a importância da realização da aula inaugural no Museu da República, por ser um espaço popular, democrático e histórico: “Se trata de olhar um país tão desigual e violento historicamente, com tantos desafios no campo. Estar aqui traz esse simbolismo da marca da mudança na área da Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica. É importante olharmos para esse passado para não esquecermos. É o momento de refletirmos sobre a necessidade de memória, liberdade, justiça, reparação e democracia. Temos que buscar isso permanentemente, em vários campos, não somente no da luta antimanicomial”.

Encerrando a mesa de abertura, a coordenadora do Laps/ENSP, Ana Paula Guljor, afirmou que o curso se insere nos processos da Reforma Psiquiátrica, que integram atividades e experiências de arte e cultura e inserção de temáticas como sustentabilidade e inclusão, visando não somente a formação profissional, mas também a ampliação de um pensamento crítico e a observação da importância de uma atuação política: “No dia de hoje, celebramos também a esperança de um novo departamento de saúde e drogas que vem com a revogação de portarias que descaracterizavam a Reforma Psiquiátrica brasileira, como a que incentivava o aumento do financiamento dos hospitais e a que extinguia o financiamento de determinados dispositivos da Atenção Psicossocial. Nós temos que estar atentos e juntos, participando e protagonizando essas demandas; e também reconhecendo que é preciso estar junto com essa equipe do novo departamento e ao mesmo tempo nos órgãos de controle social”.

Diretora do Museu Bispo do Rosário e ex-aluna do curso de especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da ENSP, Maria Raquel Fernandes discorreu sobre o processo de construção e constituição do museu ao longo de seus mais de 40 anos. A instituição está localizada na Colônia Juliano Moreira, onde, antes, abrigava um manicômio. Narrando a mudança e os avanços no conceito de cuidado em Saúde Mental, Maria Raquel contou como, ao longo do tempo, se deu o processo de ressignificação do território, desde quando era manicômio até se tornar museu. 

A instituição, que tem seu nome em homenagem ao principal artista de seu acervo, segundo Maria Raquel, atua hoje como uma casa de experiências, “ativando memórias através da ruptura da lógica ocidental do tempo linear, para poder construir outra percepção de tempo, que se inspira nos povos originários e de matriz africana”. Ela contou que o espaço atualmente “promove uma articulação entre arte e cuidado, desenvolvendo práticas artístico-pedagógicas e curatoriais que procuram instituir um espaço-tempo de convivência e experimentação, visando criar novas relações de pertencimento e novas significações sobre o território”. Maria Raquel narrou como o artista plástico brasileiro que sofria de esquizofrenia e deu nome ao museu, Arthur Bispo do Rosário, transformava o delírio em subversão, rompendo, assim, com a lógica de aniquilamento manicomial. Citando algumas iniciativas do museu, ela mostrou como a instituição acolhe a perspectiva delirante e atua pela lógica do desvio, com o desafio de pensar o corpo, a arte e o território como espaços de cura. “Nosso foco principal é a preservação da produção artística dos usuários dos serviços de saúde mental da Colônia Juliano Moreira e a cultura imaterial da colônia”, disse.

Em seguida, a coordenadora da Museololgia do Museu de Imagens do Inconsciente, Priscilla Moret, traçou um panorama histórico do museu, que hoje atua como unidade da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro e fica localizado no bairro do Engenho de Dentro. Em sua apresentação, ela discorreu sobre a trajetória e atuação da precursora e criadora do museu, a psiquiatra Nise da Silveira, narrando como seu trabalho rompia com o paradigma manicomial. No território onde hoje está a instituição, no passado se localizava o hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro. Priscilla apresentou as diversas coleções artísticas do museu, cujo acervo histórico conta atualmente com 330 mil obras, das quais 128.909 são tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “O movimento da luta antimanicomial é dos trabalhadores e usuários, e de todos nós, que atuamos na Saúde Mental de alguma forma”, concluiu.

Posteriormente, o pesquisador da ENSP, Paulo Amarante, destacou a realização da aula inaugural no Museu da República como uma oportunidade importante de estreitar o diálogo entre dois campos de luta pela memória, reparação e história. Ele também chamou a atenção para o papel fundamental do Museu da República na história e como espaço de liberdade, democracia, resistência e sonhos. “Nossa luta não é somente pela mudança de modelo assistencial em psiquiatria. Não é só superar os manicômios. Não basta mudar o modelo assistencial, precisamos falar com a sociedade, dialogar com ela. Nesse sentido, a memória, a história e os museus têm papel fundamental, assim como a arte e a cultura. Nós temos que transformar a forma como a sociedade pensa a ideia de loucura”, defendeu. A proposta do curso, segundo Amarante, é pensar criticamente a sociedade, a psiquiatria e a saúde mental, e analisar como podemos intervir. “O Dia da Luta Antimanicomial é um dia da rua, da cidade. Todos os anos fazemos atividades na Assembleia Legislativa, nas Câmaras de Vereadores, nos espaços culturais e públicos. É uma ideia em que todos devem estar na sua cidade, com seus pares, dialogando e chamando a atenção da sociedade a pensar sobre a questão dos hospícios, da psiquiatria, da medicalização e da patologização da vida e em como vamos transformar essas práticas em saber. Nosso desafio é radicalizar a desospitalização e o processo de desinstitucionalização e criar outras possibilidades de inserção das pessoas na sociedade. Isso implica arte e cultura”, afirmou.


Por fim, o museólogo e diretor do Museu da República, Mario Chagas, destacou a forte relação entre museu e loucura e ressaltou que o Museu da República e a República têm comprometimento com o que produziram em termos de danos socias, sendo assim, faz parte dos interesses da gestão da instituição, segundo ele, trabalhar nessa escala da reparação social e repensar a relação da República com povos indígenas, mulheres, negros, tratamento mental, entre outros. “O Museu da República está comprometido com os Direitos Humanos e a cidadania. Consideramos o museu não apenas como de História da República, mas também como um museu contemporâneo. A República está em movimento, assim como o museu. Esse é um tema que nos interessa fortemente”, concluiu. 


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