Privatização: estatísticas já comprovam o que a população sente na pele
A conta de água de quatro casas de quarto e sala, situadas em uma pequena vila da comunidade de Vigário Geral, subitamente dobrou para R$ 1.100,48, o que dá R$ 275,12 mensais para cada moradia – ou 21% do salário mínimo nacional. O pagamento deve ser feito até 1º de junho e a concessionária Águas do Rio avisa: “Sujeito a corte a partir de 06/07/2023”. Nos meses anteriores, os moradores já se viam oprimidos. O valor da conta já era bastante elevado: R$ 132,30 por residência.
João Ricardo de Mattos Serafim, presidente da Associação de Moradores e Amigos de Vigário Geral (Amavig), conta que este é apenas um entre tantos exemplos do que a população local vem enfrentando, desde 2022. Muitas famílias estão com várias contas de água em atraso, por falta de renda para efetuar o pagamento.
Antes da Águas do Rio, assim como acontecia em outras áreas periféricas do estado, parte da comunidade recebia conta de água e outra não, num sistema informal de “subsídio cruzado” praticado pela Cedae. Esse termo significa que a empresa cobra mais das áreas nobres e assim garante o abastecimento das regiões mais pobres, sem prejuízo. E a Cedae, diga-se de passagem, tinha lucros anuais robustos tinha lucros anuais robustos mesmo quando contabilizadas essas “perdas financeiras", como a Cedae classificava.
A Águas do Rio assumiu o serviço em novembro de 2021 e chegou a Vigário alguns meses depois, sem qualquer comunicado prévio. “A concessionária privada pegou o cadastro da Cedae e foi mandando a conta com valores majorados e ainda cobrando pelo serviço inexistente de esgoto. Não foi feito um cadastramento da população. Assim eles vão criar um caos social”, denuncia João Ricardo, que também é diretor de Habitação da Federação das Associações do Município do Rio de Janeiro (FAM-RIO).
Mínimo vital de água e tarifa social
A solução, para ele, passa pela implantação da tarifa social e, principalmente, pela disponibilidade do “mínimo vital de água”, conforme pleiteado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, por meio de ação civil pública, com pedido liminar de isenção social para pessoas beneficiárias do Cadastro Único de Programas Sociais (CadÚnico). A proposta conta com o apoio da Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde (saiba mais).
João estima que o número de pessoas em Vigário Geral cadastradas no CadÚnico (ou aptas a entrar) abranja pelo menos 45% das famílias locais. É uma média estimada com base no número de pessoas que buscaram documento de solicitação de endereço para cadastro no Bolsa Família, explica ele. “Pelo Censo de 2010, éramos 35 mil moradores e temos um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) do Rio de Janeiro. Como as pessoas podem arcar com conta de água e de luz? São dois serviços essenciais que devem ser garantidos a todos independentemente da capacidade de pagamento. Água não é mercadoria”, frisa.
A Amavig vem mobilizando a comunidade e angariando apoios para evitar que a Águas do Rio corte o abastecimento de quem não está conseguindo pagar a conta. “A população está mobilizada, pressionando por cadastro, e temos apoio de parlamentares, da Defensoria, da Igreja. Estão todos apoiando os moradores”, acrescenta ele, que no início de 2022, já antevendo esse problema, enviou carta ao diretor institucional da Águas do Rio, Anselmo Leal, apresentando a realidade local e colocando a Amavig à disposição para a discussão de soluções apropriadas. A empresa nada fez.
Estatísticas não deixam mentir
A situação de Vigário Geral ilustra o que as estatísticas já apontam: a Águas do Rio concentra 76,4% das 872 reclamações do estado relatadas na plataforma consumidor.gov.br, considerando a temática “Água e Saneamento” no período de janeiro a abril deste ano. O principal problema registrado foi justamente relativo à “Cobrança/Contestação”.
Os dados foram compilados para a Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde pela pesquisadora Maria Clara Arouca, integrante do coletivo, graduada em Ciência Ambiental pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em População, Território e Estatísticas Públicas pela Ence/IBGE.
Na temática “Água e saneamento”, as três primeiras colocadas em número de reclamações são as novas controladoras privadas dos serviços, fruto do processo de concessão da Cedae que, por sua vez, aparece em quinto lugar. “Outro ponto que chama a atenção é em relação à avaliação das reclamações que são classificadas como: resolvidas, não resolvidas ou não avaliadas. Nesse aspecto, do total de 666 reclamações sobre a Águas do Rio, apenas 15% foram avaliadas pelos usuários como resolvidas, 37% não resolvidas e a metade (49%) não foi avaliada. Além disso, a nota de satisfação com o atendimento ficou em 1,9, ou seja, ruim, já que a escala vai de zero a cinco”, acrescenta.
As estatísticas da Ouvidoria da Agenersa, agência reguladora das concessionárias de saneamento estaduais, vão na mesma direção, porém os dados disponíveis são de 2022. A Águas do Rio é mais uma vez a líder em ocorrências totais registradas, que incluem pedidos de informação, denúncias e reclamações. Especificamente na classificação “reclamações”, foram 2.296 para a concessionária Águas do Rio - bloco 4 e 619 para a Águas do Rio - bloco 1 (baixe os dados completos da Ouvidoria da Agenersa aqui: https://bit.ly/3LXi3Fc).
Estatísticas não refletem a totalidade dos problemas
Maria Clara acredita que apenas um percentual pequeno de moradores do estado do Rio acesse esses canais. Não existe incentivo, observa ela. É o caso de um condomínio de Vila Isabel, também na capital, situado às margens do complexo dos Macacos, que planeja acionar a Justiça. Com apenas oito apartamento, um deles sem moradores, o condomínio viu o valor da conta saltar dos habituais R$ 1.200 ou R$ 1.300, nos tempos da Cedae, para até R$ 2.600.
Assim como aconteceu em Vigário Geral, em Vila Isabel os problemas tiveram início com a entrada em operação da Águas do Rio. Logo na virada de 2021 para 2022, o valor pulou para R$ 2.600. “Reclamamos e a concessionária reconheceu o erro naquele primeiro momento, mas depois manteve os altos valores. O hidrômetro foi o divisor de água da gente. Eles tiraram o antigo e colocaram um novo, digital. Já fizemos testes. Todos desligamos a água e o hidrômetro continuou rodando rápido. Também fizemos vistoria de todos os apartamentos e nenhum vazamento foi identificado. Todos os cuidados que podíamos tomar foram providenciados. Agora pedimos mais uma nova revisão da conta, mas vamos tentar um advogado popular para apoiar o condomínio”, conta Bruno Alves, morador do prédio e educador popular da Fase.
Leia o conjunto de dados levantados por Maria Clara Arouca na nossa página - clicando em: Consumidor.gov.br: resumo das Reclamações no Segmento “Água e Saneamento” no estado do Rio
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