Ceensp discute motivações, prevenção e combate aos assédios no ensino e na pesquisa
Por Barbara Souza
Com abordagens situadas sob as perspectivas histórica, étnico-racial e de gênero, o Centro de Estudos Miguel Murat de Vasconcelos (Ceensp) debateu o tema “Assédio moral e sexual no ensino e na pesquisa: interfaces com a saúde” nesta quarta-feira (5/4). No encontro realizado na sala 410 da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) e transmitido pelo canal da Escola no Youtube, as convidadas fizeram apresentações complementares sobre o assunto. As exposições foram de Karla Fernanda Valle, do Tribunal Regional do Trabalho-RJ, Gabriella de Souza Soares, da Associação de Pós-Graduandos (APG) da Fiocruz, e de Etinete Gonçalves, do Centro de Apoio ao Discente da Fiocruz. A coordenação deste Centro de Estudos foi de Cristiane Andrade, pesquisadora do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/ENSP).
Ao abrir a sessão, a vice-diretora de Pesquisa e Invação da ENSP, Luciana Dias de Lima, celebrou a realização do Ceensp com esta temática. “É um tema que em geral provoca muito desconforto. Para algumas pessoas, é visto como um tabu. E eu diria que nada como promover uma sessão acadêmico-científica para podermos debater com mais profundidade conceitos e aspectos que estão relacionados a essas formas de violência, bem como discutir como podemos prevenir a ocorrência dessas situações e enfrentá-las em nossas instituições”, declarou.
Primeira palestrante, a doutora em serviço social Karla Valle afirmou que “não tem como debater a realidade do Brasil sem considerar relações de classe, a origem escravocrata, e as questões de gênero e sexo”. “Como isso se incorpora nas nossas relações acadêmicas e laborais?”, questionou. Além de falar sobre os fatores que atravessam as situações de assédio, ela apresentou conceitos e caracterizou os tipos de violência, revelando a importância do reconhecimento das situações de abuso para o enfrentamento e tomada de decisão. Com uma abordagem baseada nas relações de poder e exploração do trabalho, Karla provocou a reflexão sobre como os diferentes tipos de violência afetam as vítimas que, muitas vezes, acabam em situações de culpabilização e revitimização.
Karla ainda expôs as etapas da escalada do assédio e explicou como gestos incômodos que acabam sendo ignorados no dia a dia também são prejudiciais. “Precisamos entender de que maneira, nessas relações funcionais ou laborais, naturalizamos comportamentos que são vistos a olho nu, todo mundo percebe e identifica em alguém. São comportamentos perniciosos e perigosos porque não necessariamente a gente consegue enquadrar completamente no conceito de assédio. Mas, no médio e no longo prazo, são tão adoecedores quanto. Para que tais fenômenos bárbaros se materializem nas nossas relações, há um pano de fundo em que vamos naturalizando ‘pequenas’ violências. Precisamos debater o que a gente está chamando de natural e costumeiro”, disse Karla Valle.
Parte da apresentação de Karla Fernanda Valle no Ceensp de 5 de abril de 2023
Mestranda em Biodiversidade e Saúde (IOC/Fiocruz) e coordenadora do APG-Fiocruz, Gabriella Soares destacou a fragilidade das mulheres em ambientes de ensino e pesquisa, especialmente das mulheres negras. “O ambiente acadêmico tem hegemonia de homens brancos e o grupo das mulheres negras é o que vive maior vulnerabilidade. O racismo afeta de forma perversa a saúde mental dos alunos. O racismo praticado no Brasil, chamado de racismo velado, na verdade é praticado de forma explícita. O que fica velado é a indignação, pois poucos se dispõem a conduzir uma solução”, afirmou. Ela mostrou ainda trechos de um estudo que realizou entrevistas sobre assédio moral e sexual em quatro instituições públicas de pesquisa no estado do Paraná e destacou relatos de mulheres que sentiam, por exemplo, que precisavam reproduzir comportamentos tipicamente masculinos para se impor e tentar evitar situações de humilhação e discriminação.
Gabriella mergulhou ainda mais nas questões femininas ao citar três efeitos que são considerados consequências do preconceito de gênero: Efeito Matilda (apagamento ou diminuição da participação de mulheres em resultados de pesquisas científicas), Labirinto de Cristal (obstáculos ‘invisíveis’ atrapalham especificamente as mulheres ao longo da trajetória acadêmica) e Efeito da Impostora (quando a mulher não se sente bem-sucedida porque o merece e acha que, em algum momento, todos irão descobrir que não passa de uma fraude). A jovem pesquisadora citou ainda uma sensação recorrente que impede mulheres de denunciarem, por exemplo, orientadores ou coordenadores por assédio: “elas sentem medo porque sabem que no ambiente de atuação ficará uma sensação de que um cientista talentoso foi perdido por ter sido denunciado”, disse. Gabriella encerrou apresentando dados sobre o impacto da maternidade na carreira das mulheres pesquisadoras e a importância dos movimentos estudantis para apoia-las. “Se, por um lado, a maternidade nos é exigida enquanto mulheres, por outro lado, há também uma culpabilização de quando nós decidimos ter filhos e trabalhar”, comentou Cristiane Andrade ao fim das apresentações.
Coordenadora do Centro de Apoio ao Discente (CAD/Fiocruz), Etinete Auxiliadora do Nascimento Gonçalves relatou casos que exemplificam situações de assédio que chegaram ao seu conhecimento dentro da instituição. Ela afirmou que as circunstâncias mais comuns nas quais o assédio aparece são as que envolvem a relação do aluno com o orientador. “Este professor está lidando com um cientista em formação. É lamentável em todos os sentidos a gente ver isso, pois deveria ser uma relação entre um colega mais experiente com um menos experiente no sentido de construir conhecimento juntos”, lamentou Etinete ao dizer ainda que os casos de assédio sexual são menos recorrentes, mas que quando ocorrem costumam ter a ver com a formação anterior das vítimas, como no caso das enfermeiras, que são alvos de fetiche.
Etinete listou características de assédio moral na academia
Etinete destacou as consequências do assédio para os pós-graduandos: aumento dos níveis de ansiedade, bloqueio emocional para continuar a pesquisa, descrença na possibilidade de concluir o curso, desistência, pedido para mudar de orientador/a e, em casos extremos, depressão e ideação suicida. Ela mencionou ainda casos do chamado assédio horizontal, que ocorre entre os pares, entre os próprios estudantes. “As circunstâncias mais comuns envolvem racismo, capacitismo, LGBTfobia, etarismo, xenofobia, exclusão e cyberbulling”, listou.
“Etinete trouxe as singularidades desse processo ensino-aprendizagem e tocou no ponto importante da produtividade acadêmica. Os alunos estão aprendendo a fazer ciência ou eles fazem parte da máquina para manutenção desses docentes na pós-graduação? É uma crítica que eu faço e que nem sempre é vista com bons olhos. O aluno está ali para aprender e para construir junto uma ciência”, complementou Cristiane Andrade.
Como o CAD/Fiocruz atua para dar apoio aos estudantes que possam estar em situação de assédio
Ações e políticas de enfrentamento ao assédio
“A Fiocruz e a ENSP têm como uma das suas missões institucionais contribuir para as condições de saúde e melhoria das condições de vida da população brasileira e, certamente, garantir relações saudáveis no ambiente de trabalho em todas as atividades profissionais que desenvolvemos é fundamental”, afirmou a vice-diretora de Pesquisa, Luciana Dias. Na abertura do Ceensp, a pesquisadora destacou iniciativas da instituição como a cartilha ‘Assédio Moral, Sexual e Outras Violências no Trabalho’, publicada pela Fiocruz em 2022, uma versão revista e ampliada da cartilha existente desde 2014. Luciana ressaltou ainda que a Fiocruz adota como posição ética para toda a comunidade ser intolerante a todas as formas de violência. “É um momento oportuno para a discussão desse tema. Nós tivemos alguns avanços recentes na adoção de políticas e iniciativas em nossa instituição e no nosso país voltadas para diversas expressões de violência, mas também com propostas para a prevenção e o enfrentamento”, disse.
Em sua fala, a vice-diretora mencionou a implantação do Centro de Apoio ao Discente e a aprovação por unanimidade pelo Conselho Deliberativo da Fiocruz da Política de Equidade Étnico-Racial e de Gênero, que será anunciada no próximo dia 11 de abril. Luciana citou também a criação da Coordenação de Equidade, Diversidade e Inclusão e Políticas Afirmativas, que terá como coordenadora Hilda da Silva Gomes. Essa coordenação integrará dois comitês existentes na Fiocruz: Acessibilidade e Inclusão das Pessoas com Deficiência e o Pró-equidade de gênero e raça. “Certamente as ações que envolvem prevenção e combate às violências são elemento central que estão também no corpo dessas políticas e iniciativas”.
Enquanto departamento da ENSP que estuda violências, o Claves participou ativamente da construção dessas políticas da Fiocruz mencionadas acima. O departamento conseguiu, na consulta pública do Comitê de Gênero e Raça da Fiocruz, pontuar vários avanços com relação às violências no ensino e na pesquisa. Também houve participação na consulta pública que o CAD fez sobre a Política de Apoio ao Estudante (PAE), inclusive com contribuições com o programa Mais Meninas e Mulheres na Ciência. Na pessoa da pesquisadora Cristiane Andrade, o Claves participou também da construção da cartilha da Fiocruz 'Assédio Moral, Sexual e Outras Violências no Trabalho'.
Luciana Dias aproveitou para lembrar da recente sanção da lei que institui o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual, à Violência Sexual e aos demais Crimes contra a Dignidade Sexual no âmbito da administração pública. A Lei 14.540, de 2023, prevê ações para identificar e reprimir crimes de natureza sexual em todas as esferas da administração pública direta e indireta, além de amparar as vítimas. Ela acrescentou que, há dois anos, a ENSP criou um Grupo de Trabalho de equidade e diversidade para avançar em políticas que envolvam a promoção desses valores na nossa Escola. “Tivemos a publicação de uma carta de recomendações, produto de uma oficina realizada em 2022 com cerca de 140 mulheres e meninas da ENSP, Fiocruz e outras instituições parceiras. A carta tem 18 diretrizes e uma delas tem a ver com o combate às violências”, disse.
Assista ao Ceensp na íntegra:
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