‘Se a gente não sabe de onde vem, não sabe onde quer chegar’: ministra mergulha nas raízes negras femininas
Por Barbara Souza
Raízes, passado e presente. Na conferência de abertura do ano letivo de 2023 da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), realizada nesta quinta-feira (16/3), a aula da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, aprofundou o tema ‘O legado das mulheres negras’ com relatos de experiências duras, homenagens às origens, reconhecimento de precursoras e anúncios de próximos passos da luta. “Se a gente não sabe de onde vem, não sabe onde quer chegar. Se eu não soubesse de onde eu saí, eu não saberia nunca onde eu queria chegar. Para estar onde estamos hoje, no centro dessa reconstrução, a gente tem que saber de onde veio”, declarou a ministra, acrescentando que Lúcia Xavier e Jurema Werneck têm o dom de fazer isso. A aula foi realizada no auditório da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, completamente lotado, assim como a tenda ao lado, onde houve transmissão ao vivo do evento.
“No dia em que recebi do presidente Lula o convite para o ministério, eu liguei para quatro mulheres negras além da minha mãe: Lucia, Jurema, Sueli Carneiro e Benedita da Silva. Eu não seria a mulher que eu sou se eu não tivesse passado por essas mulheres, mas se elas também não tivessem segurado na minha mão quando eu mais precisei. Não foi uma parcela consideravelmente branca que me acolheu”, contou Anielle Franco, que relatou ainda ter sido demitida de três das escolas onde lecionava na época do assassinato da sua irmã, a vereadora Marielle Franco. Os empregadores que a tiraram do quadro de professores no momento mais difícil de sua vida alegaram que a imagem de Anielle havia se tornado “muito forte” pela proximidade com a irmã. “Eu tinha que me virar”, disse.
Numa fala firme e ao mesmo tempo muito carinhosa, a ministra reconheceu e valorizou as heranças, deixando claro que fez valer o legado recebido: “minha raiz sempre foi de muito letramento político, de muita leitura, muito acesso”. O relato de Anielle intercalou memórias da infância com lembranças mais recentes. Sobre o passado, ela contou desde as idas à Fiocruz tomar vacina, protegida pela irmã na travessia da passarela da Avenida Brasil, passando pela fase final da adolescência nos Estados Unidos, onde treinava voleibol e também estudava. Ela também lembrou dos esforços da mãe, Marinete, para manter as filhas. “O que seria dos nossos lugares se não tivéssemos nossas raízes? E a minha raiz é de uma mulher preta, nordestina, favelada, uma mulher advogada, mas que trabalhou muito para criar a gente. Eu lembro da minha mãe com uma bolsa lotada de sapatos e um isopor de sacolé para ir na feirinha do Parque União vender as coisas”.
Já nos momentos em que rememorou experiências mais recentes, Anielle revelou a indignação com a falta de cuidados e de proteção à Marielle: “eu nunca vou perdoar terem olhado para aquela mulher discursando e nunca terem pensado em ter segurança para ela”. A ministra afirmou que sua irmã precisou ser cruelmente assassinada para que outras pessoas ganhassem segurança privada, carro blindado, para que “tivessem a noção de que as políticas, mulheres negras, precisam de segurança também, além dos homens brancos”.
Devido aos casos ainda comuns de violência política, a ministra Anielle propôs, junto à ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, um projeto de lei para a criação do Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento à Violência Política de Gênero e Raça. O PL foi assinado pelo presidente Lula nesta semana, mas precisa se aprovado no Congresso Nacional. Anielle contou que teve uma reunião com o presidente da Câmara dos Deputados para cobrar a rápida tramitação da proposta, que tem pedido de urgência do governo. “Vai ser uma construção muito difícil. A gente tem sido muito atacado em Brasília. Não é fácil permanecer naquele lugar. Assim como eu sabia que não seria fácil para minha irmã permanecer naquele lugar, que é extremamente tóxico, que não é para mulher. Nenhuma câmara é desenhada para mulheres”, falou a ministra em tom de denúncia e preocupação e acrescentou que “não duraria” se não soubesse de onde veio, exaltando novamente suas raízes.
Outras ações
A ministra Anielle Franco listou uma série de iniciativas do Ministério da Igualdade Racial, algumas em parcerias com outras áreas do governo. “A Nísia Trindade, ministra da Saúde, aceitou ter uma coordenação de saúde da população preta, isso é histórico. Tem um grupo de trabalho para o qual o Ministério da Igualdade Racial foi convidado a participar”. Ela contou ainda que será instituído, em breve, um comitê da saúde da população preta, falou da expectativa pela titulação de seis terras quilombolas em Minas Gerais e Sergipe, além da criação de um GT de combate ao racismo no esporte, junto com a ministra Ana Moser.
“Enquanto tiver sangue correndo nas minhas veias, estarei lutando pelo povo periférico, de favela, quilombola, mesmo nos assuntos mais delicados, mais importantes”, garantiu. A ministra mencionou ainda o imbróglio do Museu do Valongo, que pretende apoiar o Ministério da Cultura na resolução, além do fortalecimento da política de cotas e de uma campanha de inscrições para o Enem voltada especialmente para os estudantes negros e pobres. Anielle Franco acrescentou ainda um decreto, que está nos seus planos, para garantir pelo menos 30% de negras no serviço público federal. “Há a crença de que a população negra não está preparada. Além de garantir que elas cheguem lá, é necessário que essas pessoas sejam bem tratadas. Não é só chegar, tem que manter”.
Compromisso e parceria
Na mesa de abertura que antecedeu o início da aula da ministra Anielle Franco, dirigentes da Fiocruz e da ENSP fizeram discursos de boas-vindas e aproveitaram a oportunidade para expor suas iniciativas pró equidade racial e de gênero nas instituições. Além de ter sido marcado por muita emoção e alegria, foi um momento também de estreitar laços para cooperação entre a ENSP, a Fiocruz e o Ministério da Igualdade Racial, confirmando o alinhamento de intenções quanto a políticas públicas para maior justiça social.
“Nós reafirmamos, junto à Coalizão Negra por Direitos, que enquanto houver racismo, não haverá democracia”, disse o diretor da ENSP, Marco Menezes, que destacou que “é o momento de recuperarmos todos os movimentos que foram muito combatidos nos últimos seis anos”. Na mesma linha, o presidente da Fiocruz, Mario Moreira, reafirmou a posição institucional e a disponibilidade para unir esforços com o ministério da Igualdade Racial. "A Fiocruz, que defende valores desse governo, que milita por um país mais justo, mas igual e inclusivo, está totalmente à disposição do ministério que a senhora chefia agora. Esperamos de fato contribuir para que o Brasil supere este momento triste para nossa história".
Vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiani Vieira Machado relembrou algumas ações de apoio ao estudante desenvolvidas pela Fundação e cumprimentou a ministra, citando a presença de Marielle Franco em evento marcante na Fiocruz poucos dias antes de sua morte: “é uma imensa honra ter você aqui hoje, por todos esses motivos”. A vice-diretora de Ensino da ENSP, Enirtes Caetano, destacou o contexto político do país. “Estamos num momento histórico. E nós não podemos nos furtar à possibilidade de atuar nesse momento. Esse é o nosso momento. Essa é a nossa ministra. Esse é o nosso tempo histórico. De mudar o que nós temos pela frente. Nós desejamos à nossa ministra total êxito nas ações do Ministério. Nós esperamos que esse momento seja inaugural na construção de uma parceria sólida entre o Ministério, a ENSP, a EPSJV, a Fiocruz”
Mediadora da aula inaugural, Marly Cruz, pesquisadora do Departamento de Endemias Samuel Pessoa (ENSP/Fiocruz), não escondeu a emoção e fez questão de dizer que, apenas de muitas conquistas das mulheres negras, ainda há muita luta pela frente. “Estamos imbuídos de muita emoção porque estamos num mês de comemoração mas também de luta, porque temos meninas e mulheres, em sua maioria negras, sendo vítimas de feminicídio, violentadas sexualmente, assediadas no trabalho e no transporte público, lidando com o sofrimento psíquico de mães que vem perdendo seus filhos, passando fome, vivendo em extrema pobreza, habitando as ruas pela falta de moradia, sem proteção social”, disse a pesquisadora.
Representante discente do doutorado, a aluna do doutorado em Saúde Pública da turma 2019.2 e integrante do Coletivo Negro da Fiocruz, Laurenice Pires afirmou que receber Anielle para a aula inaugural da ENSP “significa para muitos de nós estudantes negros, representatividade, espelho, luz, concretude, realização e inspiração. A representação concreta da importância da LUTA, com todas as alegrias e dores que ela traz” e que sua presença “simboliza a importância do investimento no território, que é tão essencial para a saúde pública e coletiva. Um território reconhecido e valorizado em sua diversidade torna-se potente, e capaz de produzir ministras e mulheres do ano”.
Sobre Anielle Franco
Anielle Franciso da Silva, mais conhecida como Anielle Franco, é formada em Jornalismo e Inglês pela Universidade de Carolina do Norte e em Inglês/Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É mestra em Jornalismo e Inglês pela Universidade de Flórida A&M e mestra em Relações Étnico?raciais pelo CEFET/RJ. Atualmente, é doutoranda em Linguística Aplicada na UFRJ. É fundadora e foi diretora do Instituto Marielle Franco.
Assista a aula inaugural na íntegra: