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Abrascão 2022: roda de conversa discute perspectivas interseccionais na saúde, trabalho e direitos humanos

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Publicado em:25/11/2022
Por Danielle Monteiro

Relatos e histórias de vida emocionantes deram o tom à roda de conversa Saúde, Trabalho e Direitos Humanos: perspectivas interseccionais, realizada na manhã dessa terça-feira (22/11) como parte da programação do Congresso da Abrasco, que acontece até 24 de novembro em Salvador, Bahia. Coordenada pela professora e pesquisadora da ENSP, Elida Azevedo, a atividade debateu temas como trabalho de mulheres trans, capacitismo, luta pelos direitos de trabalhadoras domésticas e escravidão no Brasil contemporâneo.

Mulher negra trans, pesquisadora e professora da ENSP, com mestrado sobre o trabalho escravo no Brasil contemporâneo, Jaqueline Gomes de Jesus iniciou a roda de conversa citando o prefácio que escreveu para o livro Transresistência: pessoas trans no mercado de trabalho, no qual chama a atenção para a ideologia por trás da categoria trabalho. “Não à toa, muitas vezes, existe a crença de que a população trans/travesti não trabalha, quando, na verdade, sabemos que ela trabalha e muito. A questão é onde ela está trabalhando. Em geral, na história do Brasil, tem sido no trabalho informal, e não em qualquer trabalho informal, tem sido nas margens”, destacou Jaqueline. 

A pesquisadora lembrou que a população trans negra ocupa as terras brasileiras antes mesmo de o país se chamar Brasil e que ela sofre com um preconceito histórico, citando o caso de Xica Manicongo, angolana escravizada e considerada a primeira transexual no país, que, por resistir às normas da cisgeneridade no século 16, foi denunciada aos Tribunais do Santo Ofício. “O que Xica Manicongo sofreu enquanto congolesa e travesti se conecta com o caso de Moise Mugenyi, congolês assassinado no começo do ano na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. A elite brasileira continua aprisionando e martirizando esse trânsito África- Brasil”, atentou. 

Jaqueline também relembrou casos de mulheres trans negras que morreram justamente por serem mulheres trans negras. Segundo a pesquisadora, elas não foram mortas à bala, como reforça o estereótipo atual, mas, sim, em decorrência de doenças letais como resultado de todo um processo anterior de transfobia estrutural interseccionado com racismo, machismo e demais formas de opressão. “Elas morreram dentro do sistema de saúde, por violências sutis institucionais, pelais quais, se fossem mulheres brancas, certamente não morreriam. Por serem trans negras, morreram de infecção generalizada gerada a partir de uma infecção urinária e assim por diante”, explicitou.

A pesquisadora destacou que a única possibilidade de existência para a mulher trans historicamente no Brasil foi o trabalho sexual. Ela defendeu que é preciso se pensar na centralidade da categoria trabalho e nas dimensões da diversidade que constituem a classe trabalhadora, "que não se dão no abstrato e que não são apenas aquelas sindicalizadas e inseridas no modelo da sociedade industrial, a chamada classe operária". 

Ela também reforçou que é importante entender o racismo, para se compreender as sutilezas das micro agressões que mulheres trans/travestis sofrem, assim como ter um perspectiva interseccional sobre a questão do trabalho e da mulher trans. “É desafiador ter um olhar interseccional. Essa chave interpretativa, mais do que um conceito, é um instrumento para as políticas públicas a partir do ensinamento de muitas outras mulheres negras, que nem eram reconhecidas como mulheres, mas que, mesmo assim, lutaram para construir outra possibilidade de humanidade e de humano. Saúde, direitos humanos e trabalho é falar sobre isso, de que humano queremos para o futuro. Pois somente a transformação torna possível outro rumo”, concluiu.

Em seguida, a pesquisadora do trabalho de quilombolas, Marta Cristiane Ferreira, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), iniciou sua fala relembrando a primeira situação de racismo que vivenciou ainda criança no interior de São Paulo na década de 70. Em seguida, ressaltou que Salvador, quando capital do Brasil, recebeu mais de 2 bilhões de negros, cujos corpos foram habitados e cujas identidades foram coisificadas como estratégia de apagamento identitário, desde então e até os tempos de hoje. “A categoria ‘trabalho’ nos marca, nos identifica, mas também nos exclui. A centralidade do trabalho no mundo moderno está muito mais para percebermos que ainda temos muitos escravos, não sendo mais uma questão somente de pele. Hoje temos também migrantes trabalhando nos frigoríficos no sul, temos trabalhadores na zona rural, meninos subindo em árvores enormes para comermos um delicioso açaí e que não são pagos por isso”, citou.

Esses trabalhadores, segundo a pesquisadora, concebem o trabalho como um modo de vida. “O trabalho, para eles, não é o que você faz, onde você está e quanto ganha, mas é quem você é. Então, quando se responde ‘eu sou pescador’, você vê a pessoa, você vê a identidade, você vê para além da objetividade propagada pelo neoliberalismo. Não é a relação de como estabeleço a força de trabalho, mas, sim, de como eu enxergo esse mundo”, explicou. 

Neta de quilombola, Marta ainda chamou a atenção para a falta de políticas públicas direcionadas a esses trabalhadores, que não são protegidos pelas leis trabalhistas e são escravizados e fechados em uma lógica invisível de apagamento, vítimas constantes de violência. 

Coordenador do curso de pós-graduação em Direitos Humanos, Acessibilidade e Inclusão e professor da ENSP, Armando Nembri , que nasceu com a síndrome de Goldenhar, centrou sua fala no capacitismo, preconceito contra pessoas com deficiência. Para falar sobre o assunto, segundo o professor, é preciso ter em mente que vivemos tempos normóticos, que acontecem quando uma pseudonormalidade doentia se sobrepõe a uma pseudonormalidade saudável, assim como de propagação intencional de desinformação. No entanto, há uma notícia boa nesse cenário, segundo Armando: “Essas anomalias civilizacionais antecedem saltos evolutivos. E é nesse contexto que são defendidos os direitos humanos, a acessibilidade, a inclusão e a emancipação de pessoas com deficiência e em situação de vulnerabilidade”. 

Armando defendeu que hoje, mais do que nunca, precisamos aprender a ouvir o outro e que todos nós precisamos ser agentes de mudança em um país que clama por grandeza. “É o senso de pertencimento que traz a segurança psicológica para sermos o que somos. Então, todos nós aqui fortalecemos o senso de pertencimento. Lembrando Mario Quintana, que dizia, claramente, que estamos muito indiferentes, nós estamos com dificuldade de ver o raro, o belo e o valioso, e está na hora de mudar isso. Já se sabe que os atributos essenciais humanos - a gentileza, a bondade, a generosidade, a compaixão - mudam o mundo e são as bases de um cérebro saudável. E já é sabido também que o que nos faz feliz nessa vida é a qualidade de nossos relacionamentos. Então, se podemos escolher, que tal fazermos um mundo melhor? Não é mais uma questão de apenas falar, mas, mais do que falar, a prática muda o mundo”, concluiu.  

Dando seguimento à roda de conversa, a representante do Sindicato das Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos do Estado da Bahia, Milca Martins, destacou que as trabalhadoras domésticas e mulheres negras são uma classe até hoje sofrida e que ainda precisa lutar pelos seus direitos. “A história das trabalhadoras domésticas começou nas senzalas e tem uma trajetória perversa, somente nós sabemos as chicotadas que levamos até hoje em pleno século 21”, destacou. 

Milca viveu em cárcere privado dos 7 aos 12 anos de idade, quando foi levada para a capital para ser trabalhadora doméstica. Na casa onde trabalhava, foi vítima de estupro e de outras violências físicas. Atualmente ela sofre de sérios problemas de saúde por conta das experiências que viveu no passado. “Hoje ainda continuamos no chamado ‘quarto de empregada’, no quarto de despejo, só nós sabemos o quanto esse trabalho tão desigual atinge nossa saúde física e mental. Discutir a saúde das trabalhadoras domésticas em um congresso desse porte é muito importante”, destacou.

Ela ainda disse que trazer a história do povo negro para o congresso para fortalecer a luta dos trabalhadores é uma responsabilidade grande e destacou a importância dos sindicatos nesse cenário. “Precisamos sair desse congresso mais fortes para que cada um de nós ajude a fortalecer a luta dos trabalhadores, pois não chegaremos a lugar nenhum sozinhos”, concluiu.


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