O impacto da disponibilidade de dados e informação oportuna para a vigilância epidemiológica: tema do 'Cadernos' de julho
Atualmente, há, no Brasil, uma ampla gama de agravos de saúde monitorados por meio de sistemas de informação que fazem parte da vigilância epidemiológica nacional. Em maio de 2022, mais de 50 agravos ou doenças faziam parte da lista de agravos de notificação compulsória, incluindo-se eventos associados à Covid-19, como os casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), e de síndrome inflamatória multissistêmica em adultos e pediátrica. A disponibilização de dados abertos com atualização semanal em virtude da Covid-19 é um marco importante na história da vigilância em saúde no Brasil. “É preciso que essa prática seja mantida mesmo após a pandemia e estendida para os demais sistemas e agravos de saúde monitorados no país”, defendem os editorialistas Daniel Antunes Maciel Villela e Marcelo Ferreira da Costa Gomes no Cadernos de Saúde Pública de julho.
O editorial explica que esses sistemas agregam dados para acompanhamento de situação no território nacional, identificação de novos surtos e formulação de políticas públicas de saúde, como engrenagens do Sistema Único de Saúde (SUS) para auxiliar em várias frentes importantes. Qualquer ocorrência de indisponibilidade dos dados armazenados nesses sistemas tem o potencial de comprometer muitos mecanismos de monitoramento relevantes para emergências da saúde pública.
Um dos objetivos dos sistemas de informação na vigilância em saúde é de permitir respostas rápidas em caso de epidemias ou mesmo eventos inesperados de circulação de agentes infecciosos. Por exemplo, por ocasião da epidemia de vírus H1N1, houve o claro objetivo de ampliação do Sistema de Vigilância Epidemiológica para SRAG (SIVEP-Gripe), para monitorar o avanço de casos. Além disso, inúmeros trabalhos analíticos em pesquisas acadêmicas são gerados a partir da disponibilidade de dados desses sistemas e, em decorrência, são produzidas importantes conclusões e recomendações para a saúde pública.
No início da pandemia da Covid-19, a intensidade de crescimento do número de casos foi um importante indicador para a recomendação de medidas não farmacológicas que mitigavam a transmissão do SARS-CoV-2. Recentemente, indicadores construídos a partir de avaliações de morbidade da Covid-19 auxiliaram decisões de recomendação de grupos prioritários no início da campanha de vacinação contra Covid-19. Subsequentemente, com análises de efetividade da vacinação contra Covid-19, resultados importantes indicaram a necessidade de doses de reforço das vacinas contra a doença. Portanto, qualquer interrupção na disponibilidade dos dados e nos sistemas implica em não ter respostas rápidas, em não identificar eventos de interesse e em prejuízo nas recomendações com base analítica.
Espera-se que haja defasagem entre a notificação de registros de agravos, normalmente em fichas de notificação, e a subsequente entrada da informação nas bases de dados. Nesse sentido, procedimentos para ter uma estimativa do número de casos em momento presente (nowcasting) são elaborados por meio de modelos estatísticos que realizam o tratamento dos padrões dos tempos de notificação. Quando há qualidade e disponibilidade dos dados, é possível avaliar os padrões temporais no processo de reporte. Exemplos claros que utilizam tais técnicas são os sistemas InfoDengue (https://info.dengue.mat.br/) e InfoGripe (https://info.gripe.fiocruz.br), que realizam análises semanais dos casos de arboviroses e de SRAGs, respectivamente, fornecendo a estimativa de número de casos e as tendências de aumento, diminuição ou mesmo estabilidade.
Segundo o texto, há evidências concretas do impacto da falta de disponibilidade de dados. O exemplo recente do episódio (apagão de dados), em que um ataque cibernético deixou sistemas do Ministério da Saúde fora do ar, teve consequências em momento crítico da pandemia da Covid-19. A interrupção ocorreu no dia 10 de dezembro de 2021, e o restabelecimento dos sistemas e acesso ao público foi anunciado pelo Ministério da Saúde em 12 de janeiro de 2022, portanto com indisponibilidade por ao menos 30 dias.
Nesse período, o mundo já havia identificado uma variante de preocupação do SARS-CoV-2, a Ômicron, com alta taxa de transmissibilidade. Essa indisponibilidade impactou na falta de análises e na ausência de indicadores, em sistemas como InfoGripe e o Observatório Covid-19 Fiocruz (https://portal.fiocruz.br/observatorio-covid-19). Já se sabia que havia circulação da variante no país, mas o número de casos no período foi conhecido a partir do restabelecimento dos dados de notificação. De acordo com análises posteriores no InfoGripe, o total de 98,4 mil casos de SRAG com início de sintomas no período foram notificados no SIVEP-Gripe.
Os serviços de vigilância não identificaram esse panorama oportunamente, isto é, durante o período crítico, de acordo com o editorial. Além disso, o boletim do InfoGripe imediatamente anterior ao apagão, referente à Semana Epidemiológica 48 de 2021, alertava para a presença do vírus influenza entre os casos notificados no Rio de Janeiro, que precedeu a epidemia de gripe no mês de dezembro em todo o país. A cocirculação dos vírus influenza e SARS-CoV-2 trazia um ingrediente novo por alterar os grupos de risco para internações por infecções respiratórias. Portanto, dado que os serviços epidemiológicos trabalham com esses panoramas como “fotografias” do momento, nesse intervalo tais “fotografias” ficaram apagadas ou sem definição.
A pandemia da Covid-19 no país exibiu vários períodos com oscilações no número de casos e de óbitos, ou mesmo várias semanas com tendência clara de crescimento da incidência, comumente denominadas “ondas da pandemia”. Como distinguir tais oscilações, analisar tendências e determinar novas ondas requer dados com qualidade e informação oportuna, quaisquer interrupções no acesso a dados podem significar falta de detecção desses movimentos. Como houve períodos com alta letalidade, a detecção rápida auxilia enormemente as recomendações na vigilância, que podem evitar milhares de óbitos e casos graves.
Eventuais fragmentações de sistemas nos estados e/ou municípios também impactam significativamente, dizem os pesquisadores. É preciso refrear movimentos de constituir sistemas paralelos quando há sistemas já operacionais. Instabilidades no sistema nacional acabam por fomentar o desenvolvimento de sistemas de notificação independentes por parte dos estados e municípios. Tais sistemas, embora importantes para autonomia e adequação a necessidades locais, acabam por gerar retrabalho para os profissionais de saúde por implicarem no preenchimento de mais de uma ficha de notificação para ser inserida nos respectivos bancos de dados. Esse tipo de situação, eventualmente, gera perda de qualidade no sistema nacional, com subnotificação de casos. Durante o curso da pandemia da Covid-19, especialmente durante o ano de 2020, observaram-se diferenças significativas entre os números de casos SRAG reportados no SIVEP-Gripe e no painel disponibilizado pela Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso, provavelmente porque o estado manteve um painel estadual. No entanto, tal arranjo impossibilita uma análise mais aprofundada das tendências no estado ao longo de vários anos.
O restabelecimento de fluxo de dados após um apagão de dados também é extremamente desgastante, em particular em momento de pandemia ou mesmo de emergência de saúde pública. Esforços para restabelecer o sistema demandam curadoria dos dados para assegurar integridade. Os procedimentos envolvem restaurar cópias de segurança e reagregar os dados estaduais. Em pior caso, pode ser necessário resgatar as fichas de notificação para repassar as informações para os sistemas informatizados. Esse custo, em termos de recursos humanos em um momento de pandemia ou emergência de saúde pública, é proibitivo. Como exemplo, a interrupção temporária da consulta aos dados de vacinação a partir do Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunização (SI-PNI), para preenchimento automático de status vacinal dos casos de SRAG no SIVEP-Gripe no momento da digitação, fez que o percentual de casos sem informação relativa a esses campos tenha aumentado no mês de dezembro. Esse passivo afeta a qualidade das análises de acompanhamento da efetividade das vacinas. Como as informações referentes a esses campos são atualizadas retroativamente no SIVEP-Gripe em nível federal, essas correções dependem de ações manuais, caso a caso, por parte das equipes das secretarias de estado de saúde, tornando o processo muito mais oneroso e, na prática, negligenciado em função das demais atividades dessas equipes.
Dessa forma, é imperativo ter sistemas com proteção contra falhas e vulnerabilidades, e ter esquemas de contingência que possam restabelecer o acesso rapidamente para minimizar os riscos de indisponibilidade. É importante notar que o fato de serem sistemas abertos para consultas públicas não os torna vulneráveis, se forem obedecidas as melhores práticas com base nesses esquemas para resguardar as informações. Reconhece-se que há necessidade de modernização, seja para adequação a novas tecnologias de bancos de dados e segurança ou para redimensionamento para atender novas demandas. Esses esforços são bem-vindos, mas devem ser realizados de forma que seja sempre possível manter compatibilidade com o sistema legado.
Os sistemas de vigilância, como SIVEP-Gripe, SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), SIVEP-Malária e vários outros sistemas nacionais estão bem estabelecidos, vêm sendo aprimorados ao longo dos anos e já constituem um patrimônio que contribui para melhor eficiência na vigilância em saúde. A disponibilização de dados abertos com atualização semanal em virtude da pandemia de COVID-19 é um marco importante na história da vigilância em saúde no Brasil. É preciso que essa prática seja mantida mesmo após a pandemia e estendida para os demais sistemas e agravos de saúde monitorados no país. Não se pode admitir indisponibilidade de dados, muito menos em momento de emergência de saúde pública, pois a falta de respostas oportunas, de detecção de eventos importantes e lacunas nas recomendações e na tomada de decisão por ausência de indicadores têm consequências não apenas em um SUS mais sobrecarregado, mas, ainda mais importante, com potenciais consequências em casos graves das doenças monitoradas e vidas perdidas.
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