Excesso de mortes por Covid-19: estudo da ENSP analisa subnotificação e desigualdades regionais no Brasil
Estimar o número de mortes e suas diferenças em cidades brasileiras gravemente afetadas pela epidemia de Covid-19, de acordo com o local de ocorrência do óbito, características demográficas e trajetória ao longo do tempo é o objetivo de um estudo com participação de pesquisadores da ENSP, considerado uma ferramenta importante para o processo de tomada de decisão na gestão de saúde pública.
Diante das incertezas sobre a magnitude da mortalidade por Covid-19, a medida do excesso de óbitos ocorridos num determinado período tem sido cada vez mais utilizada, por ser um parâmetro objetivo e comparável para avaliar o impacto de pandemias sobre a mortalidade, constituindo uma ferramenta importante para o processo de tomada de decisão em suas diferentes fases. Pouca atenção tem sido dada à avaliação do excesso de mortes, sobretudo nos países em desenvolvimento, afirma a pesquisa publicada pelo Cadernos de Saúde Pública.
Segundo o estudo Excesso de mortes durante a pandemia de Covid-19: subnotificação e desigualdades regionais no Brasil, de autoria dos pesquisadores Jesem Douglas Yamall Orellana, Geraldo Marcelo da Cunha, Lihsieh Marrero, Ronaldo Ismerio Moreira, Iuri da Costa Leite e Bernardo Lessa Horta, o Brasil é um dos países mais afetados pela pandemia de Covid-19 e o real número de mortes pela doença torna o cenário ainda mais desafiador. A finalidade deste estudo foi estimar o excesso de mortes e suas diferenças em adultos com 20 anos e mais em Manaus (Amazonas), Fortaleza (Ceará), Rio de Janeiro e São Paulo, de acordo com o local de ocorrência do óbito, características demográficas e trajetória ao longo do tempo.
Os dados foram obtidos no Sistema de Informações sobre Mortalidade e na Central de Informações do Registro Civil Nacional. As estimativas de óbitos esperados foram obtidas por meio de modelos aditivos generalizados quasi-Poisson com ajuste de sobredispersão. Entre 23 de fevereiro e 13 de junho de 2020, foram registradas 74.410 mortes naturais nas quatro cidades, com excesso de mortes de 46% (IC95%: 44-47).
O maior excesso de mortes ocorreu em Manaus, 112% (IC95%: 103-121), seguido por Fortaleza, 72% (IC95%: 67-78), Rio de Janeiro, 42% (IC95%: 40-45) e São Paulo, 34% (IC95%: 32-36). O excesso de mortes foi maior nos homens e não significativo nas Semanas Epidemiológicas (SE) 9-12, exceto em São Paulo, 10% (IC95%: 6-14). Em geral, o pico de mortes excedentes ocorreu nas SE 17-20. O excesso de mortes não explicado diretamente pela Covid-19 e de mortes em domicílios/via pública foi alto, especialmente em Manaus.
A elevada porcentagem de mortes excedentes, de mortes não explicadas diretamente pela Covid-19 e de mortes fora do hospital sugerem alta subnotificação de mortes por Covid-19 e reforça a extensa dispersão do SARS-CoV-2, como também a necessidade da revisão de todas as causas de mortes associadas a sintomas respiratórios pelos serviços de vigilância epidemiológica.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 26 de outubro de 2020, já haviam sido registrados aproximadamente 43 milhões de casos e 1,2 milhão de mortes pela Covid-19 no mundo. Atualmente, a América Latina e o Caribe são o principal polo de ocorrência da doença; o Brasil, com cerca de 182 mil óbitos confirmados, é superado apenas pelos Estados Unidos em número de mortes (OMS. https://covid19.who.int/, acessado em 14/Dez/2020).
Estimativas acuradas de mortes por Covid-19 constituem um importante desafio para a vigilância da pandemia, principalmente entre os países de baixa e média renda, onde a letalidade da doença é magnificada pelo acesso limitado aos serviços de saúde, pela dinâmica política e pela maior incidência da doença nos grupos com menor nível socioeconômico. Populações em desvantagem social enfrentam mais dificuldades para realizar o efetivo isolamento ao serem infectados, pois residem em domicílios densamente ocupados e em condições sanitárias precárias, favorecendo a disseminação do SARS-CoV-2.
Segundo estudo com dados extraídos do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde e da Central de Informações do Registro Civil (CRC) Nacional, os dados sobre mortalidade específica por Covid-19 foram obtidos no painel de casos da doença no Brasil, em 21 de agosto de 2020, 71 dias após o encerramento da Semana Epidemiológica (SE) 24, que marca o fim do período de análise.
Foram incluídas quatro metrópoles regionais, duas da Região Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo), uma da Região Nordeste (Fortaleza - Estado do Ceará) e outra da Região Norte (Manaus - Estado do Amazonas). São Paulo, a maior metrópole brasileira, foi a cidade na qual o primeiro caso e óbito por COVID-19 do país foram notificados. O Rio de Janeiro, a segunda maior metrópole do país, foi a segunda cidade a notificar um óbito por Covid-19; junto com São Paulo figuram como as cidades com os maiores números de casos e óbitos por Covid-19 no Brasil. Fortaleza foi a capital mais afetada pela epidemia na Região Nordeste, já Manaus, situada na Região Amazônica, foi a capital mais afetada pela epidemia no norte do Brasil.
As demais capitais brasileiras não foram incluídas no estudo devido a diferenças, superiores a 3% entre o número de mortes registradas no SIM e no registro civil, entre as SE 9 e 24 de 2019. Ressalte-se também que até o fim da SE 24 as cidades incluídas concentravam quase 70% de todas as mortes notificadas nas 27 capitais brasileiras (Ministério da Saúde. https://covid.saude.gov.br, acessado em 21/Ago/2020).
Os dados de mortes por Covid-19 para acesso público do Ministério da Saúde não permitiam a desagregação no nível de cidade de ocorrência e idade durante as SE 9-24 de 2020. Portanto, como não é possível saber com precisão quantos indivíduos com 20 anos ou mais morreram em cada uma das cidades avaliadas neste estudo, as estimativas de mortes por Covid-19 são baseadas na proporção nacional de mortes acumuladas até o final da SE 24 em indivíduos com 20 anos ou mais, que foi de 99,2% do total de óbitos.
As seguintes variáveis foram consideradas: faixa etária, sexo, ocorrência do óbito no domicílio ou em via pública, mortes naturais observadas e esperadas, excesso de mortes naturais, mortalidade específica por Covid-19, SE e ano/calendário.
Os pesquisadores acreditam que este estudo seja o primeiro a estimar a trajetória do excesso de mortes associada à epidemia de Covid-19 em diferentes cidades brasileiras. As estimativas deles indicam 45% de mortes excedentes nas quatro cidades, bem como elevada subnotificação de mortes por Covid-19 e de mortes em domicílio ou via pública. Nas SE 9-12, início formal da epidemia no Brasil, apenas São Paulo apresentou excesso de mortes, embora de baixa magnitude e entre os homens, o que pode estar relacionado à subnotificação de mortes por Covid-19.
Outros estudos, em diferentes regiões do planeta, também têm sugerido possível subnotificação de mortes por Covid-19, especialmente entre os mais velhos. Dados atuais apontam 77 óbitos por Covid-19 (dado não apresentado) nas SE 9-12 em São Paulo (Departamento de Informática do SUS. http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0901&item=1&acao=26&pad=3165, acessado em 21/Ago/2020). No entanto, os resultados deste estudo sugerem um excesso de mortes de 10% (588 óbitos excedentes) ou um número aproximadamente oito vezes maior do que o oficial por Covid-19 em São Paulo.
Nesse mesmo período, observou-se um aumento significativo no número de hospitalizações por síndrome respiratória aguda grave (SRAG), sendo que, parte dos pacientes hospitalizados e que faleceram por SRAG, apresentou resultado negativo para os vírus que até então integravam o protocolo de vigilância nacional. O SARS-CoV-2 só foi introduzido no protocolo de vigilância nacional na SE 12.
O número anormalmente alto de hospitalizações, de óbitos por SRAG nas SE 9-12 e o elevado excesso de mortes naturais, em seu conjunto, reforçam a hipótese de que tanto o primeiro óbito como o primeiro caso de Covid-19 do Brasil podem ser anteriores às datas oficiais, 25 de fevereiro e 12 de março de 2020, respectivamente. É importante destacar que tanto São Paulo, centro financeiro e industrial do Brasil, como o Rio de Janeiro, a segunda mais populosa metrópole do país e principal centro turístico nacional, especialmente no Carnaval, foram as cidades brasileiras com as primeiras notificações de casos e óbitos por Covid-19 no país; ambas têm sido vistas como as principais portas de entrada do novo coronavírus no Brasil ou os principais pontos de difusão da epidemia.
O excesso de mortes mostrou-se elevado e, a despeito de variações entre as cidades, há padrões comuns entre elas. Após as SE 9-12, observa-se um padrão ascendente no excesso de mortes, especialmente em Manaus, o que sugere uma rápida disseminação da doença nas semanas anteriores, já que nas SE 17-20 verificou-se um excesso de mortes explosivo, seguido por queda abrupta. No período de 19 a 25 de abril de 2020, constatou-se um aumento de 360% no número de mortes em Manaus, após disseminação descontrolada e colapso do sistema de saúde.
Em Fortaleza, embora o pico de mortes tenha ocorrido nas SE 17-20, no período anterior não observou-se um excesso de mortes tão elevado, sugerindo que nas primeiras semanas da epidemia o vírus não se disseminou de forma tão abrupta como em Manaus. No entanto, a queda na mortalidade foi pequena no último período, podendo estar relacionada com as dificuldades que Fortaleza enfrentou para manter as medidas de distanciamento social, em um cenário de elevada desigualdade social e de precariedade no acesso a serviços de saúde, ou ainda por ter tido um pico de mortalidade menos agudo do que Manaus.
Após o pico nas SE 17-20, a trajetória do excesso de mortes parece tender para valores menores, conforme também observado na cidade do Rio de Janeiro, o que pode estar relacionado com as ações de distanciamento físico, com a prévia disseminação descontrolada e/ou momentânea redução na propagação viral. Em São Paulo, verificou-se excesso de mortes significativo nos diferentes períodos, mas com percentuais crescentes e inferiores a 48%. Esse cenário pode estar relacionado com o padrão local de resposta à epidemia ao longo do tempo e, pelo menos em parte, com o eventual efeito sazonal, já que nos meses de maio e junho espera-se maior circulação de vírus respiratórios que costumam impactar o perfil de adoecimento e morte da população.
Cabe ressaltar que, em 2019, a microrregião de saúde à qual São Paulo pertence, apresentava maior oferta de leitos gerais, de Unidades de Terapia Intensiva e aparelhos de ventilação mecânica por 10 mil habitantes, quando comparada com as demais cidades avaliadas. Acrescente-se ainda que essa estrutura foi ampliada durante a epidemia de Covid-19.
Embora o pico do excesso de mortes tenha sido ligeiramente inferior no Rio de Janeiro, em relação a Fortaleza e, sobretudo, Manaus, observa-se significativa diferença em relação a São Paulo nas SE 17-20, evidenciando o comportamento desigual da epidemia entre as cidades. Tanto o estudo realizado por Baqui et al., que evidenciou maior letalidade por Covid-19 entre os pacientes hospitalizados nas regiões Norte e Nordeste, como o de Hallal et al. que sugere um padrão epidêmico amplamente heterogêneo no Brasil, mas com maior soroprevalência do SARS-CoV-2 nas regiões Norte e Nordeste, estão em linha com os nossos resultados que apontam para o expressivo excesso de mortes em Manaus e Fortaleza, o que pode estar relacionado não apenas com o maior número de casos, mas também com fragilidades no atendimento aos doentes.
Em países de alta renda, além dos determinantes socioeconômicos e étnico-raciais, a composição demográfica das populações também parece influenciar no excesso de mortes. Portanto, independentemente do país e da região, há evidências de que a pandemia de Covid-19 esteja expondo e ampliando as iniquidades em saúde, principalmente nas regiões mais pobres.
Apenas em São Paulo o excesso de mortes foi significativamente maior entre os indivíduos com 20 a 59 anos, sendo que em Manaus, Fortaleza e Rio de Janeiro as estimativas intervalares não se mostraram significativamente diferentes entre os indivíduos com 20 a 59 anos e aqueles com 60 e mais anos. Portanto, nossos resultados divergem de estudo realizado em Ohio, Estados Unidos, e em diversos países europeus, que também relataram maior excesso de óbitos entre os indivíduos com maior idade.
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Fonte: Artigo CSP
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