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'Cadernos de Saúde Pública' de maio aborda a pandemia de Covid-19 no Brasil

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Publicado em:07/05/2020

'Cadernos de Saúde Pública' de maio aborda a pandemia de Covid-19 no BrasilJá disponível on-line, o Cadernos de Saúde Pública de maio aborda a pandemia de Covid-19 no Brasil. Para os editores Guilherme Loureiro Werneck e Marilia Sá Carvalho, trata-se da “crônica de uma crise sanitária anunciada”. "Um dos maiores desafios sanitários em escala global deste século, pelo insuficiente conhecimento científico, alta velocidade de disseminação e capacidade de provocar mortes em populações vulneráveis, gerando incertezas sobre quais seriam as melhores estratégias para o enfrentamento da epidemia no mundo."


Para eles, no Brasil, os desafios são ainda maiores, pois pouco se sabe sobre as características de transmissão da Covid-19 num contexto de grande desigualdade social, com populações vivendo em condições precárias de habitação e saneamento, sem acesso sistemático à água e em situação de aglomeração.

De acordo com o editorial da publicação, de forma bastante esquemática e simplista, a resposta à pandemia da Covid-19 poderia ser subdivida em quatro fases: contenção, mitigação, supressão e recuperação. A primeira fase, de contenção, inicia antes do registro de casos em um país ou região. Envolve, principalmente, o rastreamento ativo dos passageiros vindos do exterior e seus contatantes, visando a evitar ou postergar a transmissão comunitária. Na atual pandemia considera-se que uma fase de contenção exemplar foi essencial para que o impacto inicial da pandemia fosse menor em Taiwan, Singapura e Hong Kong, mesmo estando próximos da China. A experiência prévia com a primeira grande epidemia de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) causada por coronavírus deste século (2003) pode, pelo menos parcialmente, explicar a bem sucedida fase de contenção nesses locais.

 

A segunda fase, de mitigação, inicia quando a transmissão sustentada da infecção já está instalada no país. O objetivo é diminuir os níveis de transmissão da doença para os grupos com maior risco de apresentarem quadros clínicos graves, além, claro, do isolamento dos casos positivos identificados. Essas medidas, denominadas de “isolamento vertical”, são em geral acompanhadas de algum grau de redução do contato social. Em geral começa com o cancelamento de grandes eventos, seguido paulatinamente por ações como a suspensão das atividades escolares, proibição de eventos menores, fechamento de teatros, cinemas e shoppings, recomendações para a redução da circulação de pessoas. É o que se convencionou chamar de “achatar a curva” da epidemia.

 

Uma fase de supressão pode ser necessária quando as medidas anteriores não conseguem ser efetivas, seja porque sua implementação não pode ser concretizada de forma adequada e imediata (p.ex.: insuficiência de testes diagnósticos necessários para identificar indivíduos infectantes logo no início da epidemia) ou porque a redução alcançada na transmissão é insuficiente para impedir o colapso na atenção à saúde. Na fase de supressão são implantadas medidas mais radicais de distanciamento social, de toda a população. Aqui o objetivo é adiar ao máximo a explosão do número de casos, por tempo suficiente até que a situação se estabilize no campo da assistência à saúde, procedimentos de testagem possam ser ampliados e, eventualmente, alguma nova ferramenta terapêutica ou preventiva eficaz (p.ex.: vacina) esteja disponível. Há controvérsias em relação a essas medidas de “isolamento horizontal”, particularmente no que concerne às suas repercussões econômicas, sociais e psicológicas em âmbito populacional.

 

 

Por fim, e não menos importante, é a fase de recuperação, quando há sinal consistente de involução da epidemia e o número de casos se torna residual. Essa última fase requer uma organização da sociedade para a reestruturação social e econômica do país. E, certamente, intervenção do Estado.

 

 

No Brasil, dizem os pesquisadores, a questão de qual seria a estratégia mais adequada para o contexto atual da epidemia, se o “isolamento vertical” ou o “isolamento horizontal”, tem dominado o debate em diferentes setores da sociedade civil, mas também entre pesquisadores e profissionais direta ou indiretamente envolvidos com o enfrentamento da epidemia. Esse debate tem analogia com o dilema da escolha de intervenções baseadas em “estratégias de alto risco” ou “estratégias populacionais”.

 

 

Conforme o editorial, a adoção de diferentes estratégias de isolamento social, vertical ou horizontal, deve ser pautada em uma análise da situação e progressão da epidemia em um determinado contexto. Dessa forma, sob o ponto de vista estritamente teórico, uma estratégia efetiva de “isolamento vertical” poderia ser a mais eficiente também por reduzir as repercussões econômicas e sociais associadas ao “isolamento horizontal”. Ocorre, porém, que as condições para a execução de um “isolamento vertical” efetivo, na situação atual da epidemia no Brasil, são muito limitadas. Isso se dá, em parte, pela alta velocidade de expansão da infecção e as dificuldades para o monitoramento e vigilância estrita de casos e contatos, uma vez que a proporção de assintomáticos se aproxima de 80% dos infectados.

 

 

Além disso e, principalmente, acrescentam eles, pela ausência de um sistema de testagem amplo estabelecido logo no início da epidemia de forma a permitir a identificação precoce dos infectados. De fato, a experiência da China mostra que, no início da epidemia, cerca de 86% das infecções não foram detectadas, mas constituíram a fonte de infecção para cerca de 79% dos casos. Não à toa, os progressos no controle da epidemia na China só ocorreram após a implantação de medidas amplas e drásticas de distanciamento social.

 

 

O editorial alerta que nos países que apresentam amplas restrições tanto na capacidade de testagem nos momentos inicial da epidemia como na cobertura da assistência ao paciente grave, como os Estados Unidos e a Itália, o “isolamento vertical” foi inicialmente executado, porém, a evolução rápida do número de casos exigiu, ainda que tardiamente, a introdução da estratégia de supressão via “isolamento horizontal”. Da mesma forma, no Reino Unido, a estratégia de isolamento vertical foi inicialmente preconizada, mas a evolução da epidemia e as projeções disponíveis levaram a uma mudança de rumo, com a adoção da estratégia de supressão baseada em isolamento social horizontal.

 

 

O texto também pontua que há tempos que a comunidade científica do campo das doenças infecciosas alerta que o advento de novas pandemias não é uma questão de “se”, mas de “quando” irá ocorrer. O século XXI presenciou várias epidemias que puderam ser contidas em algum nível temporal ou geográfico, como as duas epidemias de coronavírus (pelo SARS-CoV e a síndrome respiratória do Oriente Médio - MERS), as epidemias de Ebola na África e a epidemia de gripe aviária (H5N1). Em conjunto elas provocaram menos mortes do que a Covid-19. A pandemia de influenza H1N1 de 2009, para a qual uma vacina estava disponível, foi devastadora, estimando-se que entre 150 mil a 575 mil pessoas morreram de causas associada à infecção. O número de mortes que serão provocadas por Covid-19 é uma incógnita, mas estimativas atuais indicam que poderá superar 2 milhões de óbitos, mesmo com a implantação de medidas de supressão precoces.

 

 

No Brasil, destaca o editorial, o panorama é incerto e as estimativas válidas e confiáveis do número de casos e óbitos por Covid -19 esbarram na ausência de dados confiáveis, seja dos casos ou da implantação efetiva das medidas de supressão, frente às recomendações contraditórias das autoridades em cada nível de governo. Entre as regiões do país, trabalhos preliminares baseados em dados de mobilidade interurbana apontam os caminhos potenciais da difusão da epidemia como instrumento de alocação dos recursos necessários à adequada assistência, já escassos. Pouco se sabe sobre como a epidemia se propagará e afetará as comunidades de baixa renda, um panorama completamente novo, considerando os países mais afetados até agora.

 

 

O editorial ainda alerta que a epidemia de Covid -19 encontra a população brasileira em situação de extrema vulnerabilidade, com altas taxas de desemprego e cortes profundos nas políticas sociais. Ao longo dos últimos anos, especialmente após a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, que impõe radical teto de gastos públicos e com as políticas econômicas implantadas pelo atual governo, há um crescente e intenso estrangulamento dos investimentos em saúde e pesquisa no Brasil. É justamente nesses momentos de crise que a sociedade percebe a importância para um país de um sistema de ciência e tecnologia forte e de um sistema único de saúde que garanta o direito universal à saúde.

 

 

No momento, conclui o texto, as decisões imediatas devem buscar poupar vidas, garantindo a assistência de boa qualidade ao paciente grave. É também indispensável minimizar os danos econômicos, sociais e psicológicos das populações mais vulneráveis, por meio da adoção de medidas fiscais e sociais. “Devemos levantar nossas vozes em defesa do sistema único de saúde e exigir que os que hoje governam o país se engajem na defesa da vida do nosso povo, do contrário, serão responsabilizados pela promoção daquilo que se apresenta potencialmente como uma das maiores tragédias sanitárias já vividas neste país”, finalizam.

 

 

No seu Espaço Temático, a revista traz três artigos sobre a Covid-19. No artigo COVID-19 nas prisões: um desafio impossível para a saúde pública?, Alexandra Sánchez, Luciana Simas, Vilma Diuana e Bernard Larouze consideram que as 748 mil pessoas privadas de liberdade (PPL) no Brasil, inclusive as 50 mil no Estado de Rio de Janeiro, estão praticamente ausentes dos debates públicos sobre a Covid-19. Entretanto, pode-se conceber condições mais favoráveis à disseminação do SARS-CoV-2, vírus de transmissão aérea e por contato interpessoal, do que nessa população confinada em celas superlotadas, pouco ventiladas e com acesso limitado à água?

 

 

Na população livre estima-se que cada infectado contamine 2 a 3 pessoas. Dadas as condições de encarceramento nas prisões brasileiras, pode-se estimar que um caso contamine até 10 pessoas. Assim, em uma cela com 150 PPL, 67% deles estarão infectados ao final de 14 dias, e a totalidade, em 21 dias. A maioria dos infectados (80%) permanecerá assintomática ou desenvolverá formas leves, 20% progredirão para formas mais graves que necessitarão hospitalização, dos quais, 6% em UTI. Nesse contexto, ações de enfrentamento a Covid-19 devem ser antecipadas para que a situação não fique fora do controle. “Para predizer a evolução da pandemia nas prisões brasileiras não devemos tomar como referência as prisões europeias, onde a difusão do vírus foi limitada, uma vez que, naquele continente, as celas, quando coletivas, abrigam de modo geral não mais do que quatro presos, em melhores condições de salubridade.”

 

 

Para os autores, é um equívoco pensar que o bloqueio total das prisões, com isolamento coletivo dos presos e a limitação de informação sobre a situação nas unidades prisionais permitirão evitar a disseminação da Covid-19 no universo carcerário. São necessárias e eticamente indispensáveis à efetiva implantação, com toda a transparência, de estratégias de enfrentamento e vigilância cientificamente fundamentadas e similares às preconizadas para a população geral, para evitar o risco de um drama humanitário que transformaria, mais do que nunca, a prisão no epicentro da necropolítica.



O artigo Reposicionamento de cloroquina e hidroxicloroquina em tempos de pandemia de COVID-19, nem tudo que reluz é ouro, de Francisco José Roma Paumgartten, Isabella Fernandes Delgado, Luciana da Rocha Pitta e Ana Cecilia Amado Xavier de Oliveira, observa que o reposicionamento ou reaproveitamento de medicamentos (DR) envolve a avaliação clínica de medicamentos existentes para indicações terapêuticas novas e ainda não aprovadas. Segundo eles, foi provocado por achados clínicos ou experimentais aleatórios, ou ainda pelo avanço do conhecimento sobre o mecanismo de ação da droga. O alto rendimento em ferramentas silico envolvendo técnicas computacionais e inteligência artificial, no entanto, também pode prever quais drogas (em uso, descontinuadas, ou arquivadas) são mais propensas a serem redirecionadas para condições médicas que ainda carecem de tratamentos eficazes. O reposicionamento não é incomum nem é menos lucrativo para as empresas farmacêuticas. Nos Estados Unidos, por exemplo, o reaproveitamento representou cerca de 25% das aprovações de medicamentos nos últimos anos.

 

Os autores dizem que os ensaios abertos incluem um alto risco de viés e, no cenário atual de pandemias, muitos pesquisadores podem ter expectativas sobre o resultado. Um é um estudo de braço único, enquanto outro estudo aberto foi projetado para avaliar se o HCQ mais a azitromicina (um medicamento para infecções bacterianas) é superior à monoterapia com HCQ. Sofrendo de importantes limitações metodológicas, os ensaios abertos não serão suficientes para esclarecer se o CQ e o HCQ são de fato úteis para o tratamento do COVID-19-ARDS. Espera-se que a evidência mais robusta nesse sentido venha de três ECRs cujo design envolve mascaramento e ocultação de alocação. A conclusão desses ECRs está prevista para setembro de 2020, abril de 2021 e fevereiro de 2022.



Eles concluem: aos que procuram desesperadamente um remédio para as pandemias uma poderosa metáfora shakespeariana: “Nem tudo que reluz é ouro - você já ouviu isso com frequência. Muitos homens venderam suas almas; Só para ver minha superfície brilhante. Mas os túmulos dourados contêm vermes ”(William Shakespeare; O Mercador de Veneza, Ato II, Cena VII, adaptado ao inglês moderno).



Por fim, no artigo A pandemia de COVID-19: securitização, crise neoliberal e a vulnerabilização global, João Nunes  situa a pandemia da doença do coronavírus (COVID-19) num cenário de securitização da saúde global. Ele aborda a pandemia como uma crise do modelo econômico neoliberal e como resultado de um processo de vulnerabilização decorrente do neoliberalismo. “Essa pandemia nos convoca a repensar as vulnerabilidades resultantes da interconexão global. Sublinho a importância da saúde pública e participada no contexto de uma reflexão acerca das possibilidades de uma vida solidária e sustentável à escala global.”

 


Fonte: CSP maio/2020

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