Os profissionais de Saúde em tempos de Covid-19: a realidade brasileira
Especialista em gestão do trabalho em Saúde, a pesquisadora Maria Helena Machado, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), escreveu artigo sobre a essencialidade dos profissionais de Saúde num cenário de crise sanitária, como a pandemia do coronavírus. Publicado na versão on-line do O Globo, nesta segunda-feira, o texto destaca a vocação e missão desses profissionais para atenção à saúde da população. “O enfrentamento da crise sanitária com o novo Covid-19, em nosso país, tem sido possível por conta exatamente do SUS e de seus trabalhadores.” Confira a versão publicada no jornal e o texto na íntegra.
Os profissionais de saúde em tempos de COVID19 – a realidade brasileira
Por: Maria Helena Machado
O Brasil tem dois patrimônios no âmbito da saúde: o SUS e os mais de 3 milhões e meio de profissionais de Saúde que nele atuam.
Fruto de um processo histórico de três décadas, o SUS assegura, pela Constituição Federal, saúde à toda a população brasileira. Á época de sua criação, na década de 1980, o país contava com pouco mais de 18 mil estabelecimentos de saúde, 570 mil empregos de saúde e uma equipe bipolarizada entre médicos e atendentes de enfermagem (nível elementar de escolaridade). Trinta anos depois, o SUS é, hoje, o maior patrimônio público, com mais de 200 mil estabelecimentos de Saúde - hospitalares e ambulatoriais, 3 milhões e 500 mil trabalhadores empregados, sendo boa parte de nível superior. A equipe de Saúde passa a ser multiprofissional, constituída de médicos, enfermeiros, farmacêuticos, odontólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos, além de técnicos e auxiliares de Saúde (enfermagem e demais áreas) (CNES, 2017).
É fato incontestável que o SUS, operado na rede pública (federal, estadual e municipal) e na rede privada/filantrópica conveniada, é sustentado e movido por um enorme contingente de trabalhadores. É fato, também, que esses trabalhadores são considerados essenciais ao sistema de saúde e imprescindíveis ao processo civilizatório de nosso país.
Ser profissional da saúde significa, antes de tudo, ser um profissional com vocação e missão especiais. A crise sanitária que impõe o coronavirus nos ínsita a reafirmar essa premissa: Profissional de Saúde é um Bem Público – um patrimônio de 3 milhões e 500 mil pessoas qualificadas a serviço desse bem universal chamado Saúde.
É fato, também, que a sociedade moderna é alicerçada em uma sociedade de profissões, visto que a maioria das atividades humanas evoca profissionalismo para sua execução. O que seja saúde, doença, sanidade ou insanidade ou. até mesmo, o que é ordem ou desordem são definidos no construto teórico das corporações profissionais. A saúde é um caso exemplar desse profissionalismo levado a sério.
Utilizando o construto teórico da sociologia das profissões, pode-se afirmar que um profissional é um indivíduo que tem controle e domínio sobre um campo do saber, em nome da primazia da racionalidade cognitiva e orientado para a aplicação desse conhecimento na solução de problemas da realidade dada. O saber tem valor privilegiado e define condutas técnicas e áreas de aplicabilidade da base cognitiva. Esse conhecimento especializado permite a ele exercer a autoridade sobre o paciente, sobre a população. Suas recomendações são levadas a sério não só pelo paciente, como também pela população e, especialmente, pelas autoridades governamentais que prezam pela integridade e o bem-estar dos indivíduos.
Em resumo, o saber profissional deve operar como uma espécie de caixa-preta que contém um conjunto de teorias e técnicas indecifráveis para leigos, mas, ao mesmo tempo, com suficiente visibilidade social para ser diferenciado dos vários saberes socialmente produzidos. O domínio e o monopólio desse saber constituem o fundamento da autonomia das profissões e do seu prestígio social. O conhecimento adquirido pelas profissões da saúde sobre a enfermidade e seu tratamento são o que se constitui a autoridade profissional, uma autoridade cultural que se manifesta pela construção de realidades.
Sendo então – por sua essencialidade e por serem doutos de sua habilidade cognitiva – detentores de saberes especializados e altamente treinados em escolas credenciadas, eles são inseridos no mercado de trabalho em postos de trabalho, seja no setor público como no privado. Um mercado de trabalho complexo e altamente profissionalizado. Dados oficiais do IBGE, CNES, etc. atestam essa essencialidade quando registraM, por exemplo, a presença de médicos e enfermeiros, mesmo com sinais de má distribuição regional ou até mesmo escassez nos 5.570 municípios, nas 27 unidades da Federação e nas 5 regiões geográficas do país, prestando assistência à população.
O enfrentamento da crise sanitária com o novo coronavirus, em nosso país, tem sido possível por conta exatamente do SUS e de seus trabalhadores. Estamos falando de profissionais atuando na assistência direta à população nos hospitais e ambulatórios, na ciência e tecnologia produzindo e disponibilizando saberes, conhecimentos, tecnologia e insumos, na gestão pública; enfim, prestando serviços de alto valor social.
Contudo, sabemos das mazelas que o SUS vem enfrentando com o crescimento da terceirização e da informalidade da inserção desses profissionais essenciais. As premissas preconizadas pela Organização Internacional do Trabalho no combate ao trabalho precário, sendo aquele com contrato de trabalho desprotegido de amparo legal, nunca foram tão atuais e contemporâneas neste mundo globalizado. A OIT elenca sete dimensões inter-relacionadas de precariedade, contrapondo ao trabalho decente: 1) insegurança do mercado de trabalho pela ausência de oportunidades de trabalho; 2) insegurança do trabalho gerada pela proteção inadequada em caso de demissão; 3) insegurança de emprego gerada pela ausência de delimitações da atividade ou até mesmo de qualificação de trabalho; 4) insegurança de integridade física e de saúde em razão das más condições das instalações e do ambiente de trabalho; 5) insegurança no trabalho gerada pela falta de educação básica; 6) insegurança de renda, fruto da baixa remuneração e ausência de expectativa de melhorias salariais; 7) insegurança de representação quando o trabalhador não se sente protegido e representado por um sindicato.
Infelizmente, a realidade brasileira nos aproxima mais do trabalho precário, nos distanciando, inexoravelmente, do trabalho decente, preconizado pela OIT. Pesquisas recentes com categorias essenciais da saúde (médicos e enfermeiros, por exemplo) mostram que esses profissionais têm aumentado sua carga de trabalho diária, trabalhando interruptamente, com salários baixos, os quais, se comparados a realidades internacionais, levariam a constrangimentos do “incomparável”. A adoção do multiemprego e o prolongamento da jornada de trabalho semanal, abdicando do descanso entre um trabalho e outro, passa a ser realidade dada em todo o país, seja no setor público como no privado. O desgaste profissional, o estresse, o adoecimento, os acidentes de trabalho acabam assumindo dimensões insustentáveis.
Se estamos falando de um bem público, é preciso voltar nossas atenções e refletir juntos a essencialidade do trabalho deles, representados aqui pelos médicos e pela enfermagem, além de todos os demais profissionais da Saúde que compõem esse contingente de mais de 3 milhões e meio de trabalhadores, expressando nossa gratidão, nosso reconhecimento, nossa confiança e esperança de vencermos essa batalha sanitária.
Salve nosso SUS!
Salve nossos Trabalhadores da Saúde!
Salve nossos Patrimônios nacionais!!
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