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'Intervenção militar não é proposta, é tática midiática', afirma Luciana Boiteux

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Publicado em:23/05/2018
'Intervenção militar não é proposta, é tática midiática', afirma Luciana BoiteuxNa terça-feira, 8 de maio, o XIII Ciclo de Debates - Conversando sobre a Estratégia de Saúde da Família discutiu a Intervenção Militar no Rio de Janeiro: interferências no contexto do território da saúde, evento que teve participação da professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luciana Boiteux, do Delegado de polícia civil do Estado do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone, e da pós doutoranda da Universidade Federal Fluminense (UFF), Renata Souza. Antes do debate foram apresentados vídeos em homenagem à memória de Marielle Franco. A mesa foi coordenada pela residente da ENSP Clara Camatta. Na ocasião, Luciana Boiteux lamentou o fato de o Brasil ter menos de 3% da população mundial, mas responder por quase 13% dos assassinatos no mundo.

Segundo dados do Atlas da Violência 2017, em 2014, chegamos ao topo do ranking do número absoluto de homicídios: foram 59.627 mortes (taxa de 27,5 homicídios por 100 mil habitantes). Luciana explicou que a escolha do Rio de Janeiro para receber a intervenção militar não se deu devido aos números de violência, mas sim ao fato do Rio de Janeiro ser uma vitrine. Sergipe e Alagoas, por exemplo, possuem taxas de homicídio muito maiores do que o Rio de Janeiro. Em seguida a professora falou sobre o alvo dos homicídios no Brasil. “A violência letal não se concentra apenas em locais, mas também em grupos populacionais específicos. Vítimas e perpetradores com frequência correspondem a um mesmo perfil. Comparando várias cidades da América Latina chegamos ao dado que mostra que 90% de todas as vítimas entre 2003 e 2014 eram jovens do sexo masculino. A violência de gênero tem recordes no Brasil e características específicas.”

A cor da pele e a condição social também são fatores importantes nesses casos: homens, pobres e não brancos estão sob maior risco de serem vítimas do que brancos com rendas superiores. No Brasil, uma grande proporção das pessoas assassinadas é de jovens negros pobres. Racismo, desigualdades estruturais e discriminação são fatores que moldam a violência letal e devem ser levados em consideração em sua prevenção. A professora citou ainda a questão do feminicídio e o baixo nível de elucidação dos homicídios. Segundo ela, 4.621 mulheres foram assassinadas em 2015. Um taxa de 4,5 mortes para cada 100 mil mulheres. “De 2005 a 2015 tivemos um crescimento de 22% da mortalidade de mulheres negras e redução 7,4% da mortalidade de mulheres não negras”, apontou Luciana.

Sobre o baixo nível de elucidação de homicídios e outros crimes violentos, Luciana reforçou a preocupação de especialistas da área. Enquanto na Ásia e na Europa por volta de 80% e 85% dos homicídios são solucionados, nas Américas, essa proporção cai para 50% - e abaixo de 10% em alguns países. A impunidade de homicídios dolosos no Brasil é de 92%. A professora citou ainda alguns tipos de violência e a cultura de violência em nosso país. “A sociedade cria processos que fazem parecer como legítimas certas ações violentas, que são justificadas a partir de discursos - especialmente nas redes sociais - que apresentam razões e justificativas para legitimar ações violentas como se esta fosse devida em consequência de determinadas ações da pessoa que sofreu a violência”, analisou.

Guerra às drogas e violência

Luciana falou também sobre a guerra às drogas e violência. No Brasil temos atualmente uma política proibicionista, que inclui um sistema penal repressivo e seletivo, a criminalização da pobreza, além da ausência de políticas de prevenção e de tratamento. A guerra às drogas traz o superencarceramento no Brasil. Em 2016, por exemplo, foram presos 726.712 pessoas, sendo 176.691 por tráfico de drogas, ou seja, 28% das pessoas foram presas por tráfico de drogas. “O encarceramento por tráfico de drogas é um dos fatores que mais influenciaram o crescimento total da população carcerária brasileira. A maior parte dos presos no nosso sistema penitenciário é de jovens, negros e pardos, entre 18 e 34 anos. O crescimento do número de presas mulheres condenadas por tráfico é ainda mais significativo e relevante, pelas suas consequências sociais. A mulher presa no Brasil é jovem, mãe solteira, afrodescendente, pobre, e responde por tráfico”, finalizou. Por fim, Luciana citou diversas propostas que ajudariam a solucionar a questão da violência no país. “Segurança ou é para todos ou não é para ninguém e intervenção militar não é proposta, é tática midiática”.

Após os dados altamente expressivos apresentados pela professora Luciana Boiteux, a pós doutoranda da Universidade Federal Fluminense (UFF), Renata Souza, falou especificamente sobre a intervenção e ressaltou: “a intervenção militar não é uma novidade, principalmente nas favelas. Em nome de uma suposta democracia o exército está novamente nas favelas e a mídia e a sociedade aplaudem essa lógica bélica colocada somente para a favela. Renata falou ainda sobre o investimento público. “Se olharmos para os investimentos feitos nas favelas, educação e segurança, por exemplo, vemos claramente que há um investimento concreto para matar preto, pobre e favelado todos os dias. Investe-se para matar e não em políticas sociais”, expôs ela.

Segundo Renata, existe um ciclo do genocídio que vai desde o encarceramento em massa, chegando na saúde, tanto no corpo quanto na mente. Isso faz parte de uma política de retirada de direitos fundamentais constante aos quais os pretos, pobres e favelados estão submetidos diariamente. Na perspectiva da educação, Renata citou a questão das aulas na Maré. De acordo com ela, em 2016, ao todo foram 11 dias de aulas suspensas devido à operações policiais. “Se fizermos uma conta por alto do números de dias de aulas perdidas por alunos de escolas localizadas em comunidades, percebemos claramente que o aluno tem enorme déficit escolar. Isso é inaceitável. O que se coloca para os moradores das favelas é a construção do medo”, lamentou.

Sobre a segurança pública Renata foi categórica ao afirmar que as únicas empresas que não foram afetadas pela crise atual foram as empresas de segurança privada, que nos últimos 10 anos cresceram cerca de 200%. “Atualmente essas empresas empregam mais que a polícia civil e militar. A cada quatro profissionais de empresas de segurança privada, um é policial. Ou seja, quem toca o terror nas favelas é quem constrói o medo”. Finalizando sua exposição a pós doutoranda da UFF ressaltou a importância de disputarmos a narrativa e alertou sobre a questão das legalização das drogas. “Enquanto não se discutir a legalização das drogas vão continuar matando pobres e negros. Pensar em saúde pública é pensar segurança pública, pois as pessoas estão adoecidas, principalmente, por não enxergar uma perspectiva de futuro. A Fiocruz tem um papel fundamental nesta debate. Todos nós precisamos sobreviver. A luta é por existir e não por resistir”, concluiu ela.

Fechando as discussões do segundo dia de atividades do XIII Ciclo de Debates - Conversando sobre a Estratégia de Saúde da Família, o Delegado de polícia civil do Estado do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone começou sua fala ressaltando que a tristeza - devido à perda de Marielle Franco - o levou a pensar na forma como o racismo se desenvolveu no Brasil. Em seguida o delegado pontuou alguns fatos históricos para explicar a relação da construção do processo do racismo no Brasil, de enxergar o negro como inimigo. Orlando afirmou que o racismo no Brasil é estruturante. Outro ponto abordado pelo delegado foi sobre a função pacificadora cruel do exército. “Após a ditadura os militares se esforçaram muito para se manter no processo de redemocratização, e aonde eles ficaram? Na segurança pública, na militarização da segurança. Neste momento deveria ter sido pensado um processo de redemocratização da polícia também”, analisou ele.

Orlando Zaccone afirmou que nossa estrutura política explica o racismo estrutural em nosso país. “Não vamos avançar desta forma, pois o racismo estrutural é construído politicamente, a máquina política é racista. Então precisamos sim pensar nas eleições, chega desse papo de dizer que eleições não resolvem. Precisamos entrar no debate da legalização das drogas como uma forma de acabar com o racismo estrutural no Brasil, mas para isso é preciso ter estratégia, sem elas não iremos a lugar nenhum. O uso medicinal do canabidiol é uma pauta mais do que urgente nesse debate. Precisamos regulamentar o uso para fins terapêuticos. O Brasil não autoriza a produção, nos Estados Unidos, por exemplo, nove estados (autorizados através de plebiscito) já fazem a produção do canabidiol. O debate do uso medicinal da maconha se torna cada vez mais urgente e a porta de entrada para esse debate da legalização é a farmácia. Não estamos sozinhos nessa luta, mas sem pensar em estratégias eficazes, não chegaremos a lugar nenhum”, finalizou.

Em breve todas mesas do XIII Ciclo de Debates - Conversando sobre a Estratégia de Saúde da Família estarão disponíveis no Canal da ENSP no Youtube.  


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