É falso o discurso único de que não há alternativas ao corte de gastos públicos para conter a crise, afirmam pesquisadoras
O estabelecimento de um teto fiscal para os gastos com políticas sociais é um "remédio amargo", do qual o governo interino está lançando mão indevidamente, modificando o modelo constitucional vigente. A comparação é da procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo Élida Graziane Pinto, no debate Estado de sítio fiscal no SUS, da série Futuros do Brasil, realizado pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, em parceria com o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 16/8, no Rio de Janeiro, do qual participou, ao lado da assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e conselheira do Cebes Graziele Custódio David.
Por meio de um resgate histórico das revisões já realizadas na Constituição, Élida Graziane buscou apresentar elementos para a compreensão da proposta e, consequentemente, para o seu necessário enfrentamento. A PEC 241/2016, enviada pelo governo interino de Michel Temer à Câmara dos Deputados, altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988, para instituir por 20 anos o Novo Regime Fiscal, que limita as despesas primárias da União aos gastos do ano anterior, corrigidos pela inflação oficial (IPCA). A mudança afeta os critérios para cálculo das despesas mínimas com saúde e educação, que não estariam mais atreladas a percentuais da receita.
Élida trouxe à tona alguns instrumentos com os quais a PEC 241 trabalha, situando em 1994 a criação de um mecanismo de flexibilização do orçamento da Seguridade Social – composta pelo tripé Previdência, Saúde e Assistência Social –, a pretexto de um fundo social de emergência. Esse mecanismo, explica Élida, manteve-se por sucessivas emendas no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição de 1988. “Isso começou a se esvaziar o desenho de solidariedade que amparava a seguridade social”, observa.
A PEC 241, ou PEC do Teto Fiscal, diz a promotora, traz novamente essa ideia de adotar um “remédio amargo, extremo e excepcional”, por meio do ADCT. “Nossa relação, sobretudo econômica e financeira, com os direitos fundamentais e a forma de, na prática, implementar o ajuste fiscal no ADCT é de profunda hipocrisia e cinismo”, considera. “A parte bonita estrutural, que se quer vender está no texto permanente. O que funciona para valer fica no ADCT. É um retrato de Dorian Gray, uma pintura que esconde nosso cinismo, um quadro que falseia a realidade”, diz, tomando como referência o livro de Oscar Wilde.
Em relação ao título do debate, Élida observou que o termo estado de sítio refere-se à suspensão da eficácia a direitos por mais de 30 dias para fazer frente a calamidades, não cabendo, no entanto, essa suspensão por um prazo tão longo quanto 20 anos. “Não há fundamento no direito brasileiro que justifique isso”, diz, utilizando outros casos como comparação. A dispensa de licitação no serviço público, por exemplo, fica facultada por 180 dias em casos de calamidade; outros prazos citados,não passam de dois anos.
“O tempo tem militado contra nós. Ou conseguimos de fato fazer uma conscientização e compreensão desse debate – trazendo a repercussão disso para as escolhas eleitorais da população já em outubro, no processo de eleições municipais – ou o Congresso Nacional vai deliberar como se fosse uma questão fatalista de ajuste fiscal necessária, rapidamente, quase de forma indolor. E teremos um orçamento não só para a saúde, mas também para a educação, muito inferior para os próximos 20 anos”, alerta. “É necessário elucidar conceitos e conhecer a fundamentação jurídica e financeira que orienta a proposta, para que seja possível refutar essa tese de que não há outra forma de agir ou de que isso é consonante com o ordenamento que eles estão propondo. Porque não é”.
Também em uma crítica ao “discurso único” no campo econômico, de que não há alternativas ao corte de despesas para conter a crise, Graziele Custódio David alertou para a tentativa de se afirmar que a única solução é o ajuste fiscal e medidas de austeridade. “É uma forma de dominar a consciência coletiva. Isso nos impõe enfrentar esse cenário. Será que de fato não existem alternativas? Será que esse discurso único que estão tentando impor é verdadeiro mesmo?”, convida à reflexão.
Ao analisar dados nacionais organizados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) referentes a receita e despesas, do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso até o primeiro de Dilma Rousseff, Graziele mostra que as despesas apresentam crescimento durante os governos FHC e Lula e queda no governo Dilma. “Como afirmar, então, que as despesas estão fora de controle quando percebemos que há tendência de queda e de contenção?”, pergunta. Segundo Graziele, o problema encontra-se vinculado à arrecadação, à receita, não ao manejo das despesas. Mexer na receita, no entanto, observa, é “mexer com interesses e com grupos extremamente fortes”.
Para Graziele, entre os fatores que mais influenciaram a queda de arrecadação estão a crise econômica internacional que teve início em 2008, a política de desoneração tributária – adotada principalmente durante o primeiro mandato de Dilma – e o sistema tributário regressivo atual, um entrave no que diz respeito à arrecadação de tributos. “Temos um sistema tributário extremamente regressivo, que tributa muito mais os pobres e a classe média com impostos sobre o consumo – que já são metade da nossa arrecadação. Sobre o imposto de renda, ele só é progressivo até um ponto – ali na classe média, no servidor público que tem desconto por imposto de renda na fonte. A partir daí a gente não tributa, porque os mais ricos e super ricos recebem muito por lucros e dividendos, e estes não são taxados”, observa.
A sonegação fiscal é outro fator prejudicial à arrecadação, segundo Graziele, e deve estar em pauta nos debates sobre corrupção. “Quando uma receita em potencia é desviada por sonegação fiscal ou manobras de elisão fiscal, isso é corrupção. Você inviabilizou um dinheiro que deveria chegar para esse fundo público, e, consequentemente, inviabilizou tudo que poderia ser feito com esse recurso para garantir o interesse público”, considera, destacando que as consequências se dão principalmente sobre os mais pobres. “A sonegação fiscal amplia desigualdades. Para sonegar, é preciso ter dinheiro”.
No discurso que enfatiza as despesas, em vez de as receitas, os gastos com Seguridade Social são os principais alvos. A partir de estudo realizado realizado pela professora Denise Gentil, Graziele mostra que, na composição do orçamento da Seguridade, a receita é maior do que a despesa. “O governo, para justificar a reforma na Previdência, desconsidera todas as receitas que compõem o orçamento da seguridade social e faz um cálculo com foco somente nas despesas previdenciárias e diz que tem um déficit ali”, afirma.
Segundo a pesquisadora, o cenário da saúde é de “subfinanciamento crônico”, agravado, agora, com a PEC 241, que propõe uma inversão – em vez de definir um piso, define um teto para os gastos com políticas públicas. “O conceito de saúde que consideramos é ampliado. Se não tenho os demais direitos garantidos, não tenho a saúde também”.
Sobre as atuais políticas de contenção de gastos do governo interino, Graziele destaca que não se trata de medidas de emergência, para lidar com o momento da crise. “São propostas de longo prazo”. E propõe: “Não é hora de pensar estrategicamente em como fazer a nossa resistência?”. Como alternativas, a pesquisadora aponta a necessária redução da sonegação fiscal, a revisão das desonerações tributárias e um olhar sobre a dívida ativa da União. “A crise é muito mais de arrecadação da receita do que de despesas. Temos diversas fontes alternativas de recursos necessários às políticas sociais, de forma que não se tenha que cortar direitos. Aí começamos a perceber que o discurso único está bem incoerente, na verdade”. (Por Luiza Medeiros e Vitória Régia Gonzaga/CEE-Fiocruz).
Foto: Peter Illiciev
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Fonte: Centro de Estudos Estratégicos Fiocruz
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