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"Uma etnia em movimento": Cesteh comemora 30 anos

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Publicado em:14/12/2015
Pedro Leal David
 
A primeira parte do título desta reportagem, admita-se prontamente, é um roubo. Foi retirada, sem permissão, do nome de um poema de autoria do pesquisador da ENSP Luiz Carlos Fadel, lido por ele nas comemorações do aniversário de 30 anos do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, o Cesteh, na primeira semana de dezembro. Foram três dias de debates intensos, sobre os temas mais urgentes, como a tragédia da Samarco-Vale-BHP, a crise política do Congresso Nacional, o Zika Vírus entre outros. 
 
A leitura do poema, um almoço festivo, os reencontros calorosos no corredor foram uma espécie de respiro para discussões acaloradas, que geraram ideias novas e propostas de ação, como a de Jandira Maciel, da UFMG, de se parar de chamar o rompimento da barragem de uma megamineradora como a tragédia de Mariana
 
"É a tragédia da Samarco-Vale-BHP", nos lembrou a pesquisadora.
 
Prontamente atendida, o nome estava trocado no restante dos debates. Anamaria Tambellini, fundadora do Cesteh e atualmente  presidindo Comissão da Verdade da Reforma Sanitária, sugeriu que pesquisadores ameaçados usem o site dos depoimentos da comissão para denunciar as perseguições que vêm sofrendo. Propostas para dar prosseguimento à luta dessa “etnia em movimento”, que é como Fadel chama em seu poema o povo da Saúde do Trabalhador. Foi esse povo que, em conjunto com o da saúde e ambiente, fez fervilhar de ideias novas e combativas a festa de 30 anos do Cesteh. Ao longo da semana, o Informe ENSP publicará uma série de reportagens com os melhores momentos do evento. 
 
Na mesa de abertura, Hermano Castro lembou de dois temas da atualidade que permeariam os debates restantes: o rompimento da barragem da Samarco e os casos de microcefalia associados ao Zika Vírus. O diretor da ENSP chamou a atenção para o papél estratégico da Fiocruz na divulgação de informações corretas à população. 
 
- Recentemente, circulou um áudio, nas redes sociais, com informações incorretas creditadas à Firocruz, sobre o Zika Vírus. Nós prontamente desmentimos esse áudio. Esse é um dos tantos exemplos que mostram a importância que temos em um momento como esse. Os 30 anos do Cesteh marcam nossa presença ao lado dos trabalhadores e da população em geral. É uma luta da qual não vamos fugir. Vamos continuar empunhando essa bandeira.


 
Representando Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, a vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação, Nísia Trindade Lima, fez uma análise dos 30 anos do Cesteh como parte de um ciclo que se conclui.
 
- A redemocratização do país e da Fiocruz sob a gestão Sérgio Arouca, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, todos completam 30  anos, agora ou no ano que vem. É, portanto, um momento de se discutir os temas que nos são caros.
 
Ao abrir a primeira mesa, a Anamaria Tambellini fez um breve histórico do surgimento do campo da Saúde do Trabalhador. Uma narrativa que se confunde com sua trajetória acadêmica e a história da esquerda, no Brasil, a partir dos anos 60.
 
- A questão da saúde do trabalhador já estava na ordem do dia para pesquisadores que sofriam repressão da ditadura. Eram pessoas de esquerda, militantes. O tempo nos ajuda a ter uma visão mais justa de certas questões. Dizem, hoje, que a esquerda era dividida, mas eu não vejo assim. Os grupos tinham papéis diferentes. Alguns foram para a guerrilha, outros faziam a luta por dentro das instituições. Nós trabalhávamos a área universitária e da saúde. 
 
Entre 1968 e 1973, Anamaria fez parte de um grupo que tinha uma visão crítica da medicina e a Saúde Pública que vigorava.
 
- Nós fazíamos reuniões com pacientes para discutir a estrutura epidemiológica das doenças, mas também a condição de vida das pessoas. Havia todo um clima para se preparar para a libertação. 
 
Esse desejo de se expandir o olhar da epidemiologia para os processos sociais que determinam as doenças seria a pedra fundamental do campo da Saúde do Trabalhador. Mais um passo seria dado por Anamaria em sua tese de doutorado sobre acidentes de trânsito.
 
- Nós queríamos estudar os acidentes de trânsito dentro da perspectiva de um modelo econômico do país. Ao fazer o estudo, percebemos diferenças fundamentais entre os acidentes que envolviam e os que não envolviam motoristas profissionais. Então, nos demos conta de que havia todo um campo sobre o qual tinham pouco conhecimento e que não deveria ser abandonado. 

O campo, porém, frutificou em solo árido. Em um vídeo exibido no evento, Anamaria Tambellini aparece inaugurando o modesto prédio que o Cesteh ocupou em seus primeiros dias. 
 
- Sempre houve uma dificuldade em se convencer as pessoas, conservadoras ou de esquerda, de que a Saúde do Trabalhador era importante. Costumavam brincar que éramos guerrilheiros, porque ficávamos trabalhando praticamente escondidos, numa salinha.
 
A despeito da precariedade, há para Anamaria Tambellini algo desses primeiros dias que deve ser resgatado.
 
- Hoje, a meu ver, a questão ambiental tem mais ligação com os movimentos sociais do que a Saúde do Trabalhador. Acho também que, muitas vezes, fazemos alianças piores do que as dos pelegos que criticávamos antigamente. Perdemos força de luta para nos manter no governo. Não se pode confiar no estado. O estado capitalista nunca investe na saúde. Para pegar o dinheiro que é da saúde por direito temos que brigar. De Collor a Lula, Dilma, passando por Fenando Henrique, em todos os governos foi assim. Quem manda, hoje, são as grandes corporações. O rompimento da barragem de rejeitos em Mariana não aconteceu a toa. 


 
Ainda que com a dureza de quem não baixa a guarda, Anamaria terminou sua fala de modo otimista e vibrante.
 
- O que estamos vendo, hoje, não pode nos paralisar. Essa gente que está aí já perdeu.Temos que colocar uma pá de cal. Está na hora da gente reagir. Peço ao Cesteh que bote para fora tudo que sabe, faça denúncias. Não tenham medo. Nós ainda vamos ganhar essa luta.
 
A segunda a falar no debate foi Fátima Piveta, pesquisadora do Cesteh. Fátima lembrou do contexto político em que foi criado o laboratório do centro.
 
- Há quinze anos, meu laboratório mudou de lugar. Meu laboratório é o território de favelas do Rio de Janeiro, é a rua. Mas eu quero rememorar a criação desse que era meu espaço no Cesteh, no passado. A década de 1980 foi um período dos grandes acidentes industriuais. Temos Bhopal, na India [vazamento de gás de uma fábrica de pesticidas americana que deixou milhares de mortos e incapacitados) Vila Socó [incêndio que matou dezenas de pessoas em uma vila de barracos em Cubatão-SP, causado por um vazamento em uma refinaria da Petrobrás] É a época também das grandes demandas do movimento sindical. Temos os petroleiros da Bahia, os químicos do ABC, os metalúrgicos de Santos. O projeto do laboratório de toxicologia nasce para  responder às questões e demandas dos trabalhadores no que é referente às substâncias químicas. 
 
Fechando a manhã do primeiro dia de debate, Jussara Britto também trouxe à baila lembranças do começo do Cesteh. 
 
- Foi um momento em que a gente achava que podia fazer tudo. Trabalhava-se até às dez da noite e era prazeroso, porque gostávamos e acreditávamos no que fazíamos. Sabíamos que era um trabalho que geraria frutos. 
 
Capitalismo, políticas públicas e saúde do trabalhador.
 
Ao abrir a segunda mesa do dia, José Marçal, da Fundacentro, lembrou das mudanças pelas quais passa o mundo do trabalho. Segundo o pesquisador, elas exigem uma maior proteção dos trabalhadores.
 
- É inegável constatar que nesses trinta anos, houve muitos avanços no nosso campo. Temos a luta contra o benzeno, por exemplo. Mas houve, por outro lado, retrocessos como com relação ao uso de amianto. 
 
No que diz respeito à educação e pesquisa, Marçal também vê retrocessos.
 
- Nos últimos anos, especialmente nos 12 anos de governos petistas, o conhecimento foi alijado dos processos de decisão. Há uma indiferença das políticas públicas com relação às pesquisas. Precisamos recolocar as pesquisas em seu devido lugar. É um momento oportuno. O terremoto da política provavelmente não vai nos levar a canto nenhum, mas abre brechas para que alguns temas possam ser discutidos. 
 
Com relação às políticas sociais, o pesquisador acredita que, no Brasil, elas não passem de uma contra-política, muitas vezes, insuficiente para sanar graves problemas. 
 
- Um dos exemplos que dou é o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana. O acordo é colocado como histórico e inovador, mas apenas repete os itens que já estavam na legislação. Entre algumas proposições está o fornecimento de equipamentos de segurança gratuitos e ginástica laboral. Eu lembro que um trabalhador da cana corta, hoje, em média, de 12 a 15 toneladas por dia. Como esse trabalhador vai fazer ginástica laboral?
 
Francisco Lacaz, da Unifesp, também fez duras críticas ao modelo de políticas econômicas e sociais adotado pelos governos do PT.
 
 - É falso dizer que o governo do PT fez distribuição de renda. A cidadania foi confundida com acesso ao consumo. O mundo está de tal forma concentrando renda que haverá consequências geracionais. As forças produtivas, hoje, são forças destrutivas. Ou percebemos isso ou ficaremos bradando no deserto. 
 
Em seguida, Lacaz enumerou casos que mostram a forma como estado brasileiro funciona para financiar o sistema privado. 
 
- São setores que acumulam capital atacando fundos públicos. Veja o caso do Prouni? (Projeto de educação que concede bolsas a estudantes da rede privada de ensino). O mesmo acontece com o setor de habitação, entre outros. 


 
Além dos ataques aos fundos públicos, o capital age, no Brasil, por meio de um modelo de gestão que Lacaz chama de “Modelo Ambev”.
 
- As empresas fazem um planejamento mínimo, de três meses, em que se pretende obter a maior quantidade de lucro possível. As consequências são essas que estamos vendo. A taxa de óbitos na mineração, por exemplo, é quatro vezes maior do que em outros setores. Mas precisamos politizar esse debate e não judicializá-lo. Se estivéssemos mais preocupados com o valor de uso e não com o valor de troca das coisas teríamos condição de viver bem melhor.
 
Fechando o primeiro dia de debates que comemoram os trinta anos do Cesteh, a pesquisadora Virgínia Fontes, da UFF e da Escola Politécnica Joaquim Venâncio, ESPJV, lembrou das estratégias de que o capitalismo lança mão para promover uma cisão entre os trabalhadores e mascarar sua exploração. 
 
- Existem dois símbolos do capitalismo que, efetivamente, não existem. Um deles é o self-made man. Ninguém fica rico com o próprio trabalho. Outro mito é o do Tio Patinhas, que guarda seu dinheiro a ponto de conhecer cada uma de suas moedas. Capitalista não guarda dinheiro. Dinheiro precisa virar capital. Capital é uma relação social que envolve, de um lado, concentração de meios e recursos sociais de produção (não só a máquina, mas a possibilidade de fazer a máquina funcionar) e, por outro lado, a expropriação e produção de tralhadores necessitados em grande escala. Isso é capitalismo. Bem vindos ao mundo real. 
 
Para a pesquisadora, é preciso que as lutas pela saúde e demais direitos reconheçam esse processo de expropriação dos trabalhadores.
 
- A luta do SUS e da reforma sanitária é a luta que tem clareza da existência da classe trabalhadora. A centralidade da determinação social da saúde supõe a existência de classes, dominada e dominante. Hoje, pensar o estado como atravessado de lutas e conflitos é fundamental. Eu cito o que disse o pensador marxista Nicos Pulanzas: a democracia é preciosa, mas só vamos defendê-la do capital se não nos limitarmos a realizar procedimentos. Precisamos de valores e sujeitos.
 

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