Busca do site
menu

Encontro debateu a ética da medicina praticada hoje

ícone facebook
Publicado em:22/06/2015
Muito provavelmente é uma imagem que quase todo mundo pode buscar na memória: lança-se uma pedra em um lago e um conjunto de ondas concêntricas passa a se expandir do centro para a periferia, num movimento que acaba por tomar todo o lago. Embora desgastada, é a essa imagem que se recorre quando se tenta pôr nos termos práticos de uma cobertura jornalística o conjunto de ideias, impressões e afetos que se deram durante o primeiro encontro da série de três mesas redondas que debaterão, na ENSP, neste mês de junho, a ética da medicina praticada nos dias atuais. A pedra em questão é o livro A medicina financeira, a ética estilhaçada, de Luiz Vianna Sobrinho. As ondas que se sucederam ficaram a cargo do pensamento dos pesquisadores Luis David Castiel, Fernando Telles e Marilene Castilho. 

Encontro debateu a ética da medicina praticada hoje
 
Ao abrir a palestra, o clínico geral e pesquisador da UFRJ,  Luíz Vianna Sobrinho, resumiu com precisão o problema de que trata seu livro.
 
- Hoje, o paciente é uma meta escriturária, mas não real. 
 
O foco do trabalho é oferecer uma visão crítica da medicina que se pratica, com um texto que surge a partir de suas vivências profissionais, sem se prender às exigências formais da produção acadêmica. O livro questiona a que serve hoje a medicina que, segundo Vianna, passou a ter o médico e não o paciente como centro. O livro procura investigar o campo da medicina a partir dos conflitos de interesses que o constitui e trabalha com a hipótese do surgimento de uma nova ética médica a partir do final do século XX, em que o sucesso financeiro se sobrepõe ao alívio do sofrimento humano como meta.
 
Depois da breve apresentação de Luíz Vianna, foi a vez de Luís Castiel falar. O professor da ENSP abriu sua palestra mostrando uma visão área do prédio da Escola. Na imagem, era possível ver a forma clara da letra “P”.
 
- A leitura mais óbvia que se pode fazer é de que se trata de um “P” de “pública”, mas para mim é também de perplexidade. E ainda uma interjeição, que posso colocar depois do título do livro do Luíz Vianna: “Que medicina é essa, p…”
 
A tirada foi a primeira de muitas outras de Castiel. O professor comentou que tenta segurar a ironia, mas que, tal qual a idade, ela acaba sendo se revelando de alguma forma.
 
- Nós vivemos uma época em que há uma doma de paradoxos. Eles são vistos hoje como desajustes e tratados com ironia ou cinismo.
 
Ainda usando o livro de Luíz Vianna, Castiel propôs uma inversão do título.
 
- No lugar de “Medicina financeira, a ética estilhaçada”,  sugiro pensarmos a “Ética financeira, medicina estilhaçada”. Qual a ética do capitalismo gerencialista financeiro vigente ? Eu acho que todo mundo mais ou menos intui que é a ética utilitarista, que inegavelmente proporciona muito aqueles que têm acesso e diz para os outros como eles poderiam utilizar caso tivessem acesso.
 
O professor, que brincou dizendo ser médico de papel, tanto porque a profissão consta num documento como porque seus paciente são os papéis com que lida no dia a dia de pesquisador, reconhece à medicina suas qualidades, mas coloca sobre seu conjunto de ações um enorme ponto de interrogação.

Encontro debateu a ética da medicina praticada hoje
 
- Inegavelmente, a medicina tem eficácia. Basta ver o que é capaz de fazer uma UTI. Mas a medicina, ao mesmo tempo, está ligada a um contexto que tem determinantes históricos sociais. No campo das práticas médicas sanitárias ocorre muito mais coisas do podemos supor, do que podemos ouvir ou ler. A minha dúvida é que parte do iceberg a gente tem acesso. 
 
A mente como um holofote
 
Terceiro a falar durante a mesa redonda, o pesquisador Fernando Telles chamou a atenção para a falta de uma análise epistemológica no livro de Luíz Vianna. Para Telles, é preciso questionar qual a relação do médico, hoje, com a racionalidade médica, que ele identifica com o surgimento da anatomia patológica, narrado por Michel Focault em “O Nascimento da Clínica”. 
 
- É claro que aplicar o critério de cientificidade à medicina é um erro de categoria. Um médico não faz ciência nem “não ciência”. A medicina é uma prática. Mas ela tem o conhecimento científico por de trás: a biologia, a química, a estatística. A minha impressão é que a medicina usa mal esse conhecimento. E grande parte do etilhaçamento que Luíz Vianna chama atenção em seu livro parte do mau uso, do pouco conhecimento desse fundamento. E esse mau uso facilita um descaminho ético. E eu só vou conseguir peitar um sistema financeiro, peitar a indústria farmacêutica, se é que isso é possível, se eu souber como funciona um diagnóstico. Focault fala da virada de uma medicina medieval, clássica, para a medicina chamada moderna a partir de uma grande metáfora: o corpo humano fala. Um sintoma, antes, estava vinculado à doença vinda de fora, um ente metafísico que entrava no corpo. A partir do nascimento da anatomia patológica, se descobriu que os tecidos ofereciam uma estrutura delicada o bastante para ser a tradução linguística do sintoma. E a doença e o corpo passam a coincidir. O médico tem que se munir de determinados preconceitos, conhecer como os órgãos sofrem, como eles falam, a alteração dos tecidos, passar a ouvir o “ai“ dito por eles.O pronto-socorro, hoje, tenho a impressão, se tornou uma fábrica de tomografias. Há alguma coisa errada em pedir uma tomografia para alguém ? Não, mas não é assim que se faz um diagnóstico. Esse desconhecimento, essa má aplicação do modelo hipotético dedutivo que apareceu com a anatomia patológica, contribui para uma ética em que você dialoga menos com o paciente. Ignorando essa metoldologia, mais facilmente sou presa de uma indústria que quer vender exames complementares e uma pletora de fatores para melhorar a minha capacidade diagnóstica.
 
Citando Carl Popper, Fenando Telles concluiu sua exposição comentando a metáfora usada pelo filóofo austríaco naturalizado britânico para falar do funcionamento da mente humana:
 
- Popper diz que a nossa mente pode ser vista de duas formas. Uma delas é como uma uma espécie de balde, que vou enchendo de dados. Quando esses dados chegam a um determinado nível, eu vomito uma teoria científica. A outra possibilidade é a visão da mente como um holofote, como um ponto de vista. Eu ilumino a realidade com esse ponto de vista e é isso que vai viabilizar a minha experiência. A partir da leitura do Focault, do “Nascimento da Clíncia”, eu tenho muito pouca dúvida que de que a mente é o holofote. É o conhecimento dessa metáfora que vai nos dar o controle da prática médica. Isso tem desdobramento na ética e na consciência dos limites desse programa da medicina, que, diga-se, é responsável por seus avanços inegáveis. Para encerrar, um raciocínio que eu costumo fazer, que é o seguinte: eu adoro a metáfora da anatomia patológica quando estou com dor de dente. Não gosto tanto, mas gosto, quando estou com câncer e não gosto nada quando estou angustiado. É o pouco conhecimento desse limite que me faz entender a ansiedade como uma questão medicamentosa, por exemplo.  
 
A transgressão definha
 
Depois do diagnóstico oferecido por Fernando Vianna,  Marilene Castilho, última a falar no evento,  lembrou que vivemos um momento em que mimguam as possibilidades de contestação desse modelo médico que estilhaça a ética em nome do gerencialismo financeiro.
 
- Houve um momento, entre os anos de 1965 e 1980, mais ou menos, em que se viveu uma época de sonhos, em que se acreditava que a as proibições poderiam dar lugar a outras. No entanto, tal movimento, hoje, não parece mais possível. Vivemos o totalitarismo democrático capitalista, o totalitarismo do dólar, do relativismo.  As pessoas evitam as paixões fortes. A transgressão definha.
 
A pesquisadora falou ainda da oposição entre sujeito e indivíduo, como algo central nessa discussão.
 
- O sujeito é aquele que tenta sair da ilusão, ser criativo e buscar mudanças pequenas. É aquele capaz de perceber a alteridade no outro e em si mesmo. Não se pode pensar um sujeito afetado por distúrbios que se originam fora da sua subjetividade, como quer a neurociência.
 

Seções Relacionadas:
Divulgação Científica

Nenhum comentário para: Encontro debateu a ética da medicina praticada hoje