Processos endêmicos e de vigilâncias norteiam debates
"Infelizmente, a epidemiologia tem tratado a exposição como característica do indivíduo. E essa é a pior herança que podemos ter. Se quisermos avançar em um novo conceito do que é a vigilância, será preciso uma nova abordagem do processo saúde-doença", disse Christovam Barcellos, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), no Seminário sobre Abordagens dos Processos Endêmicos e das Vigilâncias: Avanços e Desafios na Explicação das Condições de Saúde. Promovido pelo Departamento de Endemias Samuel Pessoa, o encontro reuniu pesquisadores e gestores da área. Também durante as discussões, José da Rocha Carvalheiro, pesquisador da USP e membro do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz), explicou que é fundamental entender os conceitos das vigilâncias para a compreensão de todas as outras áreas.
O evento ocorreu no dia 22 de novembro e contou com duas grandes mesas-redondas. Participaram da primeira mesa-redonda José da Rocha Carvalheiro, Christovam de Castro Barcellos e o pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Roberto Medronho. Como debatedoras, marcaram presença a pesquisadora da UFRJ Diana Maul de Carvalho e a pesquisadora do Densp/ENSP Rosely Magalhães de Oliveira. A mesa ficou sob a responsabilidade da coordenadora do Densp/ENSP, Marly Marques da Cruz.
Por meio da citação de diversos artigos desenvolvidos por ele e por outros autores da área, Carvalheiro abriu o encontro com um panorama das condições de saúde e das múltiplas visões e teorias existentes. Os meios de produção, difusão e divulgação da ciência também foram abordados pro ele. Sua apresentação, intitulada Processos endêmicos, sociedade e estado, foi ilustrada pela marchinha "A Vacina obrigatória", de autoria desconhecida, de 1904. Dizem alguns de seus versos: “Anda o povo acelerado com horror à palmatória/ Por causa dessa lambança da vacina obrigatória./ Os panatas da sabença estão teimando dessa vez./ Querem meter o ferro a pulso,/ Bem no braço do freguês./ E os doutores da higiene vão deitando logo a mão/ Sem saberem se o sujeito/ Quer levar o ferro ou não.”
Entre os principais apontamentos feitos por Carvalheiro, está a necessidade do entendimento dos conceitos das vigilâncias para a compreensão das outras áreas. Segundo ele, isso é fundamental para o desenvolvimento.
Christovam Barcellos iniciou a sua apresentação – Vigilância em saúde: avanços teóricos e desafios metodológicos – por meio da explicação das divisões e atribuições técnicas do trabalho no SUS, como a vigilância sanitária e a vigilância epidemiológica. Apesar das diferenças de atribuições, “vigilância, de uma maneira geral, é compreender a linguagem e a dinâmica do ambiente”. Já ambiente, segundo ele, é a totalidade de elementos externos que influenciam as condições de saúde e a qualidade de vida dos indivíduos ou das comunidades. A partir desse entendimento, surgem diversos sistemas de indicadores que tentam explicar o que ocorre na natureza e com os indivíduos. No entanto, esses sistemas não são completamente confiáveis, pois estão suscetíveis a diferentes tipos de exposição, de local, de condição, entre outros.
Segundo Barcellos, nenhum processo de saúde ocorre numa escala única. Portanto, para ele, é uma ingenuidade achar que um indivíduo muda um território. Depois de apresentar conceitos de muitos autores e diversos exemplos de mapas e esquemas de análise das condições de saúde, Barcellos finalizou sua apresentação destacando três grandes indagações: a primeira diz respeito à dicotômica da exposição; a segunda sobre a exposição como objeto ambiental de saúde; e a última referente ao território como objeto, e não como categoria de análise.

Roberto Medronho, último palestrante da parte da manhã, falou sobre Transformações no espaço e no território: implicações nos processos endêmicos. O pesquisador falou especialmente sobre os estudos de dengue, área à qual mais se dedica. De acordo com ele, em países como o Brasil, mesmo que a mortalidade por doenças infecciosas esteja em franco declínio, a morbidade é muito grande.
"As doenças infecciosas têm grande impacto no mundo, sem contar os novos problemas que emergem dessa inconstância, do movimento dos territórios e espaços e também das fronteiras cada vez mais ocupadas", alertou Medronho. Para ele, basicamente o que determina essas doenças e sua permanência no Brasil e no mundo são fatores graves, em especial os socioeconômicos. “A pobreza gera doença, e os doentes tornam-se cada vez mais pobres sem conseguir sair desse ciclo vicioso. Além disso, obviamente, eventos como guerras e grandes catástrofes também influenciam esse impacto”, disse o pesquisador.
Sobre a dengue, comentou que é um processo variado e multifacetado. O aumento da gravidade e da transmissão da doença ocorre, acrescentou, pois os espaços produzem profunda relação entre a doença e o hospedeiro. Hoje, Medronho apontou, é praticamente impossível um verão em nosso país em que não ocorra uma epidemia de dengue. “Os quatro sorotipos da doença circulam em nosso país. Além disso, essa intensa circulação viral causa aumento da gravidade da doença e do número de casos. Portanto, caso não chegue a vacina, a dengue pode se tornar uma virose comum da infância”, complementou.
"Unidade de análise do processo saúde/doença no nível coletivo não é uma população, mas o espaço socialmente organizado"
A mesa-redonda da tarde reuniu o pesquisador do Densp/ENSP Paulo Chagastelles Sabroza, o pesquisador do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/ENSP) Marcelo Firpo de Souza Porto e o pesquisador do Densp/ENSP Eduardo Navarro Stotz. O pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Carlos Batistella e o pesquisador do Densp/ENSP Luciano Medeiros de Toledo foram os debatedores. As discussões foram coordenadas pelo pesquisador do Departamento de Ciências Biológicas (DCB/ENSP) André Reynaldo Santos Périssé.
Vigilâncias de base territorial local e os processos endêmico-epidêmicos foi o tema da primeira apresentação da mesa da tarde. Paulo Sabroza explicou que o fundamento da concepção de endemia é um processo coletivo de produção dos problemas de saúde. Segundo ele, a unidade de análise do processo saúde/doença no nível coletivo não é uma população, mas o espaço socialmente organizado. O pesquisador acrescentou que o processo endêmico envolve as dimensões histórica, territórial, populacional, ecológica e social.
Sobre a vigilância da saúde de base territorial e local, Sabroza comentou que envolve as vigilâncias de problemas coletivos de saúde, prioriza níveis locais e municipal, e está vinculada à atenção básica e à promoção da saúde. Além disso, está comprometida com a redução das vulnerabilidades socioambientais e com o controle público, é orientada para a produção e difusão de informações sobre análises de situações de saúde e seus determinantes socioambientais e utiliza diferentes métodos e fontes de informações, entre eles a análise de rumores. "A rede de rumores começa a trabalhar, quando possível, de maneira integrada com os serviços municipais numa vigilância das condições de saúde", contou.

Marcelo Firpo falou sobre Mudanças ambientais, vulnerabilidades em saúde e justiça ambiental. Para ele, o conceito de justiça ambiental é muito maior do que simplesmente uma discussão de mudanças ambientais intensas que ocorrem no atual contexto. "Esse entendimento justifica questões que estão associadas a abordagens pelas quais eu milito, que apoio e que acredito serem bastante frutíferas. Elas também trazem uma série de problemas, mas acredito que esse seja o maior desafio de tal tipo de abordagem, o desafio da institucionalidade."
"A ciência e a tecnologia são essencialmente emancipadoras", declarou Firpo. Para ele, há uma série de discussões importantes para quem trabalha com movimentos sociais e ambientalismo, realizadas ao longo do século XIX, sobre o papel de determinadas populações consideradas tradicionais no processo de emancipação social. De acordo com Firpo, essa discussão começou a ser resgatada desde a segunda metade do século XX e vale a pena ser discutida pelo seu sentido de progresso, desenvolvimento, transformação e emancipação social. Firpo indicou ainda a leitura do artigo "Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: um ensaio de epistemologia política", publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais, em junho de 2011, que discorre sobre uma visibilidade crescente da problemática do risco e da vulnerabilidade social na definição de políticas publicas de planejamento e gestão territorial.
Finalizando o encontro, Eduardo Stotz falou sobre Vigilâncias e promoção da saúde no território: alguns dilemas metodológicos. O pesquisador falou sobre o início de suas pesquisas na área e a identificação da necessidade da participação popular nas vigilâncias. "Ela foi inserida, há muitas décadas, como um elemento central e indispensável para o monitoramento e avaliação." Segundo ele, a compreensão da vigilância civil e da saúde está presente em diversas pesquisas. Como exemplo, citou o recente o Plano de Monitoramento Epidemiológico da Área de Influência do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) desenvolvido na ENSP.
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