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Saúde mental do trabalhador da Fiocruz na pandemia de covid-19: informação e acolhimento contra incertezas

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Publicado em:30/08/2022
Denize Nogueira, do Serviço de Psicologia, da Coordenação de Saúde do Trabalhador, ligada a Coordenação de Gestão de Pessoas (Cogepe), fala sobre os cuidados com a saúde mental do trabalhador da Fiocruz na pandemia de covid-19. Doutora em Saúde Pública pela ENSP, a psicóloga defendeu tese em dezembro de 2021 sobre trabalhadores da saúde que atuavam em emergências e desastres, que foram os casos das cidades de Mariana e Brumadinho, MG. Ela se pegou integrando o estudo à prática em um momento de grande desafio, com a declaração da emergência sanitária devido ao vírus SARS-CoV-2 no país. “Era eu que estava trabalhando em uma situação de emergência, atípica”, contou ela. Nesta entrevista, Denize fala sobre a reestruturação e o aumento dos atendimentos em saúde mental, a adaptação ao trabalho remoto e ao retorno presencial, o apoio aos trabalhadores da linha de frente e o luto daqueles que perderam familiares para a covid, para citar só algumas das questões que a pandemia suscitou e com as quais ela se depara. 










Como a saúde mental do trabalhador da Fiocruz foi afetada pela pandemia? Quais foram as principais queixas e situações que chegaram até o Serviço de Psicologia desde o início da emergência sanitária? 

 O que chegava muito [ao Serviço de Psicologia], num primeiro momento, era essa reorganização da vida, de uma forma geral, as pessoas ficaram com a vida suspensa. Não podiam sair das suas casas, não podiam levar seus filhos na escola, precisaram readaptar as suas rotinas. Para quem precisava ir ao trabalho presencial vinha um medo, e para quem ficava em casa, além do medo, também tinha a questão da reorganização do cotidiano, principalmente aqueles com filhos em casa, sem a escola… Depois, vieram os casos de ansiedade, pânico, pela incerteza, pelo medo da própria doença. Mais para frente, começaram a aparecer os casos de falecimento na família. 

Foi preciso fazer uma reorganização do serviço. Somos três psicólogos no atendimento aqui na Coordenação de Saúde do Trabalhador, e foi feita uma escala pensando no Plano de Contingência da Fiocruz. Buscamos constituir um apoio aos trabalhadores mesmo com o distanciamento social, que foi o principal desafio. No primeiro momento lemos todo o Plano de Contingência para conseguir orientar os trabalhadores sobre quem poderia ficar em casa, quem tinha que vir trabalhar presencialmente.  As dúvidas eram muito grandes e a gente se debruçou nas informações oficiais da Fiocruz. 


 Houve um aumento na procura pelo atendimento psicológico? Como se estruturou o serviço para esse aumento na demanda?

No período de abril a junho de 2020, o número de atendimentos da psicologia teve um aumento de aproximadamente 25% quando comparado ao mesmo período de 2019. Em junho de 2020, foi construído um núcleo de saúde do trabalhador [no Centro Hospitalar, o NUST-INI], e contratados quatro psicólogos, para dar suporte a esses trabalhadores da linha de frente da covid-19. E em outra frente, em abril de 2020, conseguimos reunir profissionais da nossa confiança, psicólogos, que estavam muito mobilizados em ajudar e contribuir com a Fiocruz. Foram cerca de 45 psicólogos que trabalharam de forma totalmente voluntária para atender os trabalhadores da Fundação. 

Fizemos um treinamento dos psicólogos voluntários para eles entenderem um pouco do que era a Fiocruz, do que precisávamos. Montamos um material de apoio sobre primeiros cuidados psicológicos, acolhimento. Foi uma ação importante para estruturar o cuidado naquele momento. Então foi bem intenso. Além disso, foi feita uma divulgação maciça do nosso número de telefone e e-mail, e um guia de orientação nesse primeiro momento da pandemia. 


Como a saúde mental do trabalhador da linha de frente sofreu, nos picos de casos e óbitos por covid-19, especialmente em 2020 e 2021, antes da chegada das vacinas?

Durante a construção dessa rede de psicólogos voluntários, a gente pensou muito nos trabalhadores da linha de frente. Mas eles não acessaram muito nosso serviço. O serviço do NUST-INI [no Centro Hospitalar] funcionava em um horário ampliado, e quem ficou um pouco mais próximo a esses profissionais foram as psicólogas do NUST-INI naquele primeiro momento. Então, os trabalhadores da linha de frente, os trabalhadores da saúde de um modo geral, não nos telefonavam, não falavam assim “olha, eu estou sofrendo”. Interpretamos depois que isso seria como se fosse destruir as próprias defesas [psicológicas]. Eles não estavam pensando naquele momento nos próprios medos, ou não estavam tendo tempo de acessar esses medos. 

Percebemos que na verdade os trabalhadores da linha de frente estavam disponíveis para conversar presencialmente com quem estava ali. Essa coisa do remoto, para esses trabalhadores, parece não fazer muito sentido. A maior parte da demanda de atendimento era de quem estava em casa tendo que se reestruturar. e essa reestruturação nem sempre era simples por “n” razões: questões sociais, questões familiares, questões do próprio trabalho, várias questões. 

Quais eram as dúvidas e inseguranças das pessoas que exerciam cargos de chefia em lidar com equipes remotas?

Entender as limitações tecnológicas dos trabalhadores, em termos de recursos técnicos mesmo, de ter internet boa, de não ter,  da necessidade do serviço de ter ou não alguém presencial, isso era uma preocupação muito grande das chefias. Os chefes nos procuravam  e perguntavam: “ E se eu pedir para o trabalhador vir e ele pegar covid e vier a falecer?” Era uma preocupação que nesse primeiro momento, não tinha nada de absurdo. As chefias ficaram muito sobrecarregadas nesse sentido.  O Plano de Contingência da Fiocruz foi importante  para dar um norte, mas o chefe precisava também dar uma resposta sobre o trabalho, a produção, fazer as entregas, fazer com que o trabalho continuasse mesmo com todas as dificuldades. Foi bem tenso para quem estava assumindo uma liderança, uma chefia, uma gestão de uma unidade, de estar no meio de uma “escolha de sofia”. Isto também ocorreu no início da flexibilização. 


As pessoas que perderam familiares por covid-19 muitas vezes não puderam fazer velórios e sepultamentos com a presença dos familiares e amigos. Como a questão do luto apareceu nos atendimentos?

Essa questão do luto veio mais fortemente a partir da segunda onda da pandemia, quando a [variante] gama se disseminou e colapsou o sistema de saúde. Para mim foi bem marcante. Também teve a questão de Manaus, e a gente tem a unidade Fiocruz Manaus, e fez uma conversa com os trabalhadores lá também. A segunda onda da pandemia foi a mais mortal, quando começaram a morrer mil, duas mil, três mil pessoas por dia, foi com a [variante] gama. E as pessoas já estavam cansadas do distanciamento social. Nessa fase fizemos atendimento de pessoas que tinham ficado com as famílias “esburacadas”, com a morte de mais de um familiar, por exemplo, o avô e um tio. Morreram também pessoas jovens, de 28 anos… aquele foi o momento que me chamou mais atenção em termos de luto, da perda, porque o luto já estava sendo vivenciado como uma vida em suspenso [com o isolamento], como a impossibilidade de viver toda a potencialidade da vida, e as crianças também estavam começando a sofrer. Janeiro de 2021 foi um janeiro totalmente atípico, como foi também  janeiro de 2022, da ômicron. Muita contaminação, muita internação, alguns casos de falecimento de trabalhadores e muitos casos de falecimentos de familiares. 
  

Qual foi a especificidade em lidar com a situação de Manaus?

Em Manaus foi algo mais ampliado, uma cidade inteira afetada pela falta de oxigênio, desespero, muitas pessoas com parentes doentes. Apostamos de fato em que falar sobre e partilhar a dor são estratégias de fortalecimento, de se sentir menos solitário na dor e construir outras formas de passar por isso, que vai ser doído, não tem outro jeito. Fizemos um trabalho coletivo com a unidade, fizemos alguns atendimentos remotos com os trabalhadores de lá. A Cogepe estava olhando para Manaus, a direção de lá também pediu ajuda, então a gente montou uma roda de conversa sobre o luto, sobre perda. É uma unidade acompanhada de perto até hoje. 

Como foram vivenciadas as perdas de colegas de trabalho? Existe uma recomendação ao lidar com a situação? Como fica a volta ao ambiente de trabalho presencial nesses casos?

Não tivemos, durante a fase mais crítica da pandemia, uma volta muito linear, os casos e a transmissão de covid subiam e desciam… é voltar para um ambiente onde tem a  mesa da pessoa, o ambiente, a função que ela exercia, existe toda uma questão simbólica, tem um luto não só da pessoa, mas do trabalhador e da sua interface… tudo isso não pode ser ignorado, é importante ter essa sensibilidade. Parece que no trabalho não há muito tempo para falar sobre isso, mas é imprescindível que a gente possa conversar. Não precisa contar um segredo ou se expor muito, porque ainda é o ambiente de trabalho, mas é importante poder falar sobre o que se está sentindo, poder propor coisas, entrar em consensos. A questão do luto  faz parte, assim como na vida, no trabalho também, não tem essa divisão. É uma forma individual e coletiva de lidar com isso. O coletivo pode estar mais sensível a alguém que está sentindo mais falta daquele trabalhador, a alguém que possa ser acolhido.  

 
Quais foram os maiores desafios que o Serviço de Psicologia -  e você, como profissional - enfrentou? Quais eram os principais objetivos do atendimento em saúde mental? Como você avalia os resultados do trabalho nesse período?

Eu estava fazendo meu doutorado em saúde do trabalhador, na ENSP, estudando a saúde dos trabalhadores da saúde que atuavam em emergências e desastres, que foram os casos de Mariana e Brumadinho, MG. Então, a leitura que eu estava fazendo sobre emergências, desastres e como aqueles trabalhadores lidaram naquele momento com a situação aguda, de uma hora para outra, esse estudo se encaixou na minha vida. Porque era eu que estava trabalhando em uma emergência, em uma situação atípica. Algumas leituras de referência que eu já tinha feito, me ajudaram muito, fizeram muito sentido quando tivemos  que reestruturar e mudar o serviço, e as fontes onde buscar, a leitura de artigos, os primeiros artigos que saíram sobre a situação na China…

Eu estava vivendo um processo de aprendizado duplo, porque eu estava aproveitando o que já havia estudado para o processo de doutoramento, estava tendo que organizar isso de uma forma mais prática do que acadêmica, e tendo que lidar com todos os medos. Lembro que chegava em casa e tinha que lavar o cabelo, limpar compras, todo aquele ritual, e ao mesmo tempo adaptar também o meu corpo ao atendimento remoto. Um atendimento essencialmente pelo telefone, porque a rede de internet não era tão boa. É bem diferente de ter alguém na minha frente, conseguindo olhar, ver a feição. Eu me transportava, transportava todo meu corpo para o ouvido para tentar ali conseguir fazer um bom acolhimento, entender como eu poderia ajudar, e ao mesmo tempo entender que era um momento histórico importante, em uma instituição importante e estratégica para o Brasil. Foi um momento muito desafiante, em termos profissionais e pessoais.

Foi um aprendizado muito grande, e isso tudo também porque existiu um apoio institucional para o nosso trabalho. A saúde mental  ganhou destaque dentro da Cogepe como estratégia de cuidado aos trabalhadores da Fiocruz. Então a gente  foi bastante demandado, aconteceram muitas lives, muitas ações de promoção de saúde mental, porque a instituição entendeu isso como estratégico, como importante, como essencial para a saúde dos trabalhadores. 

Em uma instituição de pesquisa como a Fiocruz pudemos ter acesso à leitura de muitos artigos, à informação qualificada, a pessoas que conseguiram compartilhar informações conosco, aqui mesmo da Fiocruz, pesquisadores, que tinham protocolos de saúde mental. expertise em emergência, dos primeiros cuidados psicológicos…estar aqui dentro da Fiocruz possibilitou construir tudo que a gente construiu em termos de cuidado em saúde mental. Foi bem importante. 


Você acha que a pandemia levou a situação da saúde mental a um estado crítico, ou, por outro lado, jogou luz sobre esse tema? 

Acho que as duas coisas. Muitas pessoas tiveram a possibilidade de ter acesso a um serviço de saúde mental por conta do online, que talvez não teriam. Claro que houve um primeiro apagão, quando, em 2020, os serviços todos fecharam, pessoas ficaram sem medicação, sem atendimento em ambulatório, foi um apagão sanitário. Existem evidências iniciais de que há um aumento na depressão e ansiedade na população em geral. Isso aparece no último relatório  da OMS publicado em março de 2022. O documento mostra um aumento de 27% no transtorno depressivo maior, e um aumento de 25% no transtorno de ansiedade. É um quarto a mais, é muita coisa. 

Aqui, na fase de retorno presencial, temos observado questões de saúde e também questões sociais, de pessoas que se endividaram e que tiveram um aumento da vulnerabilidade social. Não é exatamente o nosso trabalho aqui, mas é algo bem preocupante, pensar que praticamente dobraram na população os sintomas de ansiedade e depressão em adolescentes. No Brasil, os casos de suicídio dobraram em 20 anos, do ano 2000 até 2021. 
 

 Então podemos dizer que os dados com a tendência mundial espelham o que foi observado aqui? 

A OMS fala em um aumento significativo de problemas de saúde mental no primeiro ano da pandemia. Os dados desse relatório da OMS conversam com o que a gente vivenciou aqui. A gente sente que casos graves de saúde mental, que antes não chegavam tanto, e questões sociais, que chegavam mais espaçadamente, têm surgido com mais frequência. As evidências falam que a exaustão, a solidão e o diagnóstico da covid-19 aumentaram o risco de pensamentos suicidas entre profissionais da saúde. 

Sobre se aumentou, não aumentou…uma coisa que o [colega de equipe, o psicólogo] Marcello Rezende falava nas lives era “mas como [a situação da saúde mental] estava nos últimos anos, antes da pandemia?” Porque fica uma coisa assim, “a pandemia destruiu com toda a nossa saúde mental...", mas já não estava assim, vamos dizer, na nossa potência máxima. Eu lembro de conversar muito sobre as pessoas que não tinham uma rede de apoio, eram muito solitárias. 
A OMS já vinha dizendo também que a depressão em 2020 ia ser a doença mais incapacitante, e de fato hoje é. No Fórum Econômico Mundial de 2017 foi a primeira vez em que se falou em saúde mental, na preocupação com os gastos em saúde mental, com o impacto negativo na economia, com o recrudescimento dos transtornos mentais. Antes da pandemia já havia uma sinalização de que era preciso ser feito mais em termos de saúde pública, de investimento público na rede de atenção psicossocial, enfim, em todas essas questões. 




Agora, em que se discute a questão da convivência com a doença, é possível falar em algum grau de "normalidade", ou, em termos de impacto nas vidas e na saúde mental, "nada será como antes"?

Em um primeiro momento em que houve a abertura, depois até da ômicron, o que eu comecei a perceber é que as pessoas estavam num descompasso. Cada um estava no seu processo. Algumas muito preocupadas, usando sempre máscara e álcool em gel. Outras pessoas já tinham abandonado a máscara em espaços abertos, o álcool em gel, e diziam que já estavam há muito tempo no presencial e já haviam se reacostumado. Houve um momento em que houve uma grande sensibilização e depois uma dessensibilização. 

Sobre a questão da perda, eu acho que ainda não estamos conseguindo de uma forma coletiva pensar sobre isso. Voltamos e não teve esse momento de trabalhar o luto, e isso às vezes aparece em forma de angústia, de uma coisa que está faltando. Além disso, a questão social é uma coisa muito grave hoje. O aumento da violência aqui no Rio de Janeiro, o aumento da população de rua, dos problemas sociais. Estamos vendo que a questão da seguridade social é muito importante para a saúde mental. Importantíssima. Com o que que vou me alimentar, com o que vou pagar meu aluguel, eu vou andar na rua e vai ter violência… tudo isso tem muito impacto.

Em termos do trabalho na Fiocruz, a volta do trabalho presencial aliada à discussão do Plano de Gestão está sendo um mote para avaliar o trabalho. E para muita gente o trabalho remoto foi bom. As pessoas se adaptaram  às questões tecnológicas de uma forma que a gente nem esperava. 

Eu acho que, para além de pensar o que é melhor para cada um individualmente, porque cada um vai ter suas dificuldades, limitações, sofrimentos diferentes, todas essas questões subjetivas, é importante pensar como fazer uma nova gestão do trabalho, conversar sobre o trabalho e como o trabalho mudou. Pensar no novo normal no trabalho é na verdade refletir sobre mudanças no trabalho e é preciso pensar em não precarizar o trabalho, [mas] preservar os direitos do trabalho. Desde a pandemia, uma estrutura se desmontou também. Muitas pessoas foram mandadas embora sem direitos. Os artigos que estão saindo desde o início da pandemia mostram que, de um modo geral, os profissionais querem um lugar de descanso adequado, uma alimentação adequada. Não é um psicólogo colado na equipe, necessariamente, mas uma boa estrutura de trabalho. Isso é uma coisa importante para a saúde mental do trabalhador. (E.B.)



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