'Estatuto do Nascituro fere os direitos da mulher'
Atribuir direitos fundamentais e de personalidade ao nascituro, considerando-o um “ser humano não nascido”, ainda que não esteja sequer em gestação, é um dos objetivos do Estatuto do Nascituro. O Projeto de Lei, já aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados e que depende da aprovação da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania para ser apreciado em plenário, tem provocado diversas discussões, principalmente por não considerar uma série de direitos conquistados pelas mulheres ao longo da sua história.
No início de agosto, a ENSP recebeu a advogada Maíra Fernandes durante o seminário Diálogos entre a Academia e os Movimentos Sociais, promovido pelo Grupo Direitos Humanos e Saúde. Ela, que atua na Comissão de Bioética e Biodireito da OAB, convocou a academia e os movimentos sociais a lutarem contra o projeto. Em entrevista ao Informe ENSP, a advogada fala sobre como o estatuto ameaça a dignidade da mulher e o avanço da ciência, na medida em que pode impedir pesquisas com células-tronco embrionárias e até mesmo a fertilização in vitro.
Informe ENSP: O que propõe o Estatuto do Nascituro?
Maíra Fernandes: O estatuto pretende atribuir direitos fundamentais e de personalidade ao nascituro, considerando-o um “ser humano não nascido”, ainda que não esteja sequer em gestação. O Projeto de Lei parte de uma concepção equivocada, segundo a qual o nascituro e o embrião humano teriam os mesmos status jurídico e moral de pessoas nascidas.
Para o estatuto, o conceito de nascituro inclui o embrião, ainda que concebido in vitro e não transferido para o útero daquela que fará a gestação (art. 2º e par. único do PL). Atingidos, portanto, estão os embriões excedentários. Ocorre que, na realidade, nascituro e embrião não se confundem: o primeiro diz respeito ao ser humano já no contexto de uma gestação; o segundo se refere ao material biológico proveniente da concepção, do encontro dos gametas masculino e feminino.
Informe ENSP: Em evento ocorrido na ENSP/Fiocruz, a senhora comentou que o estatuto fere os direitos conquistados pela mulher, além de ser um retrocesso aos avanços da ciência. Comente esses aspectos.
Maíra Fernandes: Sim, ele fere inúmeros direitos da mulher reconhecidos em nossa Constituição, nos tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário, e em nossa legislação. Por esse lado, não é exagero dizer que o estatuto enxerga a mulher como mera “incubadora” da vida por nascer. Há sérias violações ao direito de liberdade da gestante, à sua dignidade, autonomia, segurança e ao seu direito à saúde. O estatuto cria uma prevalência ou prioridade do embrião sobre a mulher.
Pelo Projeto de Lei, a mulher teria de ser praticamente monitorada e ter sua gravidez registrada e supervisionada ou vigiada para cumprir os dispositivos do Estatuto do Nascituro. A rigor, ela teria “obrigação”, legalmente imposta, de ter todos os filhos gerados em fertilização in vitro. Inimaginável! Isso acaba por inviabilizar, de todo, a inseminação artificial.
O art. 10 estabelece que, mesmo não havendo possibilidade ou viabilidade de vida extrauterina para o feto/nascituro, a mulher deve obrigatoriamente se submeter a todos os tratamentos terapêuticos ou profiláticos existentes, mesmo que isso implique sérios riscos para sua saúde psíquica. Tudo com o objetivo único de assegurar o desenvolvimento e a integridade do feto ou embrião, cuja inviabilidade a ciência médica comprova e atesta.
No caminho inverso ao reconhecimento da liberdade e autonomia das mulheres, o projeto pretende impor de forma compulsória a maternidade em caso de risco de vida e à saúde das mulheres. Justamente nessas circunstâncias, a gestação deveria resultar de uma escolha livre, responsável e informada. Há, ainda, uma clara ponderação pró-feto, que reconduz a mulher à condição análoga à de uma incubadora, sem autonomia, tornando-a objeto e lhe retirando a dignidade humana garantida no art. 1º, III, da Constituição brasileira.
Observe que sequer há ressalva a casos de prejuízos à vida e à saúde da gestante, de forma imediata ou futura, ou nos casos de incompatibilidade com a vida extrauterina.
Mesmo em caso de feto natimorto ou em caso de anomalia que inviabilize a vida extrauterina, a mulher será obrigada a levar a gestação até o fim. Ela será obrigada a se submeter a qualquer tratamento, ainda que desumano ou degradante para si mesma, ou mesmo equiparável à tortura, para viabilizar amplos tratamentos terapêuticos e profiláticos ao feto. Não bastasse, o estatuto ainda cria a modalidade do aborto culposo, que penaliza duplamente a gestante que, sem qualquer intenção, teve sua gravidez (muitas vezes desejada e planejada) interrompida. Não se trata do abortamento provocado, pois a gestante não teve dolo. Trata-se de uma infelicidade, de um acidente, que puniu mais a gestante que qualquer outra pessoa, e, agora, o estatuto ainda pretende punir criminalmente a mulher.
Informe ENSP: O que essa situação acarreta para os avanços da ciência?
Maíra Fernandes: No campo da ciência, os retrocessos são igualmente enormes. O estatuto sepulta a possibilidade de estudos com células-tronco e, como dito, inviabiliza de todo a possibilidade de inseminação artificial. Isso porque torna crime “congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de experimentação”, prevendo pena de “detenção de 1 (um) a 3 (três) anos e multa”.
Tal previsão contraria o exposto na ementa da ADI 3510, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, que considerou constitucional a realização de pesquisas científicas com células-tronco embrionárias (experimentos que podem gerar terapias para salvar vidas). Além disso, nega o direito ao planejamento familiar, previsto pela Constituição Federal (artigo 226).
Informe ENSP: O ‘bolsa estupro’ foi um dos temas mais comentados pela mídia, mas talvez não tenha ficado claro para a população o papel que o estuprador pode vir a ter na vida da mulher. O estatuto dá algum direito a esse indivíduo?
Maíra Fernandes: Diz o art. 13 do estatuto:
“Art. 13 O nascituro concebido em um ato de violência sexual não sofrerá qualquer discriminação ou restrição de direitos, assegurando-lhe, ainda, os seguintes:
I – direito prioritário à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da gestante;
II – direito à pensão alimentícia equivalente a 1 (um) salário mínimo, até que complete 18 anos;
III – direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança após o nascimento.
Parágrafo único. Se for identificado o genitor, será ele o responsável pela pensão alimentícia a que se refere o inciso II deste artigo; se não for identificado, ou se for insolvente, a obrigação recairá sobre o Estado.”
Como se vê, o inciso II do art. 13 e o parágrafo único estabelecem a legitimação da violência pelo Estado. Principalmente ao reconhecer a paternidade ao estuprador e assegurar, inclusive, que o Estado se responsabilizará por fornecimento de prestação alimentícia para a futura criança, até seus 18 anos.
E manifesta a violação da dignidade da pessoa humana da mulher (art. 1º, III, CRFB) e a promoção do bem de todos (art. 3º, IV) ao legitimar a violência contra a mulher. Além disso, o estatuto viola os direitos fundamentais à segurança e à integridade moral da mulher (art. 5º da CF) ao sujeitá-la a desenvolver relações pessoais com aquele que lhe dirigiu nefasta violência sexual, em virtude do reconhecimento legalmente determinado de qualidade de pai do(a) filho(a) que ela potencialmente carrega.
O estatuto faz questão de ressaltar que o estuprador terá todos os direitos inerentes ao reconhecimento de sua paternidade. Um dos pontos mais graves disso, além da legitimação da violência pelo “bolsa estupro”, é que o estatuto pretende abolir o direito de a mulher interromper a gestação em caso de gravidez decorrente de estupro.
Isso porque, além da previsão acima destacada, o art. 12 traz que:
“Art. 12 É vedado ao Estado e aos particulares causar qualquer dano ao nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores”. Em um substitutivo, alteraram a expressão “ato delituoso” por simplesmente “ato de seus genitores”, o que, a toda evidência, nada altera o artigo. É uma mensagem clara contra a possibilidade de a mulher exercer seu direito ao aborto legal.
Informe ENSP: A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social”. De que forma os campos do direito, saúde e a própria sociedade podem agir para impedir a aprovação do projeto?
Maíra Fernandes: É fundamental que toda a sociedade participe do debate em torno do estatuto; que os profissionais das mais diversas áreas do conhecimento escrevam artigos, pareceres, informem os deputados e senadores sobre a gravidade desse Projeto de Lei e os retrocessos dele decorrentes.
Importa observar, ainda, que o art. 28 cria restrição indevida à liberdade de expressão do pensamento ao criminalizar qualquer manifestação pública sobre o aborto como se fosse apologia do crime, na medida em que impede que se discuta a legitimidade de maior liberalização da prática, o que configura censura prévia e interdição indevida à exposição de ideias, como a de ampliação dos permissivos legais para o aborto.
Ainda, o dispositivo citado termina por punir quem defenda publicamente as próprias hipóteses de aborto legal já previstas na legislação e criminaliza mesmo professores de medicina e profissionais de saúde que queiram ensinar ou divulgar formas de atendimento em caso de aborto, legal ou ilegal, configurando uma mordaça perversa no debate sobre a prática do aborto e impedindo a livre circulação de ideias que é característica de uma sociedade democrática.
Não podemos ficar de braços cruzados para, afinal, sermos surpreendidos pela aprovação dessa aberração que é o estatuto.
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