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Saúde mental de refugiados e intervenção em situações de conflitos foram tema de debate durante abertura do ano letivo da ENSP

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Publicado em:15/03/2024
Elisa Batalha

Em 2022 havia no mundo 110 milhões de pessoas deslocadas de seus lares, o maior número desde a 2a Guerra Mundial. Mais de 70% dessas pessoas foram forçadas a se deslocar em função de conflitos armados e outras situações de violência, que provocam intenso impacto na saúde mental das populações afetadas. Conforme apontaram os participantes do debate Saúde Mental Global: conflitos armados e intervenções, realizado na ENSP, as crises humanitárias causadas por conflitos no mundo estão “em ascensão”, algumas se prolongando por anos, como a situação da Síria, que dura 13 anos, e da Ucrânia, que completou dois anos recentemente. Entre as pessoas que viveram guerras ou outros conflitos violentos nos últimos 10 anos, uma em cada cinco (22%) terá depressão, ansiedade, transtorno do stress pós-traumático, perturbação bipolar ou esquizofrenia. 


Esse triste panorama foi traçado durante o debate Saúde Mental Global: conflitos armados e intervenções’, com a participação de Fernanda Serpeloni (ENSP/Fiocruz), Liliana de Abreu (Universität Konstanz - Alemanha), Glaucia Mayara Niedermeyer (ENSP/Fiocruz) e Marcello Queiroz (Universitá del Piemonte Orientale - Italia). A atividade fez parte da programação da tarde do dia 06/03,  primeiro dia de eventos da Semana de Abertura do Ano Letivo da ENSP e contou com  mediação de Joviana Avanci, coordenadora das pós-graduações stricto sensu da ENSP. 

A psicóloga Fernanda Serpeloni, pesquisadora visitante no Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli Claves/ENSP/Fiocruz iniciou o seminário com a apresentação sobre conflitos armados e intervenções em saúde mental. A violência é um problema de saúde pública e uma violação de direitos humanos. Os homicídios por arma de fogo, por exemplo, são responsáveis por 71% das mortes por violência armada (eram 40% das mortes violentas há 30 anos, ou seja, as aramas de fogo superaram em muito outros tipos de armas). A violência em grandes centros urbanos está relacionada ao Transtorno do Estresse Pós-Traumático que afeta 11% da população dos grandes centros urbanos do país, de acordo com estimativas apresentadas por Fernanda. 

“Nas crianças que vivenciam situações de violência como tiroteios nas comunidades onde vivem, a violência causa impacto muitas vezes na forma de ansiedade, e nas mulheres, aos traumas provocados pela violência urbana se somam àqueles provocados por violência doméstica e sexual”, observou Fernanda. Buscando ampliar o acesso nos serviços de saúde a intervenções de saúde mental de baixo custo, breve, baseada em evidências e de fácil disseminação para cuidar desses traumas, a pesquisadora falou sobre estudos com a Terapia de Exposição Narrativa (NET) e algumas outras formas de abordagem. 

A segunda palestrante, Liliana de Abreu, da universidade alemã Konstanz, explicou que quase todas as pessoas afetadas por emergências sofrerão sofrimento psicológico. “Aos problemas sociais pré-existentes nas populações se somam aqueles decorrentes de emergências de conflitos violentos como a perda de meios de subsistência, separação das famílias, perturbação das redes de apoio social, falta de confiança e de recursos; e aqueles induzidos por resposta humanitária, como superlotação, falta de privacidade e enfraquecimento do apoio comunitário e tradicional”, listou. 

Todo esse sofrimento aumenta - mais do que duplica, de acordo com os dados estimados pela OMS apontados pela pesquisadora - a prevalência de problemas de saúde mental como reações de estresse agudo, uso nocivo de álcool e drogas, depressão e ansiedade, além de transtorno de estresse pós-traumático. Entre os transtornos induzidos por resposta humanitária, Liliana mencionou ainda ansiedade devido à falta de informação sobre a distribuição de alimentos ou sobre como obter serviços básicos.

Ainda de acordo com os dados da OMS apresentados pela pesquisadora, uma em cada 11 pessoas (9%) que vivem num ambiente que tenha sido exposto a conflitos nos últimos 10 anos terá um transtorno mental moderado ou grave. Uma em cada cinco pessoas (22%) nessa situação terá depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno bipolar ou esquizofrenia. Falando apenas da depressão, a doença atingirá 13% das pessoas na sua forma leve e 4%, na forma moderada. 

“Todos os conflitos violentos geram crises humanitárias”, afirmou a pesquisadora. No entanto, em meio a essas dores, ela observou que “as emergências demonstraram ser oportunidades para construir sistemas de saúde mental sustentáveis para todas as pessoas necessitadas”, uma vez que investimentos nessa área são escassos em geral na maioria dos países. 

Para que haja uma resposta de emergência eficaz, como apontou Liliana, os cuidados clínicos de saúde mental devem ser prestados por, ou sob a supervisão de, especialistas em saúde mental, tais como enfermeiros psiquiátricos, psicólogos ou psiquiatras. Os primeiros socorros psicológicos oferecem apoio emocional e prático de primeira linha a pessoas que sofrem sofrimento agudo. “A autoajuda comunitária e o apoio social devem ser fortalecidos, por exemplo, criando ou restabelecendo grupos comunitários nos quais os membros resolvam problemas de forma colaborativa e se envolvam em atividades como ajuda emergencial ou aprendizagem de novas habilidades”, destacou ela. Algumas intervenções psicológicas praticadas são terapia de exposição narrativa (NET), intervenções de resolução de problemas, terapia interpessoal em grupo e intervenções baseadas nos princípios da terapia cognitivo-comportamental. “Um dos pontos críticos em emergências humanitárias é proteger e promover os direitos das pessoas com problemas graves de saúde mental”, ressaltou a pesquisadora. 

Migrantes 

Além das pessoas que vivenciam situações de conflito violento, Liliana falou ainda da saúde mental de migrantes e refugiados. O número de migrantes internacionais - pessoas que deixaram seus países de origem - era estimado em 272 milhões em 2019. Essas pessoas “tendem a correr um risco elevado de suicidio. A incidência de psicoses é também mais elevada entre as populações migrantes em vários países, e isto tem sido associado ao efeito cumulativo das desvantagens sociais antes, durante e depois da migração”, conforme apontou.

Os migrantes e refugiados podem ser expostos a vários fatores de stress que afetam a sua saúde mental e bem-estar antes e durante a sua viagem migratória e durante a sua fixação e integração. Entre eles estão o desemprego, as más condições socioeconômicas, a falta de integração social, a discriminação, o racismo, a baixa coesão familiar e as frequentes mudanças escolares. As crianças que foram separadas de pais correm maior risco de desenvolver depressão, ansiedade, ideação suicida, distúrbios de conduta e problemas de uso de substâncias. Por outro lado, os fatores de proteção para problemas de saúde mental nessa população incluem o acesso ao emprego e aos serviços, o apoio social, a proficiência na língua do país anfitrião e o reagrupamento familiar, acesso à educação, uma sensação de segurança, contatos com a família, viver e socializar ao lado de outras pessoas da mesma origem étnica, uma estrutura familiar estável e coesa e uma boa saúde mental parental

As ações necessárias apontadas pela pesquisadora para se promover e recuperar a saúde mental passam por intervenções psicossociais, como terapia e grupos de apoio, promoção da resiliência e do bem-estar mental, capacitação de profissionais de saúde mental, combate ao estigma e à discriminação, e uma atenção especial ao atendimento aos casos graves que não receberam apoio nos últimos 12 meses

A pesquisadora mencionou ainda alguns projetos iniciados recentemente pela universidade alemã, como o intitulado “Violência, confiança e hesitação na vacinação”, iniciado em fevereiro de 2024. Ela contou que existe uma lacuna na pesquisa e há necessidade de se pesquisar mais sobre a ligação entre violência e mortalidade infantil. “Estudos apontam que as guerras estão associadas a uma maior mortalidade infantil, mesmo após anos após o fim da violência. No entanto, porque isso acontece não está ainda bem compreendido”, observou. 

As experiências de violência são acompanhadas sistematicamente níveis reduzidos de confiança institucional, e este efeito pode ser extremamente duradouro, persistindo ao longo de várias gerações. Sabe-se também que a confiança é um preditor essencial para o comportamento de procura de cuidados de saúde, incluindo a vontade de vacinar os filhos. Para tentar compreender melhor essa questão, a pesquisadora contou que novas pesquisas estão sendo iniciadas sobre uma das hipóteses; a hesitação vacinal e a falta de confiança nas instituições. “A hesitação vacinal (VH) é um termo emergente na literatura sociomédica que aborda a natureza complexa e dinâmica da tomada de decisão sobre vacinas”, definiu.

“As vacinações são uma das intervenções de saúde pública mais eficazes que salvam milhões de vidas anualmente, especialmente em zonas desprovidas de recursos, incluindo ambientes de conflito e pós-conflito”, destacou ela. No entanto, como observou a pesquisadora, a hesitação vacinal nessas regiões permanece pouco compreendida. “O estudo piloto investigará a hipótese de que existe um efeito indireto da violência na mortalidade infantil através [da quebra] do canal de confiança nas instituições estatais”, explicou. Para ela, a combinação de perspectivas  - a respeito da violência e da confiança nas instituições estatais induzindo comportamentos relacionados à saúde é “uma grande promessa para pesquisas futuras”.  

Parte negligenciada da saúde

O terceiro palestrante, Marcello Queiroz, contou que a saúde mental “permanece como parte negligenciada dos investimentos em saúde”, uma vez que apenas  2% em média dos orçamentos nacionais de saúde são dedicados à saúde mental. Em países de renda baixa ou média, a grande maioria - de 76 a 85% das pessoas com transtornos mentais graves não recebem tratamento. Nesses países, o gasto médio anual per capita em saúde mental é de US$ 0.25, e existem poucos profissionais de saúde por habitante. A média global de profissionais de saúde mental é de 13 para cada cem mil habitantes, mas em países de renda baixa é de dois para cada cem mil e, nos de renda alta, mais de 60 para cada cem mil, dado que mostra grande desigualdade. 

“A experiência em situações de violência não torna as pessoas ‘imunizadas’ ou mais resilientes ao trauma de outras situações de violência, ao contrário do que se pode pensar”, observou o psicólogo, que atua tanto no âmbito acadêmico como na assistência em campo, pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha. “Vi lugares onde não há homens adultos, e mulheres e crianças estão vivendo há 7 anos em tendas em um ambiente desértico onde não é possível sequer plantar, e dependem absolutamente de ajuda humanitária internacional”, relembrou. As condições de extrema vulnerabilidade, o acesso precário aos recursos essenciais, a pobreza, a discriminação e falta de suporte social e comunitário levam a carga global dos transtornos mentais em contextos de conflitos a índices consideravelmente superiores que as médias globais. Nesses casos, mais de uma em cada 5 pessoas (22,1%) têm sintomas clínicos de depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), transtorno bipolar e esquizofrenia. E cerca de uma em cada dez tem sintomas moderados ou graves. 

Para Marcelo, alguns aspectos são importantes de serem considerados ao se executar para essas situações o desenho dos programas de saúde mental e apoio psicossocial, como a sustentabilidade e a resiliência dos programas e iniciativas, a saúde mental das equipes e o papel das normas internacionais. É importante ainda, conforme observou ele em declaração  ao Informe ENSP após a palestra, ajudar a diminuir as “barreiras de acesso e barreiras de estigma”, as segundas produzidas por preconceitos e aspectos culturais que minimizam a importância de procurar assistência em saúde mental. 

“A saúde mental ainda está enquadrada nas marcas invisíveis da guerra. As marcas mais visíveis são o cenário de destruição, o número de mortes. Mas vemos, olhando os dados, que as situações mais traumáticas, o impacto nas vidas daqueles que sobrevivem são maiores, às vezes mais significativos do que os traumas físicos’, afirmou. Ele considera que, no contexto de diferentes crises humanitárias, há crises que são mais visíveis que outras. “Existem uma série de conflitos que produzem uma enormidade de vulnerabilidades que não aparecem nas grandes mídias. Há um avanço na sensibilização através da mídias sociais. É uma realidade que é dura, é difícil de ver mas que a gente precisa trabalhar para comunicar isso e reumanizar o sofrimento dessas pessoas”, reforçou. 

Mediação de conflitos e Justiça Restaurativaediação de conflitos e Justiça Restaurativa

“Trauma é uma experiência que conecta vítimas e ofensores”. Com esta frase a quarta palestrante, a psicóloga e doutora em Ciências Sociais Aplicadas Glaucia Mayara Niedermeyer Orth resumiu a filosofia que embasa uma iniciativa nacional em mediação e conciliação de conflitos que têm impactos na saúde mental. Em sua apresentação intitulada O trauma em perspectiva no atendimento à vítimas e ofensores: diálogos entre a Justiça Restaurativa e a Terapia de Exposição Narrativa, Glaucia abordou a mediação e conciliação de conflitos no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) da cidade de Ponta Grossa, no Paraná. Nesta Unidade do Poder Judiciário instalada na cidade em 2014, são realizados projetos em que vítimas e ofensores - adolescentes e adultos - e outros integrantes da comunidade, ou seja “todos os envolvidos em uma ofensa” se unem para “resolver juntos como lidar com as consequências trazidas pela ofensa e suas implicações para o futuro”, conforme a abordagem do autor inglês Tony Marshall. 

Alguns dos objetivos da Justiça Restaurativa são, "restituir à vítima a segurança, o auto-respeito, a dignidade e, mais importante, o senso de controle. Objetiva, além disso, restituir aos infratores a responsabilidade por seu crime e respectivas consequências; restaurar o sentimento de que eles podem corrigir aquilo que fizeram e restaurar a crença de que o processo e seus resultados foram leais e justos. 

“A Justiça Restaurativa não é sobre perdoar, e nem sobre qual artigo do Código Penal foi infringido, mas sobre esclarecer perguntas como “como corrigir a situação de quem sofreu o dano”? Muitas vezes, as vítimas precisam de respostas sobre “porque isso aconteceu comigo dessa forma?”, para lidar com os traumas causados por violências. Glaucia explicou que existem diferentes abordagens e terapias focadas nesse traumas, tanto das vítimas quanto dos ofensores, nas suas histórias de vida, por exemplo - que são acatadas de maneira totalmente voluntária por todos os envolvidos - e o objetivo maior é recuperar a “saúde dos indivíduos e das relações”. “É um trabalho personalizado e artesanal”, explicou Glaucia. 

O evento teve transmissão pelo canal da Ensp no Youtube e a gravação está disponível abaixo:




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