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A saúde deve ser protagonista na reconstrução e construção de novas agendas e trajetórias

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Publicado em:09/09/2021
Ao convocar a Fiocruz e a comunidade científica a repensarem um projeto nacional, cujas marcas centrais estejam pautadas no desenvolvimento, na democracia, na ciência, na redução das desigualdades e que considere as questões ambientais, Carlos Gadelha, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca e coordenador do Centro de Estudos Estratégicos Antônio Ivo de Carvalho, clamou pela urgência de uma nova agenda de transformação estrutural. Em uma fala corajosa e repleta de ousadia, o pesquisador defendeu a retomada do desenvolvimento a partir de uma reconstrução transformadora com protagonismo da saúde, e que não repita os erros do passado. “Essa Escola e a Fiocruz devem ter ousadia para recriar o novo, mantendo os valores e nossos princípios históricos, mas num contexto completamente diferenciado”.


Gadelha foi o palestrante da mesa “Mudança estrutural e saúde em um novo projeto nacional de desenvolvimento”, realizada em 3 de setembro, durante as comemorações do 67º aniversário da ENSP. Em sua apresentação, falou sobre o movimento estrutural, a importância da saúde na conformação de um projeto nacional de desenvolvimento, o cinismo presente no discurso dos países ricos e admitiu que os elementos de mudança podem emergir a partir do aprendizado social em curso.

O convidado afirmou que a sociedade vive hoje o resultado da estrutura herdada nos anos 1980/1990, que propiciou um estado de desregulação completa nos aspectos financeiros, no mundo do trabalho, na regulação social e na proteção do meio ambiente. E a Covid-19 não só refletiu, como reproduziu essas dimensões no Brasil e no mundo. “O Brasil passa pela maior crise da sua história recente na dimensão social, política, ambiental, institucional, cultural, federativa e de sua inserção global na divisão internacional do trabalho”. 

O coordenador do CEE se debruçou no modo como a conjuntura reflete (como um espelho) essa estrutura histórica. Deu exemplos, a partir de dados recentes, sobre a concentração de 75% das doses de vacinas somente em 10 países, o aumento da riqueza e da desigualdade no meio da pandemia (5.2 milhões de pessoas se tornam milionárias) e o aumento de 4% da concentração da riqueza aumenta em meio à necessidade de uma solidariedade pandêmica. 

“Aqui, o investimento federal em ciência e tecnologia, em 2021, atingiu o menor valor real desde 2009. A pane no lattes não foi apenas uma pane de informação, mas reflete a destruição do estado no campo da ciência, da tecnologia e inovação; 30% dos brasileiros estão em condições de pobreza, 10% em condição de extrema pobreza e temos 117 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar. Além disso, o mercado de trabalho aprofunda sua desigualdade e temos o risco global da mudança climática”, explicou.

Agenda 2030 x racismo x necessidade de mudança estrutural

No ponto seguinte, Carlos Gadelha alertou para os riscos de os países avançarem na Agenda 2030 nos mesmos moldes que levaram a sociedade a uma situação de extrema vulnerabilidade. E questionou a postura dos países ricos, que reforçam a importância da Agenda do Desenvolvimento Sustentável, mas engessam os países pobres. “Ao mesmo tempo que reforçam essa Agenda, esses países querem negar que usemos o nosso poder de compra público para mudar um padrão produtivo que não seja mais baseado na extração de minérios e na derrubada de árvores. Mais uma vez, o discurso cínico aparece no cenário global. Corremos o risco da retomada sem a mudança estrutural”.

O doutor em economia foi adiante e citou o ex-presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030, que questiona: “como dar sentido a essa Agenda para que ela lide com os problemas concretos da nossa sociedade?”, indagou. Completou afirmando que a agenda de retomada do crescimento dos EUA, China, Europa e do próprio Brasil, ainda que tragam preocupações com a equidade e o desenvolvimento sustentável, têm a mesma estrutura que nos fez chegar a essa situação de barbárie e catástrofe. 

“Corremos o risco de a agenda 2030, que é tão importante, apareça como uma agenda de paz, de calmaria, num contexto em que o padrão econômico e tecnológico hard não se altera. Como avançar na Agenda 2030 sem reconhecer que, se não houve uma transformação estrutural desse padrão tecnológico, produtivo e de ganhos financeiros, a Agenda será apenas uma carta de intenções e sem conteúdo concreto para transformar nossas vidas e a nossa sociedade?”.

O racismo estrutural também esteve presente na fala do pesquisador da ENSP. Apesar de as empresas consideradas Big Techs adotarem práticas antirracistas, quando se coloca uma lupa na estrutura de emprego, o racismo estrutural se reproduz. “Apesar das ações de inclusão aplicadas por essas empresas, trabalhadores negros diminuem participação nos cargos com maior remuneração do setor”. 

E o Brasil reproduz o racismo dentro da saúde. Segundo ele, a maior proporção de pessoas que ganham menos de dois salários mínimos são as mulheres negras (64%); 57% são homens negros. “Essa é a grande discussão, a saúde é parte da estrutura econômica, é parte deste modelo insustentável, é parte da questão das mudanças climáticas; ela não é um elemento exógeno, que tem apenas o impacto de mitigar o dano. O dano corrói a saúde por dentro. Estamos em meio a um dilema imenso entre uma saúde personalizada ou a saúde como espaço de vida solidaria, em que usamos o conhecimento, a tecnologia e a inovação para superar a situação atual”.

Sobre a reconstrução, afirmou que o país que criou o SUS não pode ser um país sem esperança. “O contexto presente não pode ser capaz de nos tirar a energia de transformar o país. Não podemos ser uma nação sem esperança, sem projeto e sem futuro, ainda mais nesta instituição. No contexto atual, a dimensão coletiva do Estado, do SUS e da ciência ganharam protagonismo. Temos valores e dimensões que se reforçam no contexto atual, e temos que engatar esses valores com projetos nacionais de desenvolvimento institucionais que permitam agregar as energias dispersas em uma energia transformadora que seja capaz de construir um novo país”.

Saúde como campo transformador

De forma ousada e coerente com o tema da semana de aniversário da ENSP, Gadelha convidou todos a embarcarem na aventura de avançar, incorporando os grandes nomes da Fiocruz, da ENSP e da Saúde coletiva, a pensarem a saúde também como parte da estrutura econômica. “Saúde é vacina, é estrutura econômica e social, reproduz racismo, desigualdade, dificuldade de acesso e exclusão social em seu interior. A Covid-19 mostra isso de forma avassaladora. A estrutura econômica é decisiva, e a saúde é parte central dessa estrutura econômica e social. A saúde deve liderar essa grande frente de transformação. Da mesma forma que o petróleo e o aço eram motores do desenvolvimento no século XX, a saúde deve ser o motor do século XXI no Brasil, porque ela tem embutido o modelo de sociedade, de lidar com a mudança climática e traz o dinamismo econômico da inovação, da geração do emprego e renda e do fortalecimento do setor produtivo”.

E concluiu: “Um novo projeto de desenvolvimento não pode ser apenas a volta aos velhos tempos e antigos paradigmas. Temos que reconstruir e construir novas agendas e trajetórias. Precisamos de ousadia e energia para mudar estruturalmente o padrão tecnológico social, ambiental e da democracia, inclusive por dentro da saúde e nas concepções em que todos nós fomos formados”.


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