A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou, por 181 votos a favor, a resolução Global Health and ForeignPolicy, que está na Agenda da Unga desde 2008. Ao longo desses 12 anos, incorporou uma série de conceitos, sendo o mais recente o papel da imunização extensiva como um bem público global, um conceito "problemático, pois não há uma definição consensual sobre o seu significado, nem sobre o seu alcance", segundo o diplomata do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), Santiago Alcazar, em artigo publicado no blog do Centro de Estudos Estratégicos (CEE/ENSP). Leia abaixo:
Santiago Alcazar
No longínquo 21 de dezembro de 2020, a Assembleia Geral das Nações Unidas (Agnu) adotou por 181 votos a favor a resolução intitulada Global Health and ForeignPolicy[1]. Onze países deixaram de votar e um votou contra[2]. Essa resolução está na agenda da Unga desde 2008. Em seus 12 anos, foi incorporando elementos de grande atualidade, de que são exemplo o Acordo de Paris sobre Clima e a Agenda 2030. Anteriormente, ela incorporara o trecho da Declaração de Doha sobre Propriedade Intelectual e Saúde Pública, pela qual reconhece que os direitos de propriedade intelectual devem ser interpretados de maneira a apoiar o direito dos Estados a proteger a saúde pública e a promover o acesso a medicamentos[3]. A incorporação mais recente é a que menciona o papel da imunização extensiva como um bem público global. Esse conceito, como se sabe, é problemático, pois não há uma definição consensual sobre o seu significado, nem sobre o seu alcance. A situação é ao menos curiosa porque, normalmente, as delegações são arredias a incertezas que podem minar as suas posições. Que aquele conceito tenha sido incorporado e adotado por todas as delegações, salvo uma, é algo extraordinário. Poder-se-ia perguntar por quê.
Duas razões vêm à mente. A primeira é que a resolução é uma espécie de criança-problema: criança, porque ninguém em sã consciência pode levar a sério as suas propostas ousadas; problema, porque os diversos elementos que foram sendo incorporados reclamariam mudança radical nas estruturas econômicas e políticas existentes. Ou seja, trariam o novo normal, de que tanto se fala e que teria que ser radicalmente diferente do que nos trouxe até aqui. Como a resolução já é suficientemente problemática, não faz diferença que o seja um pouco mais. Não importa, portanto, e ademais não obriga, como tampouco as outras. A segunda razão é apenas cínica: como não há consenso sobre o seu significado, cada um a entende como quer. Logo, tampouco importa.
Compare-se com o que aconteceu em julho de 2020, durante a sessão de Alto Nível do Conselho Econômico e Social (Ecosoc). Tradicionalmente, ao encerrar-se a sessão, os 54 países do Conselho consideram e adotam um projeto de declaração ministerial, preparado pela presidência do órgão. O Ecosoc é o órgão das Nações Unidas responsável pelo seguimento da Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS). É evidente que a pandemia da Covid-19 afetou, e afeta, o progresso das metas. O projeto de declaração deixava isso claro. Nada a objetar, mas a coisa toda ficou complicada quando a presidência decidiu incorporar no projeto um elemento novo, necessário, mas problemático: aumentar a ambição, redobrar os esforços, acelerar o eixo de referência tempo.
Como se recordará, a agenda 2030 e os ODSs foram adotados pela totalidade de chefes de Estado e de Governo em 2015, na Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável. Foi um momento quase mágico na história da Organização. Frente à pobreza, à fome, à saúde e educação lastimáveis, à desigualdade de gênero, à escassez de água e saneamento, à energia limpa e barata, ao desemprego e à mobilidade social inexistente, ao crescimento econômico inexpressivo, à ausência de infraestrutura adequada, inovação e indústria, ao aumento das desigualdades, ao consumo e à produção insustentáveis, à degradação do meio-ambiente, à mudança climática, às zonas de guerra, às injustiças e às instituições falidas – frente a todo esse quadro trágico –, as lideranças deste desgastado mundo decidiram pôr em marcha um plano, o único que existe, para reverter a situação, salvar vidas e o planeta. Foram acordados objetivos e metas, que deveriam ser cumpridos até 2030. O que se viu em 2020 foi um progresso desigual e mais lento do que o esperado. A pandemia da Covid-19 comprometeu ainda mais o avanço, com a possibilidade, segundo especialistas, de que a totalidade dos avanços alcançados sejam revertidos e anulados. Nesse contexto, seria lógico aumentar a ambição, redobrar os esforços, acelerar o eixo de referência tempo, como proposto pela presidência, então ocupada pela Noruega.
No meio do caminho tinha uma pedra, no entanto, como diria Drummond. Desde o começo da pandemia, as Nações Unidas adotaram o procedimento de silêncio tácito para a adoção de decisões. O procedimento estabelece que uma decisão submetida por nota aos Estados-membros será adotada se nenhum deles encaminhar nota, pela qual manifesta objeção. O procedimento pode ser prático e útil para algumas decisões, mas não para aquelas de natureza substantiva. A consideração de projeto de declaração ministerial que demanda compromisso de redobrar esforços financeiros em meio a maior pandemia de que se tem notícia e a economia em colapso – é receita para pôr o pé no freio. Foi o que aconteceu. Não houve consenso para adoção do texto. A sessão encerrou-se sem a aprovação de uma declaração ministerial, fato talvez inédito. A Agenda 2030 e os ODSs ficariam à mercê das correntes e dos ventos, como uma nave à deriva.
O G-77 e a China entendiam que seria possível resgatar o espírito que havia soprado em 2015 e propuseram moção, nesse sentido, nas primeiras horas da nova sessão da Agnu, inaugurada em setembro de 2020. Os países desenvolvidos membros do Conselho logo apontaram que, caso aprovada a moção do G-77 e a China, estar-se-ia diante de uma aberração processual, pois não mais seria o caso da consideração de um texto, mas de sua reconsideração, o que poderia abrir precedente perigoso para futuras decisões. E, assim, o projeto de declaração ministerial, que poderia insuflar ânimo para corrigir as desigualdades, iniquidades e injustiças que as lideranças de 2015 tão bem viram, entenderam e concordaram, foi engavetado com outros papéis que lhe farão companhia, sem sobressaltos ou desafios.
O ano de2020 chegou ao fim com desorientação, pois o único mapa para conduzir ao desenvolvimento sustentável ficou esquecido em alguma gaveta e com a resolução criança-problema, e claro, com o recrudescimento da pandemia. Como o diabo gosta, como se diz.
Em nosso quadrante, Natal e Ano Novo são períodos de confraternização, em que se pensa poder abraçar o conjunto da humanidade. Talvez seja um arroubo de entusiasmo. As notícias pareciam positivas. As vacinas haviam atravessado o longo deserto de provas e seriam logo disponibilizadas para todos. Passadas as comemorações, o que se viu foi que alguns países, que representam aproximadamente 13% da população mundial, haviam garantido a metade das vacinas que estariam disponíveis em 2021. O resto do mundo deveria contentar-se em olhar e esperar. Na Corte de Luis XVI era hábito convidar altos personagens do reino para assistir a jantares faustuosos. O convite era somente para assistir ao espetáculo de um jantar real. Nada mais. Pois bem, algo semelhante ocorre agora com as vacinas, com a diferença de que as imunizações não são espetaculares. Alguns falam de apartheid e têm razão. Na 148ª sessão do Conselho Executivo da OMS, em janeiro, Tedros Adhanom, o diretor geral da Organização disse que se tratava de uma catastrófica falência moral. As palavras do DG soaram forte. Até aquele momento nenhuma autoridade do sistema Nações Unidas havia ousado atravessar a linha permitida do discurso oficial, comedido e restrito a fatos irrefutáveis. Tedros fizera um juízo de valor, que parecia querer percorrer indignado músculos, nervos, tendões e ossos para levantar um dedo acusador. Não disse a quem acusava. Não era necessário.
Antônio Guterres, o secretário-geral das Nações Unidas, que já anunciou ser candidato à reeleição em 2022, abriu a sessão especial da Agnu dedicada à Covid-19. Em sua opinião vivemos uma tragédia humana e uma emergência de saúde pública, humanitária e de desenvolvimento. Para vencermos a pandemia, o SG propôs cumprir as expectativas daqueles a quem serve com unidade, solidariedade e ação multilateral global e coordenada. Em 25 de janeiro, por ocasião da realização do Foro Econômico Mundial em Davos, passou várias receitas do que deveria ser feito. Numa única ocasião, repetiu o que já se sabia pela imprensa: que membros do G-20 haviam dedicado, em seus pacotes de recuperação, 50% a mais em setores vinculados à produção e consumo de combustíveis fósseis. É uma afirmação factual, algo que se poderia ler em um painel. Não há músculos ou nervos que denunciariam um estado d’alma. Em 29 de janeiro, o SG encaminhou mensagem ao Grupo de Puebla[4], que não o compromete, pois tudo já foi dito no âmbito das Nações Unidas. O parágrafo mais duro talvez seja aquele que menciona o preço que se paga pelas debilidades de um modelo de desenvolvimento que aprofunda desigualdades etc. Mas isso é de conhecimento geral. Não há nada que sugira o grito de um profeta. É antes a constatação de um fato.
Na opinião de alguns cognoscenti em assuntos internacionais, Guterres navega nos mares onusianos com a preocupação de não levantar bandeira contra os cinco membros do Conselho de Segurança, que decidem em última instância a possibilidade de um segundo mandato, bem como a alocação de recursos. Não se envolve em questões de direitos humanos, sempre muito sensíveis. Tampouco nas chamadas hot spots, para onde manda emissáriosad hoc. Para isso estão a Comissária de Direitos Humanos e os altos funcionários, dirão alguns. Certo, mas às vezes ouvir a voz do SG é importante, sobretudo em assuntos que têm que ser denunciados, não importa o custo. Afinal, a Organização das Nações Unidas foi criada para facilitar o diálogo entre os países, propor ações conjuntas e coordenadas para enfrentar os desafios globais e promover o bem-estar geral de todas as nações, num espírito de solidariedade e cooperação.
Como em todos os projetos, tinha uma pedra no meio do caminho. A ONU nunca foi independente como teria que ter sido. Sempre sofreu interferências que minariam o próprio conceito do multilateralismo. As soberanias nunca foram cedidas, ainda que os textos adotados sob a sua égide digam o contrário[5]. Historicamente, por exemplo, os SGs sempre sofreram interferência, sobretudo das duas superpotências. Trygve Lie, o primeiro SG, teve que deixar o cargo antes do final de seu segundo mandato porque havia cedido à indesculpável pressão macarthista para permitir a instalação de um escritório do FBI no Secretariado. Boutros-Boutros Ghali não conseguiu se reeleger para um segundo mandato porque Bill Clinton em seu primeiro mandato teve que ceder à pressão da direita, que entendia que o SG se posicionava contra Israel. Kofi Annan teve que aturar o descrédito vindo de parte da Administração de George W. Bush. Dag Hammarskjold, talvez o mais combativo SG morreu em acidente de avião ainda não explicado. O emprego de SG não é fácil.
Até 2016, quando se iniciou a disputa para a eleição de SG que ocorreria no ano seguinte, o processo para decidir quem ocuparia o cargo era simples: a portas fechadas escolhia-se um nome e pronto. Nada de transparência ou coisas assim. Em 2022 espera-se que isso mude.
E, por falar em mudança, o que esperar da nova Administração norte-americana com o presidente Joe Biden? Por enquanto, os sinais são positivos. Dois decretos, nas primeiras horas de sua presidência, pelos quais indicam a volta à OMS e ao Acordo de Paris sobre Clima. Nomeação de uma diplomata de carreira, de longa experiência, Linda Thomas-Greenfield, para ocupar o cargo de Representante Permanente dos Estados Unidos junto às Nações Unidas. O cargo, como se recordará foi ocupado durante a Administração anterior por duas pessoas sem trajetória diplomática.
Thomas-Greenfiel parece determinada a tirar as pedras do meio do caminho. Em recente artigo publicado pela ForeignAffairs, com William Burns, ex-subsecretário de Estado de Barack Obama e agora nomeado para chefiar a CIA, escreve sobre a deterioração do Departamento de Estado e como consertá-lo. Sob o título preocupante The wreckageattheStateDepartment runs deep, o artigo menciona que diplomatas de carreira foram colocados de lado e excluídos dos postos chave. Qualquer semelhança com o que ocorre em algum lugar da Mancha de cujo nome não quero lembrar-me[6] é pura coincidência.
Em todo caso, Biden que é um internacionalista reconhecido, parece disposto a voltar ao multilateralismo, sufocado e abandonado pelo Governo Trump. Ainda que aqueles dois decretos assinados no primeiro dia sejam animadores, Biden não fez qualquer menção às Nações Unidas em seu discurso de posse, como o fez Kennedy, que se referiu à Organização como a nossa melhor última esperança, no ambiente ameaçador da Guerra Fria. Agora o quadro é outro e talvez mais grave, uma vez que a pandemia nos revela com clareza cristalina a fragilidade assustadora da civilização frente à caixa de pandora que é o descaso e o descuido com a vida no planeta.
Refazer o caminho, reconstruir o que foi destruído é uma tarefa hercúlea. Fazem parte dos trabalhos de Hércules, inter alia, a retomada do diálogo com o Irã no âmbito do Plano de Ação Compreensivo (JCPOA, na sigla em inglês para Joint Comprehensive Planof Action) para controlar o programa nuclear; a volta ao Conselho de Direitos Humanos, não para ensinar cátedra ou para defender o indefensável, mas para contribuir ao melhoramento dos direitos humanos em geral; retomar o trabalho com a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês); voltar à Unesco, abandonar os planos para a instalação da embaixada em Jerusalém; voltar a contribuir com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e desfazer a crendice de que o Fundo promove abortos e esterilizações forçadas. Nenhuma dessas ações será fácil e sem óbices.
O maior desafio será, contudo, inverter as prioridades e focar na maneira de controlar a pandemia, com pleno respeito aos direitos humanos, e usando como quadro de referência os determinantes sociais da saúde, o Acordo de Paris e a Agenda 2030. Isso seria o ideal, mas talvez não seja possível, pois para levar esses projetos adiante seria preciso contar com credibilidade, algo que foi destruído pela Administração anterior.
Por fim, iniciativa que começa a ter tração é um acordo com clausulas mandatórias para a proteção das florestas. A ideia não é nova, mas vem recebendo apoios de diferentes quadrantes. Para ser efetiva, teria que contar com a participação da sociedade civil organizada, bem como do setor privado. As soberanias rígidas e fechadas não fazem mais sentido em um mundo globalizado em que o efeito borboleta é uma realidade, não uma ficção.
* Diplomata, Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS/Fiocruz).
[1] A/RES/75/130
[2] Não votaram Armênia, Comores, Haiti, República Centro-Africana, Libéria, Seychelles, Quênia, Quirguistão, República Democrática do Congo, Tonga, Turcomenistão. EUA votou contra.
[3] O uso das chamadas flexibilidades de Trips é processo complexo e demorado. Não exime o país de pagar o detentor da patente um preço combinado. Em outubro de 2020, África do Sul e Índia propuseram na OMC a suspenção dos direitos de PI [Propriedade Industrial] sobre medicamentos e vacinas contra a Covid-19. O Brasil votou contra.
[4] Ver: https://www.grupodepuebla.org/el-mensaje-del-secretario-general-de-las-naciones-unidad-para-el-grupo-de-puebla/
[5] Ver o artigo O desequilíbrio insustentável das soberanias no multilateralismo, de AlcazareBuss, postado no Le Monde Diplomatique Brasil online, em 4 de dezembro.
[6] Assim começa Cervantes o seu imortal Don Quixote.