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Dia da Consciência Negra: Por que os negros são maioria no sistema prisional?

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Publicado em:19/11/2020
Por Tatiane Vargas


O dia da Consciência Negra é celebrado em 20 de Novembro. A ocasião é dedicada à reflexão sobre a situação do negro na sociedade brasileira. A data foi escolhida por coincidir com o dia atribuído à morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Zumbi foi um dos maiores líderes negros do Brasil e lutou pela libertação do povo negro contra o sistema escravista. O racismo é uma chaga social no Brasil. Mesmo após mais de um século de abolição da escravatura, a população negra permanece, majoritariamente, submetida às piores condições de vida. A relação de exclusão com base na produção social da noção de raça está presente em todas as esferas da vida - nos ambientes de trabalho, nas universidades e nos hábitos cotidianos. 

Embora correspondam a 52% da população brasileira, (segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE), os negros são as vítimas em 75% dos casos de morte em ações policiais; pretos e pardos correspondem a 64% dos desempregados e 66% dos subutilizados; e a chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,5 vezes maior do que a de um jovem branco. Os números são estarrecedores e escancaram como o racismo atinge diretamente a vida da população negra. Essa cadeia de desigualdade também caracteriza o sistema carcerário no país.

Dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que, historicamente, a população prisional do país segue um perfil muito semelhante ao das vítimas de homicídios. Em geral, ela é composta de homens jovens, negros e com baixa escolaridade. Apenas em 2019, para citar um exemplo mais recente, os homens representaram 95,1% do total da população encarcerada, enquanto as mulheres 4,9%. No que se refere ao gênero, portanto, existe uma sobrerrepresentação masculina na população prisional. Acrescenta-se a esse cenário o fato de grande parte dos encarcerados se encontrarem em situação de prisão provisória

As prisões no Brasil: espaços cada vez mais dedicados à população negra do país

Os dados sobre encarceramentos relativos à raça/cor disponibilizados pelo 14º Anuário Brasileiro indicam alta concentração entre a população negra. Em 2019, os negros representaram 66,7% da população carcerária, enquanto a população não negra (considerados brancos, amarelos e indígenas, segundo a classificação adotada pelo IBGE) representou 33,3%. Isso significa que, para cada não negro preso no Brasil em 2019, dois negros foram presos. E um pouco mais que o dobro, quando comparado aos brancos.

Ainda que o maior encarceramento de pessoas negras não seja propriamente uma novidade, ao se analisar a série histórica do dado raça/cor dos presos no Brasil, fica explicito que, a cada ano, esse grupo representa uma fração maior do total de pessoas presas. Se, em 2005, os negros representavam 58,4% do total de presos, enquanto os brancos eram 39,8%, em 2019, essa proporção chegou a 66,7% de negros e 32,3% de brancos. A taxa de variação nesse período mostra o crescimento de 377,7% na população carcerária identificada pela raça/cor negra, valor bem superior à variação para os presos brancos, que foi de 239,5%.

Ou seja, as prisões no país se reafirmam, ano a ano, como um lugar para negros. No Brasil, se prende cada vez mais; no entanto, sobretudo, cada vez mais pessoas negras. Existe, dessa forma, forte desigualdade racial no sistema prisional, materializada não somente nos números e dados apresentados, como pode também ser percebida concretamente na maior severidade de tratamento e sanções punitivas direcionadas aos negros. Aliadas a isso, as chances diferenciais e restritas aos negros na sociedade, associadas às condições de pobreza que enfrentam no cotidiano, fazem com que se tornem os alvos preferenciais das políticas de extermínio e encarceramento do país.

Expressões do Racismo e Saúde

Os pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Roberta Gondim de Oliveira e Paulo Roberto de Abreu Bruno, coordenadores do curso de inverno Expressões do Racismo e Saúde, que deu origem à disciplina de mesmo nome no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da ENSP (PPGSP), conversaram com o Informe ENSP sobre o racismo estrutural no Brasil e a saúde da população negra. Para Paulo Bruno, os números citados acima, além de indicarem a existência do racismo estrutural no Brasil - quando comparados a outros, em uma perspectiva histórica -, conferem a ele um caráter estruturante na formação social.

Segundo o pesquisador, ainda no período colonial, o sistema jurídico previa penas variadas e severas para escravos e ex-escravos. “Mutilação física, marcação com ferro em brasa, açoites, morte por enforcamento ou por esquartejamento, penas de aplicação recorrentes aos negros não atingiam fidalgos, cavaleiros e doutores, todos brancos. Entre 1810 e 1821, 80% dos sentenciados eram indivíduos escravizados, 19% ex-escravos e, somente, 1% correspondia a homens livres, que nunca haviam sido escravos”, advertiu o pesquisador.

No Código Criminal de 1830 as penas de suplício foram substituídas por outras de privação de liberdade; contudo, a prática do açoitamento foi mantida como forma de punição destinada aos escravos, enquanto os crimes praticados contra eles pelos senhores eram justificáveis. O Código Criminal de 1890 (um ano depois da Proclamação da República e dois da promulgação da Lei Áurea) empregava as palavras vadio e vagabundo para justificar as punições dirigidas àqueles que não exerciam alguma profissão e, portanto, não dispunham de meios de subsistência, ou seja, aos negros.

“Dessa forma, após a abolição da escravidão, estabeleceram-se mecanismos de controle sobre parte considerável da população do país (negra, sem trabalho e recursos), que passaram a ser operados pelas forças policiais, em substituição ao papel desempenhado anteriormente pelos capitães do mato. Tratava-se, portanto, de manter ex-escravos submissos sob o domínio do medo. A continuidade dessa forma de controle social pode ser observada por meio da comparação entre dados relativos às condenações ocorridas entre 1810 e 1821 e os correspondentes ao período de 1912-1913. No primeiro período, 60% dos delitos correspondiam a ‘ofensas menores à ordem pública’, 20% aos ‘pequenos furtos’ e 12% à ‘agressão física’ ou a ‘ferimento causado a outrem’, enquanto no segundo, 8,4% dos encarceramentos diziam respeito a ‘crimes contra pessoa e patrimônio’ e 91,6% eram aplicados a ‘doentes mentais’ e ‘ébrios’ (50,8%), ‘menores abandonados’ (29,6%), ‘vadios’ (8,5%) e ‘mendigos’ (2,7%); todas essas categorias compreendidas no termo ‘contraventores’”. 

Ainda de acordo com Paulo Bruno, tal política de encarceramento em massa de negros, justificada nos termos do sistema Jurídico, dava-se em meio a um aparente paradoxo que correspondia à situação do país. “De fato, o Brasil vivia no século dezenove intenso processo de modernização da economia baseado na força de trabalho de homens, mulheres e crianças negros escravizados. O que poderia parecer uma contradição, na verdade, possuía um caráter complementar, pois os escravizados, além de terem seus corpos expropriados, eram transformados em moeda, na medida em que serviam como garantia para os investimentos feitos pelos escravistas em outros setores da economia”, descreveu.

Código Penal e a Lei das Contravenções Penais

No começo da década de 1940, com Getúlio Vargas no poder, foram criados o Código Penal e a Lei das Contravenções Penais, vigentes até os nossos dias, embora com diversas modificações. Nessas leis, a categoria ‘vadiagem’, por exemplo, mantinha o mesmo sentido de leis anteriores. “Personagens como o médico legista Raymundo Nina Rodrigues, Cândido Mendes, Lemos Britto e Heitor Carilho, influenciados fortemente pelas teorias do médico e criminalista italiano Cesare Lombroso, que definiam uma “personalidade criminosa”, tiveram importante papel na construção dessas duas leis. Inclusive, uma das principais teses defendidas por Nina Rodrigues – um dos ícones da ciência mais avançada à época e com muitos adeptos – sustentava que aos indivíduos da raça ariana era imperioso impedir que negros e mestiços pudessem interferir nos destinos do país”, explicou Paulo.

Para ele, “essa tese ajuda a entender parte do encarceramento negro. Se pensarmos o encarceramento e a morte de negros como uma forma de impedir que interfiram nos destinos do país. Por outro lado, tanto o relatório preparado pela Defensoria Pública do Estado, quanto a campanha promovida pela OAB-RJ, que têm como objetivo questionar as técnicas de identificação por fotografias, nos remetem à permanência da herança intelectual racista de Lombroso nos aparelhos e instâncias de controle social”, argumentou o professor.

Saúde da população negra

Segundo Paulo, para falarmos de saúde da população negra e da sua relação com a política de extermínio e encarceramento em massa de pretos e pardos, é importante fazer um recuo na história para observar que o processo de transformação do escravismo colonial em capitalismo contemporâneo não incluiu rupturas significativas em determinadas relações sociais no Brasil.

“A resistência por parte de grupos políticos e econômicos em tomarem posição contrária aos regimes de trabalho análogos ao escravo, assim como o entusiasmo que demonstram com a flexibilização das leis trabalhistas, são indicativos de que a mentalidade e as práticas escravocratas ainda pulsam nos seus corpos”, destacou. Entretanto, os dados apresentados no início da matéria revelam parte de uma realidade extremamente cruel, tanto para aqueles que estão encarcerados, quanto para os parentes que estão do lado de fora do sistema.

Para além dos números que expressam a manutenção do racismo como régua para a medição da responsabilidade criminal - muito embora parte considerável dos presos não tenha sido sequer condenada -, predomina uma situação de insalubridade nas prisões que produz um quadro de morbimortalidade, caracterizado por doenças como tuberculose, diabetes, hipertensão, HIV/Aids, entre outras. Situação potencializada diante da inexistência de serviços de assistência médica eficazes nos ambientes prisionais e pela superlotação desses espaços, em função da baixa qualidade nutricional da alimentação fornecida aos presos, assim como pela ausência, em geral, nos presídios, de instalações que possibilitem a prática regular de exercícios físicos ou, mesmo, intelectuais.

“Nesse cenário, a palavra ressocialização impressa nas bermudas utilizadas em alguns presídios do país trata-se tão somente de mera estampa. Se considerarmos que grande parte da população carcerária do Brasil além de ter a cor da pele escura também é pobre, é lícito supor que ela, ainda antes de estar submetida à privação da liberdade, não tivesse acesso regular e duradouro a serviços de saúde, e a exames clínicos e laboratoriais, ou seja, a um rol de possibilidades de acompanhamento das suas condições de saúde. Sendo assim, ela se depara nos presídios com condições que, muitas vezes, podem levar ao agravamento de morbidades já existentes. De tal sorte que os suplícios, aplicados aos presos em séculos passados, excluídos da legislação mais recente, mas ainda recorrentes no cotidiano oculto do sistema, já não se fazem tão necessários à manutenção da ordem”, concluiu Paulo Bruno.

A saúde nas prisões

Segundo a também coordenadora da disciplina Expressões do Racismo e Saúde, Roberta Gondim, o histórico colonial brasileiro e as bases do racismo estrutural produzem enredos políticos e sociais de vulnerabilização e precarização de negros. A política carcerária é uma de suas expressões. Segundo ela, a criminalização e o grande encarceramento dessa população coloca o Brasil em destaque no cenário internacional.

“A saúde coletiva deve ter o compromisso de problematizar e gerar evidências em relação ao impacto desse enredo, tanto sobre a violência como em relação ao quadro imensamente desfavorável das condições de saúde nas prisões, principalmente das doenças infectocontagiosas (HIV/Aids, Tuberculose, Sífilis) como no atual contexto da Covid-19. O compromisso deve necessariamente passar por problematizar agendas restritas apenas a melhoria das condições dos cárceres, ou seja, deve fundamentalmente enfocar as tramas sociais que operam no sentido do encarceramento em massa de base explicitamente racializada”, enfatizou a pesquisadora.
 
Por fim, Roberta Gondim ressaltou que é tarefa da saúde coletiva crítica, e também da sociedade, a não naturalização da cor das prisões. “Precisamos questionar os dispositivos de Estado, chamados a agir sobre a lógica de privação de liberdade de cunho racista, como o mandado de busca coletivo, o auto de resistência e o enorme encarceramento de suspeitos, já que se sabe que eles são detentores de corpos previamente lidos por serem negros, a partir da lente da normalização da suspeição”, finalizou ela.

*Com informações do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.  


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