Busca do site
menu

Pesquisador da Fiocruz fala sobre casos de intoxicação por metanol no Brasil

ícone facebook
Publicado em:16/10/2025

Francisco Paumgartten explica os mecanismos de ação do metanol no organismo e reflete sobre os desafios de diagnóstico, tratamento e prevenção desse tipo de intoxicação

Casos de intoxicação por metanol associados ao consumo de bebidas adulteradas vêm sendo amplamente noticiados no país, com registros de internações e mortes em diferentes estados. A situação reacende o alerta sobre os riscos do consumo de produtos sem procedência e a necessidade de fortalecer a vigilância e o controle da comercialização de bebidas alcoólicas no Brasil. Para compreender melhor as causas, os riscos e as implicações em saúde pública desse cenário, o Informe ENSP entrevistou o pesquisador do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Francisco Paumgartten.

Referência no tema da toxicologia, Paumgartten destacou que, embora episódios desse tipo não sejam inéditos, o atual se destaca pela dispersão geográfica dos casos e pelo elevado número de vítimas em curto período, o que sugere uma ampla distribuição das bebidas adulteradas. Ele analisou as particularidades do episódio recente, explicou os mecanismos de ação do metanol no organismo e refletiu sobre os desafios de diagnóstico, tratamento e prevenção desse tipo de intoxicação.

Informe ENSP: O que diferencia os atuais casos de intoxicação por metanol com relação a outros ocasionais?

Francisco Paumgartten: Aglomerados temporais de casos de intoxicação por metanol não são raros no Brasil e no mundo, mas o presente episódio chama a atenção pelo elevado número de pessoas intoxicadas em curto período e pela ocorrência em mais de uma cidade e estado, o que se deveu à ampla distribuição de bebidas destiladas adulteradas. O que preocupa é o número e a dispersão dos casos, além da incerteza quanto à origem e à extensão da adulteração.

O mais comum é que a intoxicação ocorra por ingestão, sendo mais raros os casos por absorção cutânea ou inalação. Lembro-me de um conjunto de seis ou sete casos nos Estados Unidos, durante a pandemia (2020), com cinco mortes, provocadas pela absorção cutânea de metanol presente em desinfetantes de mãos (álcool em gel) nos quais o etanol fora parcial ou totalmente substituído por metanol. Identificado o problema, o CDC e o FDA agiram prontamente e recolheram os produtos contaminados.

O padrão habitual é de casos isolados, seja por ingestão intencional em tentativas de suicídio ou por ingestão acidental de bebidas alcoólicas de fabricação doméstica. No caso atual, a intoxicação ocorreu por adulteração de bebidas destiladas industrializadas, o que é mais incomum.

Informe ENSP: O que mais chama atenção nesse padrão epidemiológico recente?

Francisco Paumgartten: Destaco tanto a ampla dispersão dos casos em curto período quanto o perfil das vítimas, muitas delas pertencentes à classe média e residentes em bairros de maior poder aquisitivo. É mais comum observar surtos de intoxicação em massa em países pobres ou onde a bebida alcoólica é proibida, ou inacessível. Isso sugere que a adulteração envolveu bebidas consumidas por indivíduos com maior renda, o que torna este episódio particularmente atípico.

Informe ENSP: A adulteração de bebidas alcoólicas no Brasil envolve normalmente o uso de metanol?

Francisco Paumgartten: Normalmente, a adulteração ocorre com etanol de baixa qualidade e mais barato. O preço do metanol, no entanto, é semelhante ao do etanol no Brasil, o que torna esse episódio ainda mais incomum. É necessário investigar para esclarecer as circunstâncias e a motivação do uso de metanol. Espero que essa apuração já esteja em curso.

Informe ENSP: Por que a substância pode causar danos graves mesmo em pequenas quantidades?

Francisco Paumgartten: É preciso qualificar o que se entende por “pequenas quantidades”. Trata-se de intoxicações agudas causadas pela ingestão de determinada dose de metanol que, ao ser metabolizado no fígado pela enzima álcool desidrogenase, é oxidado a formaldeído e, em seguida, a ácido fórmico — metabólitos muito mais tóxicos que o próprio metanol. Esses compostos, quando acumulados no organismo, provocam acidose metabólica, lesões teciduais e, eventualmente, morte.

Estima-se que uma dose equivalente a 1 a 2 ml de metanol puro por quilo de peso corporal (cerca de 80 ml para uma pessoa de 80 kg) seja letal na maioria dos casos. No entanto, já foram relatadas mortes com doses menores e sobrevivência com doses mais elevadas. Efeitos não letais — como a cegueira causada pela lesão do nervo óptico devido ao ácido fórmico — podem surgir com doses menores, como a ingestão de cerca de 10 ml de metanol puro em curto intervalo, variando conforme fatores individuais.

O metanol é o álcool alifático mais simples e pode ser produzido por diversos processos naturais. Ele aparece, em quantidades muito pequenas (da ordem de miligramas por litro), como contaminante em produtos variados, inclusive em bebidas destiladas, mas em níveis que não representam risco à saúde. Em resumo, o perigo depende da quantidade ingerida em curto período. Por isso, há limites tolerados para cada produto.

Informe ENSP: O medo gerado por casos como esse pode afetar o comportamento de consumo de bebidas?

Francisco Paumgartten: Acredito que sim, pelo menos temporariamente no caso dos destilados. Contudo, esse efeito tende a ser passageiro: em pouco tempo as pessoas esquecem e retomam seus hábitos.

Há poucos anos, tivemos o caso de uma marca de cerveja contaminada com dietilenoglicol, um solvente que também é oxidado por ação do álcool desidrogenase, resultando em metabólitos tóxicos — gliceraldeído e ácido oxálico. O acúmulo desses compostos nos tecidos, especialmente nos rins, causa insuficiência renal aguda e pode levar à morte. Foi o que ocorreu em Minas Gerais, com dez mortes e 19 pessoas intoxicadas entre 2019 e 2020.

O caso da cerveja foi um acidente, não uma adulteração deliberada. O dietilenoglicol era utilizado para resfriar os tanques e acabou misturado à bebida por descuido, sem ser detectado pelo controle de qualidade. Como o solvente é inodoro e levemente adocicado, também passou despercebido pelos consumidores. 

Esse episódio tem em comum com o caso atual a atuação da mesma enzima (álcool desidrogenase) na formação dos metabólitos tóxicos. Assim, os dois antídotos disponíveis — etanol (grau farmacêutico) e fomepizol — são eficazes para ambos os tipos de intoxicação.

Informe ENSP: Além da possibilidade de importação do antídoto, existem alternativas eficazes disponíveis no Brasil?

Francisco Paumgartten: Além dos inibidores de álcool desidrogenase (etanol ou fomepizol), é essencial monitorar os níveis de metanol e de seus metabólitos e acompanhar a evolução da acidose metabólica por meio de exames complementares, para decidir o momento certo de iniciar a hemodiálise.

Os serviços de pronto atendimento devem estar equipados com pessoal técnico treinado e instrumentos adequados para diagnóstico e tratamento rápidos. O exame de cromatografia gasosa, que determina os níveis de metanol no sangue, é fundamental.

Quanto aos antídotos, o etanol farmacêutico está disponível no país e é eficaz. O fomepizol também é eficiente, mas precisa ser importado. Embora sua eficácia esteja bem documentada para intoxicações por metanol e dietilenoglicol, os estudos clínicos ainda são limitados para avaliar completamente seus efeitos adversos e perfil de segurança, principalmente em indivíduos não intoxicados. Por isso, é essencial confirmar rapidamente o agente causador e o quadro clínico antes de administrar o medicamento.

Informe ENSP: Qual é o maior desafio para o diagnóstico da intoxicação por metanol?

Francisco Paumgartten: Como essa condição não é comum no atendimento de rotina, o médico do pronto atendimento precisa ter boa formação clínica e conhecimentos de toxicologia, mantendo a possibilidade de intoxicação por metanol entre suas hipóteses diagnósticas. O diagnóstico diferencial correto e rápido em relação a outras condições com sintomas semelhantes é essencial.

Para isso, é necessário que o serviço tenha capacidade de medir prontamente os níveis de metanol e de seus metabólitos (como o ácido fórmico) no sangue, por meio de cromatografia gasosa, e identificar outros agentes que possam causar sintomas parecidos.

Também é fundamental dispor de estrutura para realizar hemodiálise quando os níveis dessas substâncias excedem determinados valores. Os serviços de pronto atendimento devem contar com protocolos específicos, infraestrutura e equipe capacitada tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento adequado.

Informe ENSP: Quais são os sinais de alerta que diferenciam a intoxicação dos sintomas tradicionais de uma ressaca? Em que momento a pessoa deve procurar um serviço de saúde?

Francisco Paumgartten: Nas primeiras horas após a ingestão, dependendo da dose, os sintomas podem se assemelhar aos da embriaguez comum, afetando principalmente o sistema nervoso central, com sonolência, dor de cabeça, visão embaçada e confusão mental. Após 12 a 24 horas, instala-se uma acidez metabólica grave devido ao acúmulo de ácido fórmico, que pode causar lesão do nervo óptico e cegueira, além de coma e morte.

Como bebidas são geralmente consumidas em grupo, é comum que várias pessoas apresentem sintomas semelhantes, o que torna o produto suspeito de ser a fonte de intoxicação. Diante de qualquer sintoma após o consumo de álcool, deve-se procurar atendimento médico imediato. Cabe ao profissional realizar o diagnóstico diferencial, com base nos sintomas, na história relatada e em exames laboratoriais. Quando mais de um paciente chega com sintomas após ingerirem a mesma bebida, o sinal de alerta é evidente, e devem ser solicitadas análises do sangue e da própria bebida.


Seções Relacionadas:
Fique por Dentro

Nenhum comentário para: Pesquisador da Fiocruz fala sobre casos de intoxicação por metanol no Brasil