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“Há duas maneiras de encarar o tema do aborto: através da ciência ou do negacionismo”, afirma especialista em debate

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Publicado em:05/07/2024
Por Danielle Monteiro

O PL do Aborto é um projeto de poder político e econômico e de tentativa de controle sobre os corpos femininos, que convoca a sociedade para uma reflexão sobre como o tema da interrupção da gravidez deve ser discutido. Essa foi a conclusão de especialistas que participaram do debate ‘Acesso ao aborto legal no SUS: Como acolher e garantir direitos?’, promovido pelo Observatório do SUS da ENSP na última quarta-feira (3/07). As barreiras ao acesso ao aborto legal, a vida limitante imposta às mulheres ao longo dos séculos e a necessidade do direito feminino de decisão sobre seu próprio corpo foram alguns dos assuntos de destaque do evento. 

O coordenador do Observatório do SUS da ENSP, Eduardo Melo, abriu o encontro relembrando que o Observatório foi criado há menos de um ano com o objetivo de acompanhar a conjuntura, as políticas e as experiências do Sistema Único de Saúde no âmbito da Direção da ENSP, particularmente da Vice-Direção da Escola de Governo em Saúde (VDEGS).”Temos nos dedicado a explorar alguns grandes desafios estruturais do SUS nessa primeira fase de funcionamento do Observatório e fomos atravessados por um processo não só preocupante, como escandaloso, que foi o PL do Estupro. Nesse sentido, decidimos promover um grande debate sobre esse tema”, explicou. 

Por trás do PL do Aborto

“O que está por trás do PL do Aborto?” Com essa provocação, a antropóloga, professora e defensora dos direitos reprodutivos das mulheres, Debora Diniz, iniciou sua fala no evento. Ela avaliou que o tema do aborto ocupou o cenário nacional de uma forma inesperada sob dois aspectos: por se tratar de um retrocesso de uma lei penal de 1940, em uma tentativa de criminalizar e criar barreiras ainda maiores a todas as meninas e mulheres que possam engravidar e chegar aos serviços de saúde; e por consistir também em uma manobra política em um ano de eleição. Ela destacou que, ao contrário do que esperava a política extremista que propôs o Projeto de Lei, houve uma indignação generalizada na sociedade em relação à medida. Além disso, segundo ela, a repercussão do PL 1904 trouxe uma importante reflexão para o debate sobre aborto no país: “É importante que a imaginação sobre quem é afetada por uma criminalização de uma necessidade de saúde seja um dos elementos fundamentais para uma tomada de decisões éticas que envolvem o tema. Temos que continuar essa forma de nos indignarmos e de ‘realizarmos’ sobre quem falamos na discussão pública sobre aborto, como fizemos no debate sobre o PL, que criminaliza mulheres, até 20 anos de cadeia, por fazerem um aborto de segundo trimestre, tão importante em casos de estupro”, defendeu.

Chamando a atenção para a importância de um estado laico, Debora também defendeu que o debate público sobre aborto não deve ser matéria de ‘contra ou a favor’ e precisa incluir a ciência. Segundo a antropóloga, embora as religiões precisem ser respeitadas, elas não devem determinar a vida pública e o bem comum. “Que tal trazermos dessas semanas intensas de aprendizado sobre esse brutal Projeto de Lei um exercício de reflexão e ponderação sobre como podemos falar e continuar o debate público sobre a urgência da descriminalização do aborto?”, propôs a antropóloga, frisando que, se o procedimento deixar de ser crime, o número de casos de interrupção de gravidez pode, inclusive, cair, conforme apontam estudos. 

Debora destacou, ainda, que a discussão sobre a descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas demanda uma estrutura de justiça social reprodutiva, que inclui o debate sobre outras questões, como acesso a planejamento familiar, à informação, à redução de danos e à educação sexual.

Uma vida de limitações ao longo dos séculos

Em seguida, a pesquisadora da ENSP e coordenadora da pesquisa Nascer no Brasil, Maria do Carmo Leal, narrou alguns marcos da história da luta das mulheres por seus direitos no Brasil, alertando para o conservadorismo que persiste na cultura brasileira ao longo dos séculos. “Em 1827, as meninas conquistaram o direito de ir à escola. Em 1979, conseguiram ingressar na universidade. Em 1910, elas pediram para formar um partido político de mulheres, mas só conseguiram o direito ao voto em 1932, sendo que o Brasil foi um dos últimos países a conceder esse direito feminino. Temos essa tradição de sermos o último. Foi assim com a escravidão e, em relação ao aborto, estamos caminhando de forma parecida, pois nossos países vizinhos já estão todos em outro momento de discussão sobre o tema”, afirmou.

Maria do Carmo relembrou ainda que, apenas em 1962, as mulheres conquistaram o direito de poder trabalhar, sem necessitar da autorização do marido, e de pedir a guarda dos filhos e não perder a herança, em caso de separação. Conforme também relatado pela pesquisadora, apenas em 1974 elas puderam ter um cartão de crédito. Em 1979, conquistaram o direito de jogar futebol profissional, e, em 1988, conseguiram, por lei, ter direitos iguais aos dos homens, apesar de, na prática, isso ainda não acontecer. “Até 2002, a mulher podia ter o casamento anulado por não ser virgem. Em 2006, foi criada a Lei Maria da Penha, que foi um divisor de águas para as mulheres, e, em 2015, a lei do feminicídio. Em 2022, passou a ser crime ser importunada sexualmente. E, somente em 2023, passamos a ter o direito de fazer laqueadura sem ter que pedir a autorização do marido. Isso mostra como a vida da mulher foi marcada por limitações”, lamentou. 

Além das árduas conquistas femininas, Maria do Carmo alertou para a defasagem da legislação que versa sobre o aborto, cujo código penal é de 1940. “Isso é um escândalo, pois, no país, há 75 mil estupros por ano, sendo que a maioria das vítimas são crianças negras e de baixa renda. Essa legislação já deveria ter sido ampliada há muito tempo”, defendeu. Ela lembrou, ainda, que, apesar de a legislação brasileira desde 1940 permitir a oferta de serviço para a realização de aborto nos casos previstos por lei, foi somente em 1989 que, por meio de uma portaria, foi criado o primeiro hospital que oferecia aborto legal.

Maria do Carmo também enfatizou que o aumento da violência contra a mulher na última década no Brasil é fruto da chegada da extrema direita ao poder, marcada pelo conservadorismo no tratamento de pautas sobre os direitos humanos e por uma cultura de ódio à mulher. “É nesse cenário de desrespeito que aparece esse PL 1904, denominado PL do estupro, que é o melhor nome para ele”, afirmou.

Conforme destacado pela pesquisadora, a pesquisa Nascer no Brasil apontou que mais da metade (55%) dos partos das brasileiras ocorre sem a intenção de a mulher engravidar. A criminalização do aborto, assim como a elevada incidência de gravidez na adolescência, explicam o resultado do estudo, segundo ela. “Obrigar uma criança a levar adiante uma gravidez consequente de um estupro é de uma crueldade inominável e provoca um trauma imenso nessa menina, com impacto na sua saúde mental, na sua evasão escolar, na redução de chances de sua carreira profissional e, ainda, a expõe ao risco de morte”, concluiu.

Ciência x Negacionismo: Como o aborto precisa ser discutido?

“Há duas maneiras de encarar o aborto: através da ciência, tratando como um problema da saúde pública, ou através do negacionismo e de crenças”, destacou o obstetra e diretor médico da Universidade de Pernambuco, Olímpio Moraes, ao iniciar sua apresentação. Referência na luta pela democratização do aborto legal no Brasil, Moraes discorreu sobre as barreiras ao acesso ao procedimento nos casos previstos por lei no país.

“O problema do abortamento em casos de estupro é que meninas estupradas têm, em sua maioria, de 10 a 13 anos. Elas não sabem sequer o que é menstruar e, quando menstruam, não podem nem dizer para a mãe. Quando descobrem a gravidez, já estão com cinco meses de gestação e, quando procuram o serviço, não recebem a devida orientação”, alertou o obstetra. Segundo ele, a maioria das meninas vítimas de estupro não sabem que têm acesso ao aborto legal e, justamente por conta dessa falta de informação, chegam com uma gestação tardia aos serviços de saúde.

Conforme relatado por Moraes, no Brasil, 14 a 16 mil meninas se tornam mãe a cada ano, sendo que a maioria delas têm menos de 14 anos de idade. Cerca de 80% das vítimas de violência sexual são crianças e adolescentes e 70% são próximas do agressor. De acordo com dados do The Intercept Brasil, apresentados pelo obstetra, entre as meninas vítimas de estupro, que têm entre 10 e 14 anos, apenas 3,9% tiveram acesso ao aborto legal entre 2015 e 2020.

Outros entraves no acesso ao aborto legal no país, relatados por Moraes, são a escassez de informações públicas sobre os serviços de referência que oferecem aborto legal e o baixo número de estabelecimentos que informam, publicamente, o fornecimento do procedimento acima de 22 semanas em casos de estupro. “Apenas seis das 27 unidades federativas disponibilizam algum tipo de informação pública sobre aborto nos sites das secretarias de Saúde. Uma gestante pode demorar, em média, de dois a três meses para encontrar um programa que a acolha”, lamentou.

Outro obstáculo ao aborto legal, segundo o obstetra, é a tentativa do próprio sistema em prolongar o tempo de gestação da mulher que tem direito à interrupção da gravidez, justamente para que o prazo para a realização do procedimento seja ultrapassado. Ainda entre os fatores impeditivos do aborto legal, segundo Moraes, está a conduta do médico, que, por vezes, está ancorada na objeção de consciência, e não na Saúde.

Moraes defendeu que, no conceito de aborto induzido, ao contrário de aborto espontâneo, não deve haver relação com idade gestacional, peso ou viabilidade fetal. E, ao fazer uma análise do Código Penal de 1940, que versa sobre o aborto legal no país, o obstetra criticou o fato de a anencefalia fetal ser a única malformação fetal que se enquadra nos casos de interrupção da gravidez prevista em lei, já que existem vários outros tipos de alterações no embrião também incompatíveis com a vida. 

Outro ponto crítico da legislação, pontuado por Moraes, diz respeito à brecha que ela deixa ao permitir o aborto legal “se não houver outro meio de salvar a vida da gestante”. Segundo o obstetra, como essa orientação pode ser interpretada de várias formas pelo médico, na tentativa de evitar a interrupção da gravidez o profissional de saúde pode tentar outros meios de proteger a vida da paciente que podem não ser tão eficazes como a intervenção, levando a mulher a óbito. Para solucionar esse problema, Moraes defende que é preciso o consentimento da mulher, além da declaração de, pelo menos, dois médicos, definindo a doença e o risco.  “Se a mulher brasileira tiver risco de 20% ou mais de morte na gravidez, ainda assim será negado a ela o direito de ter a opção do aborto”, lamentou.

"É preciso assumir o risco de debater o tema"

Por fim, a presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e editora da Revista Direitos e Garantias Fundamentais, a pesquisadora Elda Bussinguer, defendeu a necessidade de debates sobre o aborto e definiu o tema como espinhoso e difícil de ser tratado: “Falar desse tema é, de um modo geral, assumir um risco, de alguma forma, da crítica e da rejeição. Mas, precisamos assumir esse risco de debate sobre o tema porque não há rejeição e dor maior do que a dor que sofrem as meninas em nosso país, que são abandonadas e violentadas cotidianamente porque nós nos omitimos”, enfatizou.

Elda atentou para a violação da Constituição no debate sobre aborto legal, que cria barreiras para o acesso ao procedimento, rompendo com o princípio da impessoalidade e assumindo uma posição ideológica e ‘pretensamente’ de respeito aos valores morais da sociedade brasileira. Evangélica, a pesquisadora defendeu que o aborto não deve ser discutido sob uma ótica religiosa e afirmou que o PL é um projeto de poder político, econômico e de controle sobre os corpos femininos, que pretende silenciar as mulheres e ‘coisificar’ seus corpos. “As mulheres precisam ficar em silêncio em seus lugares, para que, em uma sociedade patriarcal, os homens possam continuar exercendo o poder do macho”, lamentou. Diante desse cenário, é preciso, segundo a pesquisadora, romper esse ‘pacto de silêncio’ que mantém meninas em todo o país sendo violentadas diariamente por parentes próximos. 
 





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