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Oficial para Saúde Sexual e Reprodutiva do Fundo de População da ONU fala sobre pobreza menstrual

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Publicado em:26/11/2021

A repórter da revista Radis, Ana Cláudia Peres, teve uma conversa sobre dignidade de mulheres e violação de direitos com a oficial para Saúde Sexual e Reprodutiva do Fundo de População da ONU, Anna Cunha. Lançado, em maio, pelo Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o relatório “Pobreza menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos” aponta que 713 mil meninas vivem em casas que não têm banheiro, chuveiro e sanitários e mais de 4 milhões não conseguem acessar minimamente cuidados menstruais nas escolas — cerca de 321 mil estudantes sequer têm banheiros em condições de uso. Confira!

Pode parecer difícil de imaginar, mas na falta de absorvente higiênico, há quem precise usar miolo de pão durante o período do mês em que está menstruada. Também jornal ou papelão, uma meia, sacolas de plástico, pedaços de tecido, papel higiênico, entre outros métodos nada recomendáveis. Os relatos existem em abundância e ganharam mais visibilidade na imprensa depois que o presidente Jair Bolsonaro vetou (7/10) parte do Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual, justamente os artigos que previam a distribuição gratuita de absorventes a estudantes de escolas públicas e pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Desde 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) considera a higiene menstrual um direito e uma questão de saúde pública. No Brasil, segundo estudo da plataforma Girls up, uma em cada quatro adolescentes não têm acesso a absorvente. Mas estima-se que uma parcela ainda maior sofra com a pobreza menstrual — um conceito que não se resume à falta de recursos para itens de higiene, passa por saneamento básico e educação e atinge diretamente famílias que estão em condição de pobreza, estudantes, meninas e mulheres em situação de rua ou em privação de liberdade, além de homens trans que também menstruam.

Lançado em maio pelo Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o relatório “Pobreza menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos” aponta que 713 mil meninas vivem em casas que não têm banheiro, chuveiro e sanitários e mais de 4 milhões não conseguem acessar minimamente cuidados menstruais nas escolas — cerca de 321 mil estudantes sequer têm banheiros em condições de uso. “A pobreza menstrual é uma questão econômica, mas também social e política”, diz Anna Cunha, oficial para Saúde Sexual e Reprodutiva do Fundo de População da ONU, com quem Radis conversou no final de outubro.

Nesta entrevista, ela analisa os dados do relatório e demonstra as consequências da menstruação vivida em condições de pobreza e não-dignidade, o que pode com prometer aspectos que vão desde a educação até a saúde sexual, reprodutiva e psíquica. Anna Cunha também aponta caminhos para enfrentar a pobreza menstrual no Brasil — algo que se faz com políticas públicas, ela reforça — e explica por que é urgente desconstruir tabus em torno da menstruação para que o tema possa ser abordado com informação e embasamento científico. Confira:


O que significa exatamente a pobreza menstrual?

A gente tem uma perspectiva ampla do que seja pobreza menstrual. Ela é um fenômeno multidimensional que vai desde falta de acesso a recursos de higiene menstrual até infraestrutura precária e falta de conhecimento, por parte de mulheres e meninas, para tudo o que envolve o cuidado relacionado à própria menstruação. A pobreza menstrual não se resume apenas a uma questão econômica. Envolve acesso a insumos, serviços e informações. E essa pobreza menstrual é afetada por questões como desigualdade de gênero e tem relação com a extrema pobreza, com crises humanitárias, com crises sanitárias, que acabam fazendo com que a menstruação seja um motivo de privação de direitos e também de estigmas. E ela não atinge somente os países mais pobres. Dentro de um país como o Brasil, mesmo em cidades que têm IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] mais alto, você tem condições de vida desiguais em seus territórios.

Quem mais sofre com a pobreza menstrual?

A gente observa que a pobreza menstrual acontece principalmente com pessoas e famílias que estão em condição de pobreza ou em situação de vulnerabilidade social, seja em contextos urbanos ou em ambientes rurais. Essa acaba sendo a população mais afetada. O relatório traz dados que identificam, por exemplo, que 713 mil meninas vivem em casas que não têm banheiro, chuveiro e sanitários; que mais de 900 mil meninas não têm acesso à água encanada em pelo menos um cômodo do seu domicílio; e que 3 milhões e meio de meninas brasileiras vivem em casa sem ligação à rede de esgoto. São meninas que moram em casa sem coleta de lixo. São estudantes que estão em escolas que não possuem banheiro em condição de uso ou que não dispõem de papel higiênico nem sabão nem água encanada — banheiros que, em alguns casos, não tem nem uma porta para garantir o mínimo de privacidade para os cuidados de higiene. A questão racial também é muito importante. Pelos dados do relatório, a gente observa que a chance de uma menina negra morar em um domicílio que não tem banheiro é três vezes maior do que a de uma menina branca; que o percentual de meninas da região Norte sem acesso a banheiro em suas escolas chega a quase 8,4%; e que a chance relativa de uma menina da área rural não ter banheiro em casa é 15 vezes maior do que para uma menina da área urbana. Então, quem é mais afetado?

É justamente quem está nessas condições: regiões Norte e Nordeste, área rural e em condições de extrema pobreza; e também mulheres em situação de rua ou que estão em casa sem o mínimo de infraestrutura de saneamento básico. Não é possível pensar direitos menstruais sem considerar essas múltiplas realidades do Brasil.

A gente tem visto relatos de pessoas que, sem conseguir comprar opções higiênicas, usam papel higiênico, papelão, sacolas plásticas e até jornal sobre a calcinha. O que
significa menstruar nessas condições?

Para quem não está vivendo essa realidade, pode parecer que a menstruação tem outro peso. Para quem está numa situação de acesso facilitado em termos de direito menstrual, pode ser difícil pensar que outras mulheres e meninas não vivem o mesmo. Imagine que a maioria das meninas brasileiras menstrua pela primeira vez entre 10 e 14 anos. A partir dessa idade, isso se torna algo corriqueiro, vivenciado ao longo da vida por muitos anos, e mensalmente. Mas se você pensar no contexto de muitos lares que vivem em situação de insegurança alimentar, esses itens de higiene vão ficar em segundo plano. Ora, você não tem nem o básico de alimentação, o que dirá do acesso a itens de higiene! Então, esses métodos acabam sendo utilizados como formas alternativas, mas nem sempre garantem uma higiene de fato ou algo que possa ser promotor de saúde. A saúde fica muitas vezes comprometida. Você imagina o que é usar miolo de pão, como a gente tem ouvido em relatos de mulheres em privação de liberdade! Isso tudo faz com que a menstruação seja vivenciada sem dignidade, o que inclusive compromete aspectos de saúde, que incluem a saúde sexual e reprodutiva.



Que problemas de saúde podem ser acarretados pela pobreza menstrual?

A gente pode pensar em infecções, alergias e até em saúde em um sentido mais amplo e ainda em questões relacionadas à saúde mental. A menstruação vivida nessas condições de pobreza e não-dignidade traz simultaneamente uma sensação de desconforto para meninas e mulheres, uma sensação de que seu corpo é inadequado ou de que seu corpo como mulher é sujo. Isso pode acarretar problemas de autoestima e levar a um sofrimento psíquico. Além disso, se você tem que frequentar a escola e não tem essas condições mínimas de cuidados menstruais, isso faz com que você se ausente da escola ou que a frequência ou o aprendizado escolar fiquem comprometidos [veja relato aqui]. E se o bem-estar corporal fica comprometido, isso pode trazer consequências não só físicas, mas também para a saúde psíquica. Também pode trazer consequências para a vida adulta relacionadas à própria educação. Imagine todos os dias em que as meninas precisam se ausentar em função da menstruação ou imagine a má qualidade de uma aula vivenciada por essas meninas em condições inadequadas. Isso também gera prejuízo para o aprendizado.


Apesar de ser uma questão de saúde pública, a menstruação muitas vezes é tratada como um tabu. Por quê?


E olha que esse é um processo orgânico, corporal, biológico, natural, que acontece na maioria dos corpos das mulheres e meninas... Mas é verdade, curiosamente, a menstruação ainda tem uma carga em termos de simbologia social que carrega mitos, tabus e inclusive estigmas. Mas ela precisa ser encarada como um processo natural, com naturalidade, com informações. Precisa ser discutida abertamente na escola — não só por meninas, mas também por meninos. Esses tabus que envolvem a menstruação são uma consequência das discriminações de gênero, mas também reforçam essas discriminações e os estigmas associados ao corpo feminino. Então, essa é uma questão que acaba acentuando as desigualdades de gênero, as desigualdades sobre corpo, a discriminação, mas também traz consequências, como já falei, para a educação e às vezes até interferem no ir e vir dessas meninas e mulheres — se elas não têm segurança de que não terão surpresas, por exemplo, no transporte público, se elas não contam com um item que vai conter a menstruação de uma forma segura, até o trânsito delas pela cidade sofre interferências. São direitos básicos que acabam comprometidos.



O que precisa ser levado em conta no debate sobre pobreza menstrual?

O que a gente tem colocado, como eu disse antes, é que são vários os fatores ligados à pobreza menstrual. Então, a falta de acesso a produtos de higiene menstrual tem um impacto econômico, sim, já que mensalmente você precisar fazer a aquisição desses itens. Mas isso não pode ser pensado de forma isolada. Por exemplo, é preciso levar em consideração a dificuldade de acesso à água — apesar de o coletor menstrual ser mais sustentável, ele também requer que você tenha acesso à água, então, pode ser que naquele contexto específico o coletor não seja o mais adequado. Mas o debate sobre a pobreza menstrual inclui também o próprio acesso a medicamentos para administrar problemas menstruais como cólicas ou o acesso a serviços médicos para que elas possam verificar se há algo irregular ou ainda o acesso a informações sobre saúde menstrual, autoconhecimento sobre corpo e ciclos menstruais, assim, ao básico do básico, para que as meninas cheguem à primeira menstruação com todas as informações necessárias para entender o que significa.

Por que é necessário dar cada vez mais visibilidade ao assunto?


Porque essa é uma questão que está muito além de uma questão individual ou que diz respeito àquela menina unicamente. É uma questão que diz respeito às famílias, às escolas, às unidades de saúde e à sociedade como um todo. A gente precisa discutir cada vez mais e mais abertamente esses temas. Isso significa que a gente deveria ter, sim, uma defesa da educação integral em sexualidade.

É justamente nessa educação em saúde e sexualidade que vai se falar de corpo, da primeira menstruação e de tantos outros assuntos relevantes. A gente precisa que as escolas coloquem abertamente os direitos menstruais como algo relevante, que a mídia assuma isso, que o poder público assuma isso. É muito importante que a gente tenha a distribuição gratuita de itens de higiene menstrual. Mas numa perspectiva macro, a gente também precisa facilitar e promover o próprio acesso ao saneamento básico, à saúde, à moradia digna.

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro vetou trechos de um projeto de lei que previa a distribuição gratuita de absorventes em escolas públicas. No Brasil como vêm funcionando as políticas públicas em relação ao assunto?
A gente tem vários projetos que foram apresentados em nível local, estadual e municipal, além de outros tantos que foram colocados em pauta em nível nacional, dentro do Congresso. No geral, as propostas legislativas têm trazido uma ênfase na garantia de acesso a itens básicos para perfis específicos. Você tem uma priorização de meninas e mulheres em situações extremas de vulnerabilidade social e com dificuldades de acesso a itens básicos de higiene, geralmente mulheres em situação de rua, meninas em extrema pobreza ou mulheres que estejam em situação de privação de liberdade. Então, sem dúvida, isso faz parte das ações para promover a garantia de direitos de meninas e mulheres no Brasil, país tão marcado por desigualdades e inclusive por dificuldade de garantias de direitos básicos como são os direitos menstruais.



Na ausência de políticas públicas, são muitas as iniciativas da sociedade civil que vêm propondo a distribuição de itens de higiene menstrual. Como elas podem fazer a diferença na vida de mulheres afetadas pela pobreza menstrual?
Esses espaços são muito importantes, sem dúvida. Acho que a gente precisa valorizar, incentivar e motivar que essas iniciativas também ocorram. E como a pobreza menstrual vai além do acesso aos itens de higiene menstrual, ela também envolve acesso à informação, essas ações ajudam a dar visibilidade ao tema, colocam o assunto no espaço público e, quando esse tema começa a ser mais debatido, ele também colabora e muito com a redução da pobreza menstrual. Só que, claro, a gente precisa ter em mente uma escala mais ampla, que abarque os diferentes territórios no país, então, a gente precisa, sim, ir para o âmbito de políticas públicas. O ideal seria que a gente tivesse tanto ações pontuais como essas, que podem ser muito efetivas, quanto garantir uma escala ampla. São ações complementares.


O que mais lhe impactou no relatório publicado pelo Unfpa e Unicef?


Acho que passa pela noção da dimensão do problema da pobreza menstrual. Já havia outras iniciativas nesse sentido, mas esse relatório traz dados muito precisos e evidentes. Ao olhar para os dados, você percebe que não se trata de uma realidade pontual de um grupo pequeno, mas vivenciada por uma parcela considerável de meninas e mulheres no país. Acho que a grande contribuição desse relatório é justamente nos trazer uma fotografia da quantidade de pessoas impactadas pela pobreza menstrual, algo que a gente já tinha intuitivamente, mas que é muito diferente de quando você olha para os dados. Tudo isso nos faz deixar de ver como uma experiência individual para percebê-la como algo muito mais frequente e vivenciado por uma quantidade maior em termos estatísticos do que a gente poderia intuitivamente cogitar.



Por último, como enfrentar a nossa pobreza menstrual?


Bom, a gente precisa enfrentar, sem dúvida, com política pública, tanto aquelas que garantam a permanência das meninas na escola — e aí vai desde a garantia da distribuição gratuita de itens de higiene menstrual até melhorias de banheiros —, mas que também passem por uma melhor promoção da informação e da educação em saúde, em corpo e sexualidade. Isso, no âmbito escolar. Para além dele, a gente precisa também da distribuição gratuita de itens de higiene menstrual para a população em vulnerabilidade social em abrigos, unidades de saúde, ou seja, que isso possa ser algo viabilizado pelo setor público para mulheres que estão em condições de mais necessidade, mas que a gente também tenha política pública no sentido de melhoria de infraestrutura e de moradia. A gente precisa pensar que a pobreza menstrual é uma questão econômica, mas também social e política. E, para além das políticas públicas, é preciso pensar em transformações culturais, em desconstruir tabus e mitos para que o tema possa ser abordado de forma fácil, com informações precisas e embasamento científico, desconstruir essa carga e esse estigma que dificulta o acesso à informação por parte das meninas e que muitas vezes acaba fazendo com que a menstruação seja vivida de uma forma pouco saudável, trazendo um sofrimento psíquico desnecessário. Então, acho que essa transformação cultural também precisa acontecer e que a gente possa tratar esse tema, cada vez com mais naturalidade e com informações necessárias, nos demais espaços, na própria mídia, inclusive. É preciso dar visibilidade a temas como esse, ainda mais agora com tantos desafios e resistências.



Mas você vai usar papel higiênico?!"


Na Escola Municipal Bahia, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, estudam 575 alunos — 277 são meninas. “Eu já tive aluna que todo mês faltava dois ou três dias. Quando falava com ela para saber se estava doente ou com algum problema, era comum ouvir que havia faltado porque estava menstruada”, conta à Radis a diretora adjunta Vânia Carla Azevedo. “Ela nunca me disse abertamente se isso acontecia por falta de dinheiro para o absorvente, mas o fato é que ela não vinha à escola”. Tão comum quanto as ausências durante o ciclo menstrual eram os pedidos por absorventes. “Algumas vinham me pedir papel higiênico para evitar que o fluxo vazasse. Eu perguntava, admirada: ‘Mas você vai usar papel higiênico?!’ e elas respondiam que sim, já estavam acostumadas”. Vânia também notava alguns constrangimentos. “Muitas permaneciam na sala até muito depois dos outros alunos dispersarem e só então saíam, de casaco amarrado na cintura”.


Esses episódios aconteciam com tanta frequência que a direção da escola decidiu disponibilizar por conta própria absorventes para as alunas. “A gente compra com nosso próprio dinheiro. Eu, o diretor e a coordenadora nos revezamos para abastecer a farmácia da escola e garantir que elas tenham à mão sempre que precisarem”, diz Vânia, para quem a distribuição de absorventes deveria ser política pública. Na opinião da diretora adjunta, isso ajudaria a combater a evasão escolar e, quem sabe, a naturalizar um assunto que, não deveria, mas ainda é um tabu no ambiente escolar. “Sempre que precisam, as alunas disfarçam, pedem para sair da sala para beber água e vêm aqui no cantinho falar baixinho com a gente”, conta. “Mas se não tiver nenhuma mulher com quem elas possam falar, provavelmente vão embora sem resolver o problema”.


Vânia agora espera que a Escola Bahia seja beneficiada pelo programa Livres para Estudar, anunciado (13/10) pela prefeitura do Rio, logo após a repercussão negativa em torno dos vetos do presidente Jair Bolsonaro, e que prevê a distribuição de 8 milhões de absorventes por ano para estudantes da rede municipal. Outros estados e municípios do país já adotam medidas parecidas.





Fonte: Radis
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