Oficial para Saúde Sexual e Reprodutiva do Fundo de População da ONU fala sobre pobreza menstrual
A repórter da revista Radis, Ana Cláudia Peres, teve uma conversa
sobre dignidade de mulheres e violação de direitos com a oficial para
Saúde Sexual e Reprodutiva do Fundo de População da ONU, Anna Cunha.
Lançado, em maio, pelo Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa) e
pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o relatório
“Pobreza menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos”
aponta que 713 mil meninas vivem em casas que não têm banheiro, chuveiro
e sanitários e mais de 4 milhões não conseguem acessar minimamente
cuidados menstruais nas escolas — cerca de 321 mil estudantes sequer têm
banheiros em condições de uso. Confira!
Pode parecer difícil de imaginar, mas na falta de absorvente higiênico, há quem precise usar
miolo de pão durante o período do mês em que está menstruada. Também
jornal ou papelão, uma meia, sacolas de plástico, pedaços de tecido,
papel higiênico, entre outros métodos nada recomendáveis. Os relatos
existem em abundância e ganharam mais visibilidade na imprensa depois
que o presidente Jair Bolsonaro vetou (7/10) parte do Programa de
Proteção e Promoção de Saúde Menstrual, justamente os artigos que
previam a distribuição gratuita de absorventes a estudantes de escolas
públicas e pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Desde
2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) considera a higiene
menstrual um direito e uma questão de saúde pública. No Brasil, segundo
estudo da plataforma Girls up, uma em cada quatro adolescentes não
têm acesso a absorvente. Mas estima-se que uma parcela ainda maior sofra
com a pobreza menstrual — um conceito que não se resume à falta de
recursos para itens de higiene, passa por saneamento básico e educação e
atinge diretamente famílias que estão em condição de pobreza,
estudantes, meninas e mulheres em situação de rua ou em privação de
liberdade, além de homens trans que também menstruam.
Lançado em
maio pelo Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa) e pelo Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef), o relatório “Pobreza menstrual
no Brasil: desigualdades e violações de direitos” aponta que 713 mil
meninas vivem em casas que não têm banheiro, chuveiro e sanitários e
mais de 4 milhões não conseguem acessar minimamente cuidados
menstruais nas escolas — cerca de 321 mil estudantes sequer têm
banheiros em condições de uso. “A pobreza menstrual é uma questão
econômica, mas também social e política”, diz Anna Cunha, oficial para
Saúde Sexual e Reprodutiva do Fundo de População da ONU, com
quem Radis conversou no final de outubro.
Nesta entrevista, ela
analisa os dados do relatório e demonstra as consequências da
menstruação vivida em condições de pobreza e não-dignidade, o que pode
com prometer aspectos que vão desde a educação até a saúde sexual,
reprodutiva e psíquica. Anna Cunha também aponta caminhos para enfrentar
a pobreza menstrual no Brasil — algo que se faz com políticas públicas,
ela reforça — e explica por que é urgente desconstruir tabus em torno
da menstruação para que o tema possa ser abordado com informação e
embasamento científico. Confira:
O que significa exatamente a pobreza menstrual?
A
gente tem uma perspectiva ampla do que seja pobreza menstrual. Ela é um
fenômeno multidimensional que vai desde falta de acesso a recursos de
higiene menstrual até infraestrutura precária e falta de conhecimento,
por parte de mulheres e meninas, para tudo o que envolve o cuidado
relacionado à própria menstruação. A pobreza menstrual não se resume
apenas a uma questão econômica. Envolve acesso a insumos, serviços e
informações. E essa pobreza menstrual é afetada por questões como
desigualdade de gênero e tem relação com a extrema pobreza, com crises
humanitárias, com crises sanitárias, que acabam fazendo com que a
menstruação seja um motivo de privação de direitos e também de
estigmas. E ela não atinge somente os países mais pobres. Dentro de um
país como o Brasil, mesmo em cidades que têm IDH [Índice de
Desenvolvimento Humano] mais alto, você tem condições de vida desiguais
em seus territórios.
Quem mais sofre com a pobreza menstrual?
A
gente observa que a pobreza menstrual acontece principalmente com
pessoas e famílias que estão em condição de pobreza ou em situação de
vulnerabilidade social, seja em contextos urbanos ou em ambientes
rurais. Essa acaba sendo a população mais afetada. O relatório traz
dados que identificam, por exemplo, que 713 mil meninas vivem em casas
que não têm banheiro, chuveiro e sanitários; que mais de 900 mil meninas
não têm acesso à água encanada em pelo menos um cômodo do seu
domicílio; e que 3 milhões e meio de meninas brasileiras vivem em casa
sem ligação à rede de esgoto. São meninas que moram em casa sem coleta
de lixo. São estudantes que estão em escolas que não possuem banheiro em
condição de uso ou que não dispõem de papel higiênico nem sabão nem
água encanada — banheiros que, em alguns casos, não tem nem uma porta
para garantir o mínimo de privacidade para os cuidados de higiene. A
questão racial também é muito importante. Pelos dados do relatório, a
gente observa que a chance de uma menina negra morar em um domicílio que
não tem banheiro é três vezes maior do que a de uma menina branca; que o
percentual de meninas da região Norte sem acesso a banheiro em suas
escolas chega a quase 8,4%; e que a chance relativa de uma menina da
área rural não ter banheiro em casa é 15 vezes maior do que para uma
menina da área urbana. Então, quem é mais afetado?
É justamente
quem está nessas condições: regiões Norte e Nordeste, área rural e em
condições de extrema pobreza; e também mulheres em situação de rua ou
que estão em casa sem o mínimo de infraestrutura de saneamento básico.
Não é possível pensar direitos menstruais sem considerar essas múltiplas
realidades do Brasil.
A gente tem visto relatos de pessoas que,
sem conseguir comprar opções higiênicas, usam papel higiênico, papelão,
sacolas plásticas e até jornal sobre a calcinha. O que
significa menstruar nessas condições?
Para
quem não está vivendo essa realidade, pode parecer que a menstruação
tem outro peso. Para quem está numa situação de acesso facilitado em
termos de direito menstrual, pode ser difícil pensar que outras mulheres
e meninas não vivem o mesmo. Imagine que a maioria das meninas
brasileiras menstrua pela primeira vez entre 10 e 14 anos. A partir
dessa idade, isso se torna algo corriqueiro, vivenciado ao longo da vida
por muitos anos, e mensalmente. Mas se você pensar no contexto de
muitos lares que vivem em situação de insegurança alimentar, esses itens
de higiene vão ficar em segundo plano. Ora, você não tem nem o básico
de alimentação, o que dirá do acesso a itens de higiene! Então, esses
métodos acabam sendo utilizados como formas alternativas, mas nem sempre
garantem uma higiene de fato ou algo que possa ser promotor de saúde. A
saúde fica muitas vezes comprometida. Você imagina o que é usar miolo
de pão, como a gente tem ouvido em relatos de mulheres em privação de
liberdade! Isso tudo faz com que a menstruação seja vivenciada sem
dignidade, o que inclusive compromete aspectos de saúde, que incluem a
saúde sexual e reprodutiva.
Que problemas de saúde podem ser acarretados pela pobreza menstrual?
A
gente pode pensar em infecções, alergias e até em saúde em um sentido
mais amplo e ainda em questões relacionadas à saúde mental. A
menstruação vivida nessas condições de pobreza e não-dignidade traz
simultaneamente uma sensação de desconforto para meninas e mulheres, uma
sensação de que seu corpo é inadequado ou de que seu corpo como mulher é
sujo. Isso pode acarretar problemas de autoestima e levar a um
sofrimento psíquico. Além disso, se você tem que frequentar a escola e
não tem essas condições mínimas de cuidados menstruais, isso faz com que
você se ausente da escola ou que a frequência ou o aprendizado escolar
fiquem comprometidos [veja relato aqui]. E se o bem-estar corporal fica
comprometido, isso pode trazer consequências não só físicas, mas também
para a saúde psíquica. Também pode trazer consequências para a vida
adulta relacionadas à própria educação. Imagine todos os dias em que as
meninas precisam se ausentar em função da menstruação ou imagine a má
qualidade de uma aula vivenciada por essas meninas em condições
inadequadas. Isso também gera prejuízo para o aprendizado.
Apesar de ser uma questão de saúde pública, a menstruação muitas vezes é tratada como um tabu. Por quê?
E
olha que esse é um processo orgânico, corporal, biológico, natural, que
acontece na maioria dos corpos das mulheres e meninas... Mas é verdade,
curiosamente, a menstruação ainda tem uma carga em termos de simbologia
social que carrega mitos, tabus e inclusive estigmas. Mas ela precisa
ser encarada como um processo natural, com naturalidade, com
informações. Precisa ser discutida abertamente na escola — não só por
meninas, mas também por meninos. Esses tabus que envolvem a menstruação
são uma consequência das discriminações de gênero, mas também reforçam
essas discriminações e os estigmas associados ao corpo feminino. Então,
essa é uma questão que acaba acentuando as desigualdades de gênero, as
desigualdades sobre corpo, a discriminação, mas também traz
consequências, como já falei, para a educação e às vezes até interferem
no ir e vir dessas meninas e mulheres — se elas não têm segurança de que
não terão surpresas, por exemplo, no transporte público, se elas não
contam com um item que vai conter a menstruação de uma forma segura, até
o trânsito delas pela cidade sofre interferências. São direitos básicos
que acabam comprometidos.
O que precisa ser levado em conta no debate sobre pobreza menstrual?
O
que a gente tem colocado, como eu disse antes, é que são vários os
fatores ligados à pobreza menstrual. Então, a falta de acesso a produtos
de higiene menstrual tem um impacto econômico, sim, já que mensalmente
você precisar fazer a aquisição desses itens. Mas isso não pode ser
pensado de forma isolada. Por exemplo, é preciso levar em consideração a
dificuldade de acesso à água — apesar de o coletor menstrual ser mais
sustentável, ele também requer que você tenha acesso à água, então, pode
ser que naquele contexto específico o coletor não seja o mais adequado.
Mas o debate sobre a pobreza menstrual inclui também o próprio acesso a
medicamentos para administrar problemas menstruais como cólicas ou o
acesso a serviços médicos para que elas possam verificar se há algo
irregular ou ainda o acesso a informações sobre saúde menstrual,
autoconhecimento sobre corpo e ciclos menstruais, assim, ao básico do
básico, para que as meninas cheguem à primeira menstruação com todas as
informações necessárias para entender o que significa.
Por que é necessário dar cada vez mais visibilidade ao assunto?
Porque
essa é uma questão que está muito além de uma questão individual ou que
diz respeito àquela menina unicamente. É uma questão que diz respeito
às famílias, às escolas, às unidades de saúde e à sociedade como um
todo. A gente precisa discutir cada vez mais e mais abertamente esses
temas. Isso significa que a gente deveria ter, sim, uma defesa da
educação integral em sexualidade.
É justamente nessa educação em saúde e sexualidade que vai se falar de corpo, da primeira menstruação e de tantos outros assuntos relevantes. A gente precisa que as escolas coloquem abertamente os direitos menstruais como algo relevante, que a mídia assuma isso, que o poder público assuma isso. É muito importante que a gente tenha a distribuição gratuita de itens de higiene menstrual. Mas numa perspectiva macro, a gente também precisa facilitar e promover o próprio acesso ao saneamento básico, à saúde, à moradia digna.
Recentemente,
o presidente Jair Bolsonaro vetou trechos de um projeto de lei que
previa a distribuição gratuita de absorventes em escolas públicas. No
Brasil como vêm funcionando as políticas públicas em relação ao assunto?
A
gente tem vários projetos que foram apresentados em nível local,
estadual e municipal, além de outros tantos que foram colocados em pauta
em nível nacional, dentro do Congresso. No geral, as propostas
legislativas têm trazido uma ênfase na garantia de acesso a itens
básicos para perfis específicos. Você tem uma priorização de meninas e
mulheres em situações extremas de vulnerabilidade social e com
dificuldades de acesso a itens básicos de higiene, geralmente mulheres
em situação de rua, meninas em extrema pobreza ou mulheres que estejam
em situação de privação de liberdade. Então, sem dúvida, isso faz parte
das ações para promover a garantia de direitos de meninas e mulheres no
Brasil, país tão marcado por desigualdades e inclusive por dificuldade
de garantias de direitos básicos como são os direitos menstruais.
Na
ausência de políticas públicas, são muitas as iniciativas da sociedade
civil que vêm propondo a distribuição de itens de higiene menstrual.
Como elas podem fazer a diferença na vida de mulheres afetadas pela
pobreza menstrual?
Esses espaços são muito importantes, sem dúvida.
Acho que a gente precisa valorizar, incentivar e motivar que essas
iniciativas também ocorram. E como a pobreza menstrual vai além do
acesso aos itens de higiene menstrual, ela também envolve acesso à
informação, essas ações ajudam a dar visibilidade ao tema, colocam o
assunto no espaço público e, quando esse tema começa a ser mais
debatido, ele também colabora e muito com a redução da pobreza
menstrual. Só que, claro, a gente precisa ter em mente uma escala mais
ampla, que abarque os diferentes territórios no país, então, a gente
precisa, sim, ir para o âmbito de políticas públicas. O ideal seria que a
gente tivesse tanto ações pontuais como essas, que podem ser muito
efetivas, quanto garantir uma escala ampla. São ações complementares.
O que mais lhe impactou no relatório publicado pelo Unfpa e Unicef?
Acho
que passa pela noção da dimensão do problema da pobreza menstrual. Já
havia outras iniciativas nesse sentido, mas esse relatório traz dados
muito precisos e evidentes. Ao olhar para os dados, você percebe que não
se trata de uma realidade pontual de um grupo pequeno, mas vivenciada
por uma parcela considerável de meninas e mulheres no país. Acho que a
grande contribuição desse relatório é justamente nos trazer uma
fotografia da quantidade de pessoas impactadas pela pobreza menstrual,
algo que a gente já tinha intuitivamente, mas que é muito diferente de
quando você olha para os dados. Tudo isso nos faz deixar de ver como uma
experiência individual para percebê-la como algo muito mais frequente e
vivenciado por uma quantidade maior em termos estatísticos do que a
gente poderia intuitivamente cogitar.
Por último, como enfrentar a nossa pobreza menstrual?
Bom,
a gente precisa enfrentar, sem dúvida, com política pública, tanto
aquelas que garantam a permanência das meninas na escola — e aí vai
desde a garantia da distribuição gratuita de itens de higiene menstrual
até melhorias de banheiros —, mas que também passem por uma melhor
promoção da informação e da educação em saúde, em corpo e sexualidade.
Isso, no âmbito escolar. Para além dele, a gente precisa também da
distribuição gratuita de itens de higiene menstrual para a população em
vulnerabilidade social em abrigos, unidades de saúde, ou seja, que isso
possa ser algo viabilizado pelo setor público para mulheres que estão em
condições de mais necessidade, mas que a gente também tenha política
pública no sentido de melhoria de infraestrutura e de moradia. A gente
precisa pensar que a pobreza menstrual é uma questão econômica, mas
também social e política. E, para além das políticas públicas, é preciso
pensar em transformações culturais, em desconstruir tabus e mitos para
que o tema possa ser abordado de forma fácil, com informações precisas e
embasamento científico, desconstruir essa carga e esse estigma que
dificulta o acesso à informação por parte das meninas e que muitas vezes
acaba fazendo com que a menstruação seja vivida de uma forma pouco
saudável, trazendo um sofrimento psíquico desnecessário. Então, acho que
essa transformação cultural também precisa acontecer e que a gente
possa tratar esse tema, cada vez com mais naturalidade e com informações
necessárias, nos demais espaços, na própria mídia, inclusive. É preciso
dar visibilidade a temas como esse, ainda mais agora com tantos
desafios e resistências.
Mas você vai usar papel higiênico?!"
Na
Escola Municipal Bahia, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro,
estudam 575 alunos — 277 são meninas. “Eu já tive aluna que todo mês
faltava dois ou três dias. Quando falava com ela para saber se estava
doente ou com algum problema, era comum ouvir que havia faltado porque
estava menstruada”, conta à Radis a diretora adjunta Vânia Carla
Azevedo. “Ela nunca me disse abertamente se isso acontecia por falta de
dinheiro para o absorvente, mas o fato é que ela não vinha à escola”.
Tão comum quanto as ausências durante o ciclo menstrual eram os pedidos
por absorventes. “Algumas vinham me pedir papel higiênico para evitar
que o fluxo vazasse. Eu perguntava, admirada: ‘Mas você vai usar papel
higiênico?!’ e elas respondiam que sim, já estavam acostumadas”. Vânia
também notava alguns constrangimentos. “Muitas permaneciam na sala até
muito depois dos outros alunos dispersarem e só então saíam, de casaco
amarrado na cintura”.
Esses episódios aconteciam com tanta frequência
que a direção da escola decidiu disponibilizar por conta própria
absorventes para as alunas. “A gente compra com nosso próprio dinheiro.
Eu, o diretor e a coordenadora nos revezamos para abastecer a farmácia
da escola e garantir que elas tenham à mão sempre que precisarem”, diz
Vânia, para quem a distribuição de absorventes deveria ser política
pública. Na opinião da diretora adjunta, isso ajudaria a combater a
evasão escolar e, quem sabe, a naturalizar um assunto que, não deveria,
mas ainda é um tabu no ambiente escolar. “Sempre que precisam, as alunas
disfarçam, pedem para sair da sala para beber água e vêm aqui no
cantinho falar baixinho com a gente”, conta. “Mas se não tiver nenhuma
mulher com quem elas possam falar, provavelmente vão embora sem resolver
o problema”.
Vânia agora espera que a Escola Bahia seja beneficiada
pelo programa Livres para Estudar, anunciado (13/10) pela prefeitura do
Rio, logo após a repercussão negativa em torno dos vetos do presidente
Jair Bolsonaro, e que prevê a distribuição de 8 milhões de absorventes
por ano para estudantes da rede municipal. Outros estados e municípios
do país já adotam medidas parecidas.
Fonte: Radis
Entrevistas