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Natália Pasternak: “É preciso manter os pés no chão"

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Publicado em:15/10/2020
A pressa pode ser inimiga da boa ciência. A pandemia de covid-19 trouxe consigo pressões para a adoção de tratamentos e medicamentos sem comprovação científica. O mesmo acontece em relação às expectativas em torno das vacinas, como se fossem soluções “mágicas” para o retorno à normalidade. “É preciso ter transparência e cuidado na comunicação, para não passar uma falsa impressão de que a vacina está logo ali na esquina”, ressalta Natália Pasternak, doutora em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC). À frente da instituição fundada, em 2018, para defender o uso de evidências científicas nas políticas públicas, a pesquisadora conversou com Radis sobre os perigos do negacionismo da ciência, da pressão em torno de resultados e da chamada infodemia — a proliferação de notícias falsas.

As pressões e o excesso de expectativas podem atrapalhar a ciência no desenvolvimento de uma vacina?

Podem sim. É preciso manter os pés no chão em relação às vacinas. Certamente teremos algumas aprovadas até o final do ano, mas não sabemos qual será a eficiência delas, se serão igualmente eficazes para jovens, crianças e idosos. Existe também um tempo para implementação das campanhas de vacinação, para produção, envase. Por isso, é preciso ter transparência e cuidado na comunicação, para não passar uma falsa impressão de que a vacina está logo ali na esquina, e que após a aprovação teremos uma data mágica em que todos estaremos protegidos. O processo todo, até termos os efeitos da proteção das diversas vacinas, leva tempo.

Até onde é possível “acelerar” a ciência sem comprometer questões como eficácia e segurança?

É possível acelerar e combinar etapas, como tem sido feito para as vacinas de covid-19, mas não podemos pular ou queimar etapas. A segurança das vacinas é avaliada nas fases 1 e 2, e segue sendo avaliada em um número maior de pessoas na fase 3. O desenvolvimento tecnológico em si não é demorado, o que leva tempo é o processo de testes clínicos. Precisamos garantir que a vacina é segura, que os efeitos colaterais observados estão dentro do tolerável, que a vacina induz marcadores de imunidade que são correlatos de proteção e, finalmente, precisamos checar a proteção em si, na fase 3, em milhares de pessoas. Isso requer vacinar grupos grandes de pessoas, comparar o grupo vacinado com um grupo placebo, e acompanhar essas pessoas por alguns meses, até obter um bom poder estatístico que permita concluir se a vacina protege ou não. Por isso demora tanto.

Como o negacionismo da ciência e a produção de fakenews podem atrapalhar as estratégias de vacinação?

Apesar de o movimento antivacinas nunca ter sido muito forte no Brasil — dados do Datafolha indicam que 89% dos brasileiros tomariam uma vacina para covid-19 —, o negacionismo da ciência é crescente. Este negacionismo, aliado a um governo conservador de direita, já mostra sinais de preocupação, quando notícias que relacionam vacinas ao uso de fetos humanos abortados começam a circular. Uma comunicação transparente será necessária para combater essa infodemia, e não temos no momento nem sinais disso partir do governo federal e do Ministério da Saúde. Bem pelo contrário, são estes os maiores propagadores da desinformação.

Que perigos podem surgir com essa “pressa” e como uma possível politização da vacina pode atrapalhar as estratégias de imunização?

Os perigos de se registrar uma vacina ou medicamento não testados são vários. Primeiro, o risco de efeitos colaterais graves, que podem abalar a confiança em vacinas como um todo. O mesmo pode ocorrer mesmo que a vacina não faça mal para ninguém, mas simplesmente não funcione. Isso pode levar a população a uma ilusão de segurança, achando que está protegida porque afinal foi vacinada, quando na verdade, a vacina é ineficaz. As pessoas podem então relaxar as medidas de segurança e prevenção, colocando sua saúde e dos demais em risco. A politização da vacina e a busca pelo protagonismo político também são muito preocupantes, pois ignoram as questões técnico-científicas e transformam uma questão de saúde pública em ferramenta de populismo.

Que riscos e consequências sociais aparecem quando algo sem comprovação científica é adotado pelo Estado como política pública, com recursos públicos?

Consequências desastrosas. Além do gasto público com algo que não funciona, em detrimento do uso dos recursos já escassos para estratégias comprovadas e equipamentos e insumos necessários, cria-se uma ilusão de segurança na população, que acreditando que existe uma cura milagrosa, descumpre as medidas preventivas. Pior ainda, pode retardar a busca por atendimento médico adequado, e também induzir a automedicação.

O que podemos esperar da vacina para a covid-19?

Podemos esperar vacinas com uma boa eficiência, mas talvez não a ideal. Vacinas com 50% de eficiência já podem nos ajudar muito a diminuir a taxa de transmissão. As primeiras talvez não sejam as melhores vacinas, mas qualquer uma que seja capaz de diminuir a incidência de doença grave, reduzindo mortes e hospitalizações, já será muito bem-vinda. Garantir o acesso passa por ter um bom planejamento de produção, armazenamento, distribuição e campanhas de vacinação. Investimento na produção local será essencial, e isso significa construção e ampliação das plantas vacinais.
Fonte: Entrevista da Radis

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