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Maria Helena Machado diz que lei que oficializou agentes comunitários e de endemias como profissionais de saúde é 'histórica'

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Publicado em:25/01/2023
Por Barbara Souza

Foi publicada no Diário Oficial da União da última sexta-feira (20/1) a lei 14.536, de 2023, que regulamenta as profissões de agente comunitário de saúde e de agente de combate às endemias como profissionais de saúde. Os ACS e os ACE figuram entre os “trabalhadores invisíveis” da saúde, como aponta a pesquisadora da ENSP Maria Helena Machado. Cientista social que tem se dedicado a estudos sobre as condições de trabalho dos profissionais de saúde, nesta entrevista ao Informe ENSP, ela analisou as implicações da nova lei na realidade dos agentes comunitários e de combate às endemias. Maria Helena Machado afirmou que se trata de um “ato histórico”, mas ponderou ao dizer que “não há passe de mágica” na luta por dignidade e reconhecimento dos trabalhadores. Confira:

Foi sancionado na última sexta-feira o Projeto de Lei que ajusta a legislação e define que agentes comunitários de saúde (ACS) e agentes de combate às endemias (ACE) são profissionais de saúde. O que esta mudança representa, na prática, para esses profissionais?

Maria Helena Machado: Considero um fato histórico no âmbito do processo regulatório das profissões para o Sistema Único de Saúde. Um ato grandioso e importantíssimo que vai repercutir não só para as categorias ACS e ACE, mas para todo o conjunto de trabalhadores e trabalhadoras que até então não eram regulamentadas e reconhecidas suas atividades como de saúde. Na prática, passam a ter status de trabalhadores de saúde, o que significa ter cidadania na área, cidadania nas representações de negociação junto aos sindicatos, no Conselho Nacional de Saúde, nas políticas públicas de proteção social e até a empregabilidade. Eles passam a ser considerados de fato, parte da equipe de saúde multiprofissional, que constitui efetivamente o Sistema Único de Saúde. É um grande passo para a cidadania plena desses profissionais junto ao SUS. A pandemia mostrou com clareza essa discriminação para com os que ainda não têm o reconhecimento profissional: o acesso e direito aos Equipamentos de Proteção Individual (EPI), bem como também no processo vacinal, pois não tinham prioridade como os demais profissionais de saúde, sendo levados a acionar a Justiça. É um conjunto de questões que, a partir de agora, com a lei, tende a mudar. 

No governo anterior, o Ministério da Saúde propôs o veto integral à proposta. Mas, o novo governo adotou uma postura oposta. Que tipo de visão de mundo leva um governo ou um grupo ideológico a se opor à regulamentação dos ACS e dos ACE? Ou seja, o que justificou esse empecilho? E o contrário: com que ideias está alinhada a legislação recém-sancionada?

Uma pergunta que nos remete a questões dos direitos humanos, da democracia plena e do cuidado com a proteção e integridade do trabalhador. O mundo do trabalho é visto de forma diferente no governo Lula. Evidentemente, também no Ministério da Saúde. Os gestores hoje do Ministério Saúde sob o comando da ministra Nísia Trindade, expressam com clareza qual é o norte da pasta: o cuidado com a população, com a qualidade da assistência prestada e, consequentemente, com os profissionais que prestam essa assistência à saúde a população. Tudo isso de forma dialógica e democrática no âmbito do Conselho Nacional de Saúde. Os ACS e ACE são protagonistas desse movimento histórico, da perspectiva e do reconhecimento de que a saúde não é feita só por duas ou três profissões, mas sim por uma equipe multiprofissional na qual independe sua formação profissional, pouco importando se é nível superior, técnico, auxiliar ou de apoio. Todos eles, cada um no seu lugar, com sua expertise e capacidade técnica têm uma importância imensa. Eu diria, então, que a linha divisória é a democracia, é o diálogo, é a negociação e, principalmente, o reconhecimento social da importância dos trabalhadores no conjunto do Sistema Único de Saúde. 

A pandemia do novo coronavírus aprofundou as desigualdades, a exploração e o preconceito que recaem sobre milhões de trabalhadores, aos quais a senhora se refere como ‘invisíveis’ em pesquisa publicada ano passado. Como essa invisibilidade atinge os agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias?

A discussão da invisibilidade é muito importante. O Brasil tem hoje em torno de 4,5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras da saúde, sendo que cerca de 2 milhões estão na linha da invisibilidade social e profissional. São técnicos, auxiliares, pessoal de apoio que muitas vezes, não são considerados, nem na própria equipe e muto menos pela população em geral, como tal. O caso dos ACS e ACE é exemplar: eles. Eles vão às casas das pessoas, nas comunidades, nos bairros, transitam pelo país em todas as regiões e municípios, e nem por isso são reconhecidos como sendo da saúde. Como já mencionei, a discriminação e invisibilidade entre esses trabalhadores e trabalhadoras ficaram evidenciadas na pandemia. O conceito de saúde está equivocado e acanhado, precisamos discutir e mudar essa concepção para uma saúde mais ampla, inclusiva e dialógica. A Lei é o início desse processo. 

Uma mudança de legislação é o suficiente para tirar esses profissionais dessas condições? O que mais pode ser feito para que eles sejam de fato reconhecidos e valorizados?

Uma mudança na legislação é muito importante sim, mas não é suficiente para tirar os ACS e ACE da invisibilidade, dessa condição de ‘pré-cidadania’ que se encontram. Não é num passe de mágica. Um papel não faz mágica em relação ao cotidiano desses profissionais no processo de trabalho. Claro que tem uma força enorme, a força da lei. Mas eles vão ter que fazer valer essa lei, com representação nas instâncias de negociação do SUS, nas representações sindicais, nas conferências de saúde, no Conselho Nacional de Saúde, nos conselhos estaduais e municipais também, ou seja, em todas as instâncias da saúde. 

Além disso, é necessário um processo educativo de conscientização junto à população e aos próprios colegas de equipe. Só assim que vamos mudar essa realidade, mostrando que a valorização do trabalho deve ser inclusivo, que as pessoas passem a respeitar e valorizar esses trabalhadores e trabalhadoras tanto quanto valorizam o médico, o enfermeiro, o farmacêutico, por exemplo. 

Existem outras categorias de trabalhadores da saúde enfrentando situação semelhante de desvalorização e falta de prestígio na sociedade e, até mesmo, dentro do universo profissional em que convive, certo? Quais grupos profissionais a senhora citaria e como caracterizaria os desafios que enfrentam?

Sim, existe um volume grande de trabalhadores na linha da invisibilidade. A pesquisa “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil” relaciona mais de 60 ocupações de níveis técnico, médio, auxiliar e de apoio, que se mostraram para a sociedade com um valor extraordinário. No entanto, o dia-a-dia se mostrou uma faceta de insensibilidade social tanto no ambiente de trabalho propriamente dito como na sociedade em geral, negando direitos sociais básicos: acesso aos EPIs e vacinação contra Covid-19 como prioridade. As denúncias são muitas e graves captadas pela nossa pesquisa.

Exemplos são muitos e emblemáticos, desde aquelas profissões que regulamentadas em lei, como por exemplo, os técnicos e auxiliares de saúde bucal, de enfermagem e de radiologia, não conseguiram sustentar a reivindicação dos direitos sociais a que têm direito legal. Elas são importantes, têm papel estratégico, mas não obtivem o reconhecimento social e profissional que deveriam ter. Em situação pior ainda estão os condutores de ambulância, os maqueiros, o pessoal da gestão, da administração dos estabelecimentos de saúde, por exemplo. Eles estão atuando em contato direto com a população. Soma-se aí todo o pessoal da área de higiene, limpeza e conservação, da cozinha, da recepção ao público também. A maioria deles não tem a atividade regulamentada, não tem sequer o reconhecimento de que precisam de cuidados especiais por trabalharem na saúde. O condutor de ambulância é um profissional que deve ser reconhecido como um profissional de saúde. Advogo o mesmo para os maqueiros que também são trabalhadores da saúde. 

Para finalizar nossa entrevista, gostaria que mencionar um contingente esquecido, abandonado e completamente invisibilizado pela sociedade, pelo mercado de trabalho e pela saúde: os sepultadores. Eles sepultaram nossos mais de 690 mil mortos pela COVID-19. Esses trabalhadores, também foram estudados por nós na pesquisa dos trabalhadores invisíveis. O estudo revela um trabalhador absolutamente desprotegido pela legislação, sem EPIs adequados e carentes dos direitos especiais no processo de vacinação. É preciso ampliar nosso universo, nossa mente e perceber que o conceito de saúde não pode estar circunscrito aos estabelecimentos de saúde. A saúde é muito mais ampla e diversa.

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