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Perfil dos autores de letalidade violenta no município do Rio de Janeiro é tema de estudo da ENSP

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Publicado em:30/11/2021

“O Rio de Janeiro é um município violento. Mais do que isso, tem fama de violento. Embora não seja o que apresenta as maiores taxas de homicídio do país, o temor de visitá-lo, de viver aqui e de estabelecer negócios em seu território o acompanha.” A afirmação vem do artigo Perfil dos autores de letalidade violenta no município do Rio de Janeiro, de Maria Cecília de Souza Minayo e Rodrigo Soares de Assis Mariz, da ENSP. Segundo eles, destacam-se os baixos percentuais de elucidação de autores dos crimes, além do preenchimento insuficiente dos registros de ocorrência (RO), o que dificulta uma análise mais fidedigna da dinâmica dos homicídios e contribui para a impunidade, um dos grandes problemas de segurança pública do RJ. Dos 1.255 crimes estudados pelos pesquisadores, apenas 20% tiveram os autores identificados.

Portanto, como ressalta o artigo, é preciso fugir da ideia da criminalização apenas de pessoas ditas desviantes. Pois, em contextos de intensa percepção de violência, encontra-se uma comunidade com laços frouxos e fragmentados, com dificuldades para concretizar objetivos comuns e resolver problemas como pobreza, deterioração territorial, excessiva mobilidade residencial e heterogeneidade étnica. “É como se o fatalismo marcasse uma espécie de identidade local criminógena, frequentemente assumida pela sociedade, repercutida pela mídia e usada politicamente pelas autoridades locais, que costumam tentar a mágica da transformação social por meio da polícia”, dizem os autores.

A hipótese que acompanhou esse estudo é a de que grupos de perfil semelhante se confrontam e se sacrificam por domínio de território, armas, poder e presença quando militam no mercado ilegal. No entanto, o estudo ressalta que eles não se matam apenas entre si. As mortes por motivos fúteis ou interpessoais (39% do total) demonstram a disseminação de um ambiente conflituoso na sociedade, fomentado por armas entre civis, responsáveis por 22% das mortes violentas. Os vários tipos de violência se potencializam mutuamente e ambientes conflagrados são espaços de vivências e práticas agressivas tanto no seio das famílias e nas relações conjugais como no trabalho, nas vizinhanças e na sociedade.

O artigo evidencia a pouca atenção dada ao item “ocupação” nos registros: 180 (46% do total) dos registros de ocorrência não a especificaram, o que não é apenas um problema da área de segurança pública, pois ocorre também nos sistemas de informação em saúde. Porém, apesar das falhas, foi possível observar que a maioria dos agressores para os quais a atividade foi anotada – tanto os que exerciam atividades no tráfico e na milícia como os que cometeram homicídio por roubo ou por razões interpessoais – são pessoas desempregadas ou que atuam na informalidade. Esse resultado sugere, de acordo com os autores, que é nesse grupo que a milícia e o tráfico de drogas recrutam seus trabalhadores, visto que as atividades que desenvolvem dificultam a participação simultânea em alguma ocupação produtiva legal.

Em relação à variável cor/raça, observa-se grande concentração no grupo de “pardos e pretos”, com 66% dos autores qualificados, contra 31% registrados como brancos e 3% sem informação, o que se assemelha ao perfil das vítimas. Ou seja, a população negra não figura nesse cenário de violência local somente como vítima. Ela está também, significativamente, representada como agressora, sobretudo pela participação ou proximidade com grupos envolvidos em atividades ilegais. “Essa é uma conclusão muito delicada porque pode sugerir uma criminalização dos negros, já tão vulnerabilizados na sociedade brasileira. Por isso, o dado precisa ser contextualizado historicamente, entendido a partir das condições de desigualdade e degradação social em que muitos vivem e das poucas oportunidades que encontram numa sociedade competitiva ao extremo.”

Os dados sobre escolaridade salientam que a maior concentração de autoria está nos grupos com menor grau de instrução, conforme o artigo demonstra. Para os autores, esse fato permite pelo menos duas reflexões: menor nível de escolaridade pode significar mais dificuldade de solução de conflitos de forma pacífica. Em segundo lugar, facilita a inserção dos agressores em grupos vinculados à milícia e ao tráfico de drogas. Ao contrário, encontrou-se vinculação direta entre aumento do grau de instrução com a redução da chance de ser qualificado como autor de homicídio. “A elevação dos níveis escolares e de formação profissional influi tanto na maior capacidade de resolução de conflitos como nas possibilidades de conseguir emprego formal.”

A existência de vínculo de proximidade anterior à agressão causadora da morte também é um ponto forte do estudo. Por meio de uma variável específica, demonstrou-se que 64% dos autores qualificados nas três categorias de crime já possuíam algum tipo de relação com suas vítimas, seja vínculo interpessoal ou em decorrência de atividade criminosa continuada na milícia e no tráfico de drogas. No caso dos laços pessoais, o percentual foi de 39%, incluindo familiares (6%), conhecidos (24%) e cônjuges (9%). O que mostra um adensamento dos crimes em determinados espaços sociais, uma espécie de aculturação pela violência, e neles, um ambiente intensamente conflituoso.

As constatações do estudo, esclarecem os autores,  não comungam com a ideia de determinismo social, seja em relação aos indivíduos ou ao município. “Embora sejam reais as condições adversas da grande maioria das pessoas que entram para grupos criminosos, o cotidiano carioca está repleto de exemplos de indivíduos pobres, que moram em áreas dominadas por traficantes e milícias, que estudam, trabalham e conseguem se projetar.”

De forma geral, acrescentam os pesquisadores, é possível dizer que autores e vítimas não são necessariamente vinculados de modo prévio à criminalidade, ao tráfico de drogas e à milícia. Mas, essas atividades têm grande peso nos resultados verificados pelo estudo, em virtude dos recursos de coerção e legitimação que traficantes e milicianos detêm. “Na convivência de parte da população em ambientes degradados socialmente e carentes de oportunidades sociais, costuma predominar uma forma de comunicação violenta que contribui para que situações de desavenças ou diferenças interpessoais culminem em homicídio.”

Outro ponto comentado pelo artigo é a influência do ambiente externo sobre o sistema social. “Os efeitos das políticas macroeconômicas e macrossociais influenciam as taxas de criminalidade e de informalidade em localidades violentas. Existe evidência empírica de que o desinvestimento em determinado lugar (caso do Rio de Janeiro) redunda em aumento de desempregados e pobres, instabilidade demográfica, incremento de residências precárias e ocupações informais.”  Cria-se um círculo vicioso, dizem os autores do estudo: fogem as oportunidades econômicas e de turismo e cresce o isolamento territorial e social dos moradores.

Por fim, o artigo defende ser importante refletir sobre o papel das intervenções sociais para provocar mudanças na redução das taxas de homicídios. “Não basta prender os agressores. A história mundial está repleta de exemplos do que dá certo. Há casos de sucesso no Brasil também. Um dos mais consistentes é a intervenção do Programa Fica Vivo, do estado de Minas Gerais, combinando ações preventivas e repressivas em áreas com alta concentração de homicídios. Esse programa inclui participação comunitária e suporte social para solução das questões locais e foco nos jovens tanto para ações sociais como para ações repressivas por meio do sistema policial e judicial.” Conforme o artigo, o Fica Vivo conseguiu reduzir a criminalidade e os homicídios em todas as seis áreas onde foi implementado, demonstrando que a condição para superação de um ambiente de violência depende do investimento em propostas de cunho social e político e precisam ser personalizadas, combinadas com ações repressivas por parte do Estado. O Rio de Janeiro precisa investir corretamente, alertam os pesquisadores.

Leia o artigo na íntegra, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva, aqui.


Foto capa: Revista Pesquisa Fapesp


Fonte: Artigo da revista Ciência e Saúde Coletiva
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