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Olimpíada na pandemia: pesquisadores alertam sobre riscos num cenário de incertezas

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Publicado em:05/08/2021
Filipe Leonel

Até domingo, 8 de agosto, mais de 11 mil atletas, de 204 países, passarão por Tóquio, no Japão, para disputa dos Jogos Olímpicos. Apesar da rigidez nos protocolos, a realização do maior evento esportivo do planeta ainda é considerada um risco para especialistas de diversos campos da Saúde Pública. A concentração de milhares de pessoas, provenientes de países em diferentes estágios da pandemia, a desigualdade no acesso à vacina, o risco do surgimento e propagação de novas variantes e a ameaça para aqueles que estão fora da bolha de proteção dos organizadores são aspectos que preocupam a comunidade científica em um cenário de vulnerabilidade de toda a população mundial.


Em abril deste ano, reportagem publicada pela Agência Brasil – com base na pesquisa da agência de notícias Kyodo News – revelou que mais de 70% do povo japonês desejava o adiamento ou até mesmo o cancelamento da Olimpíada de Tóquio enquanto a pandemia do novo coronavírus se alastrasse. A preocupação da população com a possível alta se confirmou na última quinta-feira (29/7), com o registro recorde de casos de Covid-19 (quase 10 mil novos casos confirmados). A capital Tóquio, sede dos jogos, também registrou recorde de infectados pelo terceiro dia seguido, com 3.865 infecções, uma alta de 23,5% em relação aos 3.177 casos do dia anterior.
 
A opinião da população faz coro ao alerta da ciência. Segundo a OMS, as evidências disponíveis atualmente apontam que o vírus causador da Covid-19 pode se espalhar pelo contato indireto (por meio de superfícies ou objetos contaminados), ou direto com pessoas infectadas por secreções como saliva e secreções respiratórias ou de suas gotículas respiratórias, que são expelidas quando uma pessoa tosse, espirra, fala ou canta. Além disso, recentemente, a transmissão aérea vem sendo cada vez mais enfatizada. Por isso, é importante a manutenção de ambientes ventilados, do distanciamento físico e o uso de máscaras para proteção.
 
A disseminação mundial de uma nova doença e as medidas preventivas
 
Especialista na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Bioética, o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) Sérgio Rego chama a atenção para o risco que a movimentação das pessoas tende a provocar em termos de transmissão do vírus. Não por acaso, esse é um dos motivos que levam a OMS decretar uma emergência de saúde pública de importância internacional. “É preciso maior vigilância nas fronteiras, ou seja, controlar a possibilidade de espalhar a enfermidade. A principal questão ao realizar um evento desse porte é aumentar o risco da transmissão. Até porque várias novas cepas estão surgindo, e o evento intensifica a movimentação das pessoas”, lembrou.
 
Na opinião da pesquisadora Adelyne Mendes Pereira, que vem se debruçando no cenário internacional e nas respostas dos países para o enfrentamento da Covid-19, neste momento, a realização de qualquer grande evento, por si só, já é um risco. Isso porque, segundo ela, ainda existem incertezas sobre a pandemia, fatores contextuais e individuais podem gerar variações na transmissibilidade, curso da doença e sequelas, o que torna muito complexa a tarefa de “realizar um evento seguro”, como o Comitê Olímpico Internacional (COI) está se propondo. Além disso, o atual estágio da pandemia está marcado pelo aparecimento de novas variantes e por ritmos de vacinação muito desiguais entre os países das diferentes regiões do mundo.
 
“Os jogos olímpicos são um evento de grandes proporções e reunirão milhares de atletas de todo o mundo. Se houver um surto de Covid-19 entre os atletas, o risco será alto para eles e para todos os envolvidos (trabalhadores da Vila Olímpica, por exemplo, e suas famílias)”, observou.
 
A preocupação com a possibilidade de os Jogos Olímpicos se tornarem um evento propagador do vírus fez o infectologista André Périssé (ENSP/Fiocruz) se recordar da Rio 2016. Naquela ocasião, mais de 150 cientistas enviaram carta aberta à Organização Mundial da Saúde (OMS) instando-a a “reconsiderar” sua posição e assumir a postura “ética” de recomendar o adiamento ou a mudança de local dos Jogos Olímpicos previstos para agosto no Rio de Janeiro devido ao Zika vírus.
 
“Os Jogos Olímpicos ocorrem por duas semanas, e é esse o período de disseminação da Covid-19. Se compararmos, o atual potencial de disseminação é infinitamente maior do que aquilo que pensávamos para o Zika em 2016, e acabou não acontecendo. O risco de exposição também é muito maior até para a população do Japão, pois o país está recebendo pessoas do mundo inteiro, de regiões com diferentes níveis de contaminação, e aglomerações. É um risco realizar um grande evento no momento em que a pandemia está fora de controle em vários lugares do mundo e com uma vacinação desigual”.
 
Périssé, que faz parte do Grupo de Trabalho que discute o retorno presencial das atividades Escolares no Rio de Janeiro, completa. “A Covid-19 voou com os passageiros. Foi de um canto ao outro do mundo por meio do transporte aéreo. Não existe lugar isolado ou 100% seguro enquanto tivermos locais fora de controle. E a vacinação é a única forma para conter isso. Em relação ao retorno das atividades escolares, dizemos que não é possível ter um retorno 100% seguro. Temos algumas medidas que podem reduzir o impacto da doença. E estamos falamos de locais pequenos, não eventos de massa”, concluiu.
 
As populações vulneráveis
 
A desigualdade que paira sobre os países não só no acesso às vacinas e medicamentos, mas também no âmbito esportivo foram questionados por Sergio Rego. “Neste momento, em particular, temos uma parte da população mundial vacinada e protegida, mas há um enorme contingente, exatamente aqueles mais pobres e incapazes de se proteger, sem acesso a essas tecnologias. E são eles que estarão mais expostos ao risco de mais uma onda por outras cepas. As próprias desigualdades nas performances esportivas nas olimpíadas são um reflexo do desequilíbrio e da falta de acesso à alimentação, à capacidade de investimento no esporte. Apesar de todo aporte para realização da competição, não se justifica, do ponto de vista ético, a realização dos Jogos. Até porque o país sede não está exatamente livre da pandemia. Acho que foi muito pouco profissional em termos de preocupação com a saúde das populações.” 
 
 vulnerabilidade daqueles que estão fora da “bolha de proteção” instaurada pelo Comitê Olímpico Internacional chamou a atenção de pesquisadores que atuam na área do monitoramento epidemiológico de grandes empreendimentos. Luciano Toledo, que acompanhou durante anos o processo de implantação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), comparou as duas situações. Ele lembra que, no interior do empreendimento, estavam asseguradas todas as condições para que o objetivo econômico fosse viabilizado. “Nas Olimpíadas, não é diferente. Estabelecem todas as condições de segurança sanitária para que o evento aconteça e não haja risco de ele ser ameaçado pelo surgimento de algum surto epidêmico. Minha preocupação, porém, é com aqueles que não participam diretamente, são meros espectadores, consumidores ou estão à margem dessa bolha. Para eles, a segurança sanitária não é dada da mesma forma”, relacionou.
 
O que está por vir?
 
A despeito do risco de transmissão no Japão, o pesquisador Paulo Sabroza, que atua nas áreas de epidemiologia, geografia da saúde e a vigilância em saúde, avalia que a crise gerada pelo novo coronavírus é apenas mais um exemplo das condições de vulnerabilidade que a própria sociedade construiu ao longo dos anos. Dessa forma, ele considera que os Jogos Olímpicos de Tóquio podem ser um experimento para décadas de crise que devem assolar o mundo num futuro muito próximo. Por isso, ele cobra uma mudança de postura da sociedade.
 
“O mundo não voltará a ser como era. E temos que nos preparar para operar, ter o mínimo de foco e tranquilidade em uma nova situação na qual teremos cada vez riscos. O coronavírus é um alerta, mas as consequências das mudanças climáticas, por exemplo, já estão acontecendo, não serão mais daqui a 20 ou 30 anos. Já sentimos o reflexo. Precisamos é pensar em uma sociedade preparada, resiliente. E acho que o Japão pode, sim, ser um teste diante do período de crise que deve se prolongar por décadas. Não será o fim da espécie humana, mas talvez o fim do nosso tipo de sociedade”, ponderou.
 
O pesquisador afirma que, ao longo de toda a história, as crises, além de produzirem extremo sofrimento, também proporcionaram transformações sociais gigantescas. “A cólera foi o principal determinante da saúde pública, do conceito de saúde pública, ou seja, da emergência desse conceito e de ações públicas coletivas sobre a saúde em áreas urbanas”, justificou. E completou enfatizando a necessidade de mudança.
 
“Temos que nos preparar porque as crises vão se acumular. Não trabalho com a ideia de crime de culpa, mas de responsabilidade. E fomos nós que produzimos as condições de vulnerabilidade para que isso aconteça. Todos nós, com nossos atos ou omissões, somos responsáveis por isso que estamos vivendo, e pior: por aquilo que nossos filhos e netos vão viver. Se quisermos que o mundo seja melhor, temos que fazer diferente. Fazer o mesmo não adianta, e tentar fazer do mesmo jeito é a pior coisa que pode acontecer achando que tudo voltará a ser como foi. Se isso ocorrer, as crises serão mais frequentes e mais graves. Todo o mundo alimenta a ilusão que isso vai passar e será como antes. Não vai voltar a ser como antes, e, se voltar, não é bom. É voltar a uma situação de extrema vulnerabilidade, que permitiu a uma pandemia letal se espalhar pelo mundo em questão de meses, e sem absolutamente o menor controle sobre nada”.

Foto Capa: Reuters/Kim Kyung-Hoon

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