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Duas décadas de Reforma Psiquiátrica no SUS: Amarante critica contrarreforma em curso

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Publicado em:15/04/2021
A aprovação da lei 10.216/2001 há 20 anos foi a culminância de um processo que ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica, cujas origens remontam ao fim da década de 1970, segundo o pesquisador da ENSP, Paulo Amarante. Segundo ele, um dos marcos iniciais desse movimento foi a constituição, em 1978, de um núcleo de saúde mental no interior do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) em meio aos debates sobre a Reforma Sanitária que culminariam na criação do SUS, dez anos depois. “Nós tivemos a sorte de receber o Franco Basaglia, médico italiano que iniciou o movimento da Psiquiatria Democrática, em 78, mesmo ano em que tinha sido aprovada na Itália a lei da Reforma Psiquiátrica". Em meio a uma contrarreforma em curso, Amarante opina que "a psiquiatria oficial está fortemente vinculada aos interesses de mercado, recebe altos financiamentos da indústria farmacêutica, e não está mais falando de saúde mental da população”. Confira a reportagem de André Antunes, da EPSJV.



André Antunes - EPSJV/Fiocruz

O filme ‘Bicho de Sete Cabeças’, de Laís Bodanzky, conta a história de Neto, jovem da cidade de Santos que é internado à força em um hospital psiquiátrico depois que o pai acha um cigarro de maconha em seu casaco. Ali o adolescente, interpretado por Rodrigo Santoro, seria submetido a uma série de abusos psicológicos e físicos que o levam a tentar o suicídio. Baseado no livro Canto dos Malditos, no qual o militante da Luta Antimanicomial Austregésilo Carrano denuncia os abusos que sofreu em hospitais psiquiátricos, o filme foi lançado em 2001.

Em abril daquele mesmo ano seria sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso a lei 10.216, cujo objetivo era justamente substituir o modelo assistencial hegemônico até então na saúde mental, com o fechamento gradual dos hospitais psiquiátricos e a abertura de novas estruturas de tratamento de base comunitária – que, em linha com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde, não se baseassem na segregação social como forma de tratamento.

“O modelo manicomial era baseado na violação de direitos humanos em diversos aspectos, tanto na perspectiva do cuidado e do tratamento, porque era baseado na segregação social, mas também violador de direitos  elementares, como a educação, a própria saúde para além da questão do transtorno mental. Eram ambientes propícios a práticas de torturas, maus tratos”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Leonardo Pinho.

“A lei 10.216 veio quebrar esse paradigma, alinhada com a própria Constituição brasileira, na qual o cuidado e o tratamento devem primar pelo direito das pessoas poderem, com as suas diferenças, com seus transtornos, viver em sociedade”.

Para o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Marco Aurélio Soares, as medidas de isolamento social adotadas em meio à pandemia contribuem para jogar luz sobre os equívocos de um modelo assistencial em saúde mental que se baseia no isolamento dos pacientes.

“A gente está sentindo na carne como esse afastamento afeta a saúde mental das pessoas. Então imagina você criar um dispositivo que isola as pessoas para tratar da saúde mental? Na verdade, ele acaba sendo muito mais iatrogênico, no sentido de produzir doença, do que realmente terapêutico. Isso já está provado”, argumenta Jorge.

Antecedentes

A aprovação da lei há 20 anos foi a culminância de um processo que ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica, cujas origens remontam ao final da década de 1970, segundo o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Paulo Amarante.

Segundo ele, um dos marcos iniciais desse movimento foi a constituição, em 1978, de um núcleo de saúde mental no interior do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) em meio aos debates sobre a Reforma Sanitária que culminariam na criação do SUS, dez anos depois.

“Nós tivemos a sorte de receber o Franco Basaglia, médico italiano que iniciou o movimento da Psiquiatria Democrática, em 78, mesmo ano em que tinha sido aprovada na Itália a lei da Reforma Psiquiátrica,  que ficou publicamente conhecida como Lei Basaglia, e fala explicitamente na extinção progressiva dos manicômios. Então isso criou um movimento”, afirma Amarante.

O pesquisador lembra que houve outros nomes importantes da psiquiatria que serviram de inspiração para os brasileiros, mas veio de Basaglia a ideia de uma Reforma Psiquiátrica ligada ao movimento social, aos sindicatos.

“Ele não acreditava que a reforma era uma questão técnica, mas um movimento social, político, de mudar a relação da sociedade com a loucura”, resume Amarante.

Outro marco importante foi a realização da 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1987, um ano após a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que lançou as bases do que seria o SUS. “Um dos temas dessa conferência foi a lei”, resgata Amarante.

O projeto de lei da Reforma Psiquiátrica seria apresentado à Câmara pelo então deputado Paulo Delgado, e aprovada naquele mesmo ano.

No Senado, no entanto, sua tramitação se estenderia por longos 12 anos.

“Os donos dos hospitais psiquiátricos ficaram assustados quando o David Capistrano, em 1989, como secretário de saúde de Santos, fechou a Clínica Anchieta, de propriedade de psiquiatras famosos, mas que tinha um histórico de alta mortalidade. Ele fechou e ainda desapropriou o imóvel, determinando que fosse destinado à reinserção social daquelas pessoas. E os donos de hospitais prontamente se organizaram”, conta o pesquisador da ENSP/Fiocruz.

De acordo com Paulo Amarante, o movimento não ficou paralisado junto com o PL. “Enquanto a lei não era aprovada, a gente fazia novos serviços, cooperativas, bloco de carnaval, grupo de música, grupo de teatro. A gente criava coisas, mobilizava. Era uma coisa que o próprio Basaglia dizia, que o mais importante da luta pela lei era o processo político que se cria em torno dela”.

Avanços

O aspecto de construção coletiva da lei que seria aprovada em 2001 é destacado pelo psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“Eu considero que a lei, quando foi aprovada, já tinha conseguido ser o instrumento para a construção de uma consciência coletiva sobre cuidado e liberdade. Ela já foi aprovada com uma legitimação na sociedade, por conta do debate. Todo mundo sabia o que estava sendo aprovado e ela foi intensamente comemorada”, avalia ele, para quem a lei representou inúmeros avanços.

Segundo Delgado, em 2000, 95% dos recursos federais para a saúde mental eram destinados para os hospitais psiquiátricos e apenas 5% para os serviços comunitários.

“Em 2005, portanto quatro anos depois da entrada em vigor da lei, esse financiamento se inverteu. A maior parte passou a ser destinado à rede extra hospitalar, como os Centros de Atenção Psicossocial [CAPS], residências terapêuticas, centros de convivência, e menos da metade destinado aos hospitais psiquiátricos”, contabiliza.

De acordo com o professor da UFRJ, o SUS chegou a 2015 com  75% dos recursos federais injetados  nos serviços comunitários e menos de 25% para leitos psiquiátricos hospitalares.

“A gente passou de 65 mil camas psiquiátricas convencionais, e chegamos a 2015 com cerca de 22 mil camas. Ainda tem muitos leitos psiquiátricos, mas é uma redução muito importante e feita de uma maneira muito regular, sem desassistência, porque foram criadas as residências terapêuticas”, avalia ele.

A expansão e a interiorização dos CAPS foi outra consequência da aprovação da lei. “Até 2001, o atendimento de saúde mental no Brasil era  centrado nas grandes cidades, principalmente nas capitais. Com a lei, nós saímos de cerca de 180 para 2,6 mil CAPS colocados em cidades do interior do país. Hoje, se você pegar o mapa do Brasil e olhar onde estão espetados os CAPS, eles estão interiorizados, eles estão no Nordeste,  na região Centro-Oeste. Então houve uma descentralização muito grande dos serviços, com impacto evidente”, diz Delgado.

Nas contas dele, como consequência, foram  incorporados mais de 25 mil novos trabalhadores à saúde mental no SUS.

O terceiro ponto destacado pelo psiquiatra é o avanço no campo dos direitos dos pacientes com transtornos mentais.

“A partir da lei foram introduzidas normas para os procedimentos de internação involuntária no Brasil, que até então não existiam. É um controle imperfeito? É. Mas, nesse momento, qualquer profissional que determinar a internação de um paciente contra sua vontade é obrigado a comunicar a Defensoria Pública ou o Ministério Público. Criou-se um fluxo até então inédito, no sentido de que não se pode tudo em termos de tratamento da doença mental”, afirma Delgado.

Contrarreforma avança

Apesar de todos os ganhos, no entanto, a lei da Reforma Psiquiátrica completa 20 anos em meio a um contexto de crescimento da influência política de atores sociais que defendem um retorno a algo muito parecido ao modelo manicomial.

“Está em curso a Contrarreforma Psiquiátrica. O objetivo dos atuais gestores é voltar àquele modelo antigo de internação como dispositivo central, e internação em serviços privados, de modo que também é um desfinanciamento do SUS para direcionar os recursos públicos à iniciativa privada”, analisa Leonardo Pinho, presidente da Abrasme.

E quais são essas instituições? Segundo ele, principalmente hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas – que, além dos usuários de álcool e outras drogas, público-alvo tradicional, agora recebem população de rua e adolescentes. Tudo isso com autorização do governo. “Estão, inclusive, ampliando o seu mercado”, denuncia ele.

E completa: “O repasse público de dinheiro cresce ano a ano para o setor privado, que quer ganhar dinheiro com leitos de internação, e diminui o ritmo de ampliação da Rede de Atenção Psicossocial, que são aqueles equipamentos do SUS. Então não é um simples retrocesso”.

Já Paulo Amarante avalia que o ataque aos princípios da Reforma Sanitária vêm no bojo de um ataque à democracia, ao Estado de direito e à Constituição Federal.

“A Reforma Psiquiátrica, e o SUS como um todo, são projetos de inclusão, que colocam a saúde como direito, dever do Estado. E nós estamos sofrendo um processo de destruição desses direitos, passando pelo direito à Previdência, à saúde, à educação, à participação social, com o desmonte dos conselhos. Não é uma disputa de modelo assistencial”, vincula.

Além disso, o pesquisador destaca os interesses de mercado, que falam mais alto nesse processo: “A psiquiatria oficial está fortemente vinculada aos interesses de mercado, recebe altos financiamentos da indústria farmacêutica, recebe altos financiamentos de outras áreas empresariais, e não está mais falando de saúde mental da população. Está falando de mercado. Isso para mim é muito claro”.

Pedro Delgado defende que o momento é de sustentação dos avanços obtidos pela lei 10.216. “Mesmo com todas as dificuldades por conta da pandemia e da precarização, os CAPS continuam funcionando em todo o Brasil. Nós temos todos os motivos para comemorar os 20 anos da lei – uma lei de direitos humanos e de mudança do modelo de atenção. Temos que celebrar a legitimidade que essa lei conquistou junto à população, e os avanços obtidos. Mas o cenário nesse momento é desfavorável, é um cenário de resistência”.

Foto: Agência Brasil

Fonte: EPSJV
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