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SUS: um cidadão sem voz – por Ronaldo Teodoro

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Publicado em:01/03/2021


Ronaldo Teodoro

Como é formado o julgamento público dos milhões de cidadãos e cidadãs acerca dos temas conflitantes na res pública? Como se forma a rejeição ou a aceitação coletiva aos partidos políticos e seus distintos programas, ou às reformas de Estado que aprofundam as opressões de raça, gênero e classe? É relativamente explícito que o corrente processo de destruição das instituições que conformam o sistema de proteção social brasileiro foi precedido por um intenso trabalho de saturação dos valores públicos que fundamentavam a própria democracia no país. Esse modo de formular o entendimento da crise democrática nacional evoca uma atenção cuidadosa aos processos e lugares de força que disputam a legitimação das escolhas públicas – repondo ao centro das preocupações políticas os termos de uma formação democrática da opinião pública. 

A reflexão acerca do sentido político da comunicação e o seu vínculo com a construção do direito à saúde nos reporta à hipótese de que a fragilidade da comunicação como direito público no Brasil compromete decisivamente a plena realização pública e universal da saúde perseguida pelo SUS. Como nos auxilia Venício Lima (2015), na vigência de um oligopólio mercantil controlando os meios de comunicação no Brasil perpetua-se uma cultura de silenciamento. O conceito de cultura do silencio, mobilizado pelo autor, resgata a reflexão de Paulo Freire (1981), no livro Ação Cultural para a Liberdade, que identifica no constrangimento da palavra uma verdadeira interdição política à transformação social, uma castração ao ato de “participar do processo histórico da sociedade”. No caso da saúde, a mobilização desse conceito nos ajuda pensar o sentido político do abafamento das vozes da Reforma Sanitária Brasileira.

Nos termos da teoria política republicana, a comunicação é um momento instituinte da vida pública. Para essa tradição interpretativa, a centralidade da questão se coloca de tal forma que a distribuição desigual do poder de comunicar perspectivas, ideias e concepções sobre o vir a ser do mundo se equipara à censura, e, pode-se dizer, define, em muitos casos, a própria distinção entre democracias e não democracias. Como momento fundacional do poder, a comunicação torna-se transversal e constitutiva dos momentos de construção, expansão e estabilidade das instituições, e não se separa da legitimação das decisões econômicas e da ação de grupos de interesse e das chamadas elites políticas, objeto privilegiado da ciência política liberal. A identificação dessa natureza da política nos remete diretamente à valorização da soberania popular, às condições de sua realização ou interdição, ao debate sobre a construção de culturas políticas e valores compartilhados. Por essa leitura, torna-se central a preocupação de que a comunicação seja um bem comum, um poder rigorosamente republicanizado, de domínio público. Sem o direito simétrico de falar e ser ouvido, o cidadão encontra-se ameaçado em todos os demais direitos, uma vez que visões particulares assumem o poder de comunicar a sua vontade como representação universal. Nessa condição, é o próprio “sentido da democracia que se torna incerto”, uma vez que a soberania popular se encontra cada vez mais desidratada e circunscrita ao direito universal ao voto (GUIMARÃES e AMORIM, 2012; p.14).

Na construção das democracias, a disputa política pela afirmação da educação como direito, da expansão dos regimes previdenciários ou da legitimação da saúde como questão não corporativa nunca deixou de ter a comunicação como elemento central – não obstante, esse tenha se tornado um verdadeiro ponto cego nas teorias democráticas (MIGUEL, 2000).

No levantamento do Media Ownership Monitor Brasil, foram identificados 26 grupos ou empresas de comunicação, que, juntos, concentram os 50 veículos de mídia mais importantes do país. Esse oligopólio mantém um denso sistema de propriedade cruzada de rádios, TVs, e jornais – além de manterem negócios econômico-financeiros em variados setores empresariais, que vão desde educação, sistema imobiliário, agropecuário e saúde suplementar. O levantamento indica, ainda, que os quatro maiores grupos de mídia do país concentram uma audiência exorbitante, que ultrapassa 70% na televisão aberta.

Entre os impactos políticos que esse domínio abusivamente mercantil impõe às lutas públicas pela saúde, destaca-se a limitação do alcance e disseminação de informações alternativas sobre o SUS, produzidas, seja, por estudiosos da área, pelos movimentos sociais da saúde, ou até mesmo quando proveniente do Ministério da Saúde. Pesquisas vêm identificando que o SUS é predominantemente enquadrado como um problema permanente, o que revela uma abordagem parcial e ativista dos meios de comunicação, contrariando a sua autoafirmação de um jornalismo profissional, objetivo, imparcial e neutro. Ao atuar regularmente na deslegimação do sistema público, o impacto político imediato da mídia consiste no bloqueio à formação de uma consciência sanitária junto à opinião pública.

Procurando compreender esse fenômeno, em um projeto de pesquisa sobre Saúde Pública e Comunicação: impasses do SUS à luz da formação democrática da opinião púbica[1], analisamos os resultados de seis pesquisas realizadas entre 2003 e 2019 que tiveram a opinião sobre a saúde no Brasil como objeto de estudo. Explorando esses dados, identificamos que existem diferenças significativas entre a percepção dos usuários diretos do SUS e dos usuários indiretos, bem como diferenças de avaliação entre os serviços utilizados no SUS (experiência) e a percepção em geral do sistema público. Em todas essas situações, foi possível identificar que, quanto menor o contato com o sistema, pior o julgamento das pessoas, situação tendencialmente presente nos setores de classe média que possuem planos de saúde. Esses achados apontam que quanto mais frágil a experiência direta com o SUS, maior a interferência da abordagem negativapresente na mídia, dificultado a legitimação pública do sistema. 

Como parte desses desafios à constituição de uma base social de apoio político ao SUS, uma pesquisa realizada em 2003, passados 15 anos da criação do SUS, realizada pelo Instituto de Pesquisa Vox Populi, encomendada pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), identificou que apenas 35% dos entrevistados souberam citar, espontaneamente, com precisão, o significado da sigla SUS e mais de 55% admitiram não conhecer. Em 2018, o Ibope identificou que apenas 24% dos entrevistados afirmaram conhecer a Estratégia Saúde da Família, percentual significativamente inferior aos 64,5% da população coberta por esses serviços naquele ano. Isso nos permite indagar qual a compreensão pública de que os serviços do Samu, a assistência prestada pelos hospitais de excelênciaou mesmo que as pesquisas da Fiocruz e do Instituto Butantan compõem um o Sistema Único de Saúde.Esse cenário nos aponta que o acesso a informações de interesse público sobre a dimensão e o funcionamento dos serviços e sistema de saúde segue sendo um problema.

Considerando o princípio político inspirador da inteligência sanitária brasileira, que vincula saúde à democracia, pode-se dizer que ao lado das teses do subfinanciamento e do hibridismo público-privado de interesses, a interdição à comunicação é um impasse estrutural à Reforma Sanitária. No contexto da pandemia, o aumento da visibilidade e do contato com sistema repôs o SUS, de forma inédita, no centro da vida pública brasileira. Pesquisa divulgada pela revista Piauí, em novembro de 2020, mostra que o SUS cresceu 11% na apreciação positiva dos brasileiros, quebrando o olhar histórico do SUS como eminentemente um problema.

O tratamento da comunicação como momento de fundação da política, não deixa mesmo de nos conectar com o pensamento de Giovanni Berlinguer, segundo o qual a formação de uma consciência pública sanitária era imprescindível à realização da própria Reforma. A concentração do controle da mídia brasileira reduz diretamente a diversidade na representação de distintos interesses da sociedade. Assim, se o poder de se comunicar é desigualmente distribuído na sociedade, a formação da opinião sobre as diferentes dimensões da vida, incluindo o sistema de saúde, fica prejudicado.

* Professor no Instituto de Medicina Social (IMS) da Uerj, integrante da equipe de pesquisa Futuros da Proteção Social, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz) e pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbrás/UFMG).

Referências:

AMORIM, A. P.; GUIMARÃES, J. A corrupção da opinião pública: Uma defesa republicana da liberdade de expressão. São Paulo, SP: Boitempo, 2013.

AMORIM, A.P. Quando “falta mais informação do que remédio”: uma discussão sobre o papel do Estado na produção de informação de interesse público para promoção da cidadania ativa.  36o. Encontro Anual da ANPOCS/ GT 21: Mídia, Política e Eleições, 2012. Disponível em: https://anpocs.com/index.php/encontros/papers/36-encontro-anual-da-anpocs/gt-2/gt21-2

BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A saúde na opinião dos brasileiros. Brasília: Conass, 2003.Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/opiniao_brasileiros1.pdf

FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.

LIMA, V. A. Cultura do silêncio e democracia no Brasil: ensaios em defesa da liberdade de expressão (1980-2015). Brasília: Ed. UnB, 2015.

MIGUEL, L. F. Um ponto cego nas teorias da democracia: os meios de comunicação. BIB –Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais. Rio de Janeiro, n.49, p.51-77, 2000.

IBGE. Retratos da sociedade brasileira: saúde pública. Confederação Nacional da Indústria. Ano 7, n. 44. – Brasília: CNI, 2018. Ano 7, n. 44 (jun. 2018) Saúde pública. Disponível em: https://bucket-gw-cni-static-cms-si.s3.amazonaws.com/media/filer_public/18/7f/187f1473-2603-4b06-a8a1-070486293e98/retratosdasociedadebrasileira_44_saude.pdf




Fonte: CEE/ENSP
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