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Desafios dos laboratórios públicos produtores de vacinas no Brasil é tema de artigo científico

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Publicado em:21/01/2021
A regulamentação para produtos biológicos vem evoluindo rapidamente, seja motivada por questões de qualidade com impacto na vida das pessoas, ou pelo advento de novas tecnologias, dizem pesquisadores da Fiocruz. “Fabricantes precisam criar estratégias para manter seus produtos e instalações adequadas e um sistema da qualidade atualizado e operante, e agências reguladoras têm o papel de garantir que os produtos em uso atendam aos critérios estabelecidos, sem comprometer o fornecimento de medicamentos para a população.”

Segundo o artigo A evolução regulatória e os desafios na perspectiva dos laboratórios públicos produtores de vacinas no Brasil, de autoria dos pesquisadores do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos/Fiocruz, Monique Collaço de Moraes Stávale, Maria da Luz Fernandes Leal e Marcos da Silva Freire, os benefícios diretos e indiretos obtidos por meio da imunização são indiscutíveis. Seja pela considerável redução da mortalidade, seja pela diminuição do número de hospitalizações decorrentes de doenças preveníveis, as vacinas vêm historicamente desempenhando um papel ímpar na saúde pública, confirmando que prevenir é melhor do que tratar.

Os primeiros registros de uso de vacinas com a introdução de versões atenuadas de vírus no corpo das pessoas estão relacionados ao combate à varíola no século X, na China, onde as cascas de feridas provocadas pela doença eram trituradas, e o pó era assoprado no rosto das pessoas.

Lembra o artigo, no entanto, foi em 1798 que o termo “vacina” surgiu pela primeira vez, por meio de uma experiência do médico e cientista inglês Edward Jenner. Ele ouviu relatos de que trabalhadores da zona rural não contraíam varíola, pois já haviam tido a varíola bovina, de menor impacto no corpo humano. Em 1881, quando o cientista francês Louis Pasteur começou a desenvolver a segunda geração de vacinas, voltadas a combater a cólera aviária e o carbúnculo, ele sugeriu o termo para batizar sua recém-criada substância, em homenagem a Jenner. A partir desse momento, as vacinas começaram a ser produzidas em massa e se tornaram essenciais para o combate de doenças. Com o aumento do volume da produção e a consequente ampliação do uso das vacinas ao redor do mundo, tornaram-se mais perceptíveis os problemas e eventos adversos causados por questões de qualidade e ausência de evidências clínicas das vacinas utilizadas.

Planos de ação começaram a se materializar na Conferência de Autoridades Reguladoras de Medicamentos da Organização Mundial da Saúde (ICDRA, sigla em inglês), em Paris, em 1989. Pouco tempo depois, as autoridades se aproximaram da Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas (IFPMA, sigla em inglês) para discutir uma iniciativa conjunta do setor regulador sobre harmonização internacional e, nesse contexto, foi criado o Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos para Uso Humano (ICH, sigla em inglês).

O ICH reúne as autoridades reguladoras e a indústria farmacêutica para discutir os aspectos científicos e técnicos do registro de medicamentos. Desde a sua criação, o ICH vem evoluindo gradualmente, e sua missão é alcançar uma maior harmonização mundial para garantir que medicamentos seguros, eficazes e de alta qualidade sejam desenvolvidos e registrados da maneira mais eficiente em termos de recursos.

No Brasil, o controle de drogas, alimentos, vacinas e outros produtos voltados para saúde era feito de forma inconsistente, e as análises eram realizadas pelo Laboratório Central de Controle de Drogas, Medicamentos e Alimentos (LCCDMA). Em 23 de setembro de 1976, finalmente o Brasil passou a dispor de um marco sanitário legal para medicamentos, por meio da criação da Lei nº 6.360 e do Decreto nº 79.094 publicado em 5 de janeiro de 1977. A partir da Lei nº 6.360, os estabelecimentos responsáveis por fabricação, importação, armazenamento, distribuição, entre outras funções, deveriam ser autorizados pelo Ministério da Saúde para o início da execução dessas atividades.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi criada somente em 26 de janeiro de 1999, por meio da Lei nº 9.782, com a finalidade de promover a proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e do consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados.

De acordo com o artigo, a Anvisa foi, então, estruturada para atender às necessidades da sociedade e do mercado, e iniciou o processo de construção do arcabouço regulatório sanitário, hoje, composto de centenas de documentos. O processo de qualificação do mercado farmacêutico iniciado com a criação da Anvisa passou então a ser constante e, a partir desse momento, para obterem o registro sanitário e consequentemente a autorização para distribuição e comercialização de medicamentos no país, os fabricantes precisam cumprir uma etapa de legalização que compreende basicamente as autorizações e licenças de funcionamento, o registro sanitário onde serão avaliados os dados de produção, qualidade, segurança e eficácia, além de uma etapa de inspeção ao local de fabricação, momento em que serão avaliadas as condições de boas práticas de fabricação (BPF).

Com exceção da etapa de legalização, em que não há mudanças significativas ao longo do tempo, os demais elementos que compõem as etapas que um fabricante deve cumprir antes de disponibilizar seu produto para uso passaram por significativas mudanças desde a criação da Anvisa e publicação do primeiro marco regulatório até a atualidade.

A regulamentação sanitária para registro de produtos biológicos

No que se refere à regulamentação sobre informações a serem apresentadas para solicitação de registro, apesar de a Anvisa ter sido criada em 1999, o primeiro marco regulatório para produtos biológicos foi publicado em 1994, por meio da Portaria nº 107 e, na ocasião, o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz (INCQS/Fiocruz) tornou-se um dos braços da Secretaria de Vigilância Sanitária, Ministério da Saúde, quando da implantação da Política Nacional de Saúde.

Em 2002, produtos biológicos ganham a primeira regulamentação emitida pela Anvisa: a RDC nº 80/2002. Essa Resolução distinguiu os produtos biológicos entre aquele que “contém molécula com atividade biológica conhecida” e aquele que “contém molécula com atividade biológica nova e tem proteção patentária”, sendo o segundo atribuído aos produtos biológicos novos no país. A RDC nº 80/2002 exigia que fossem apresentadas informações de produção e controle de qualidade simples e, excepcionalmente, o fabricante poderia solicitar à Agência a substituição dos estudos (fases II e III) por outros documentos comprobatórios de segurança e eficácia clínica.

Para solucionar o passivo de produtos que estavam no mercado, a Anvisa separou os produtos biológicos em três grupos conforme o período de solicitação do registro. Sendo assim, os produtos que estavam em análise na ocasião da publicação da RDC teriam um ano para se adequarem; os já registrados receberiam um prazo de dois anos para adequação, e as novas solicitações deveriam atender ao novo formato proposto imediatamente na solicitação do registro.

De modo relativamente rápido, três anos após a publicação da primeira regulamentação, em 2005, um novo marco para registro de medicamentos biológicos foi estabelecido pela RDC nº 315/2005. Essa RDC apresentava-se mais rigorosa que sua antecessora, e informações sobre a descrição da etapa do processo de fabricação, validação da cadeia de transporte e estudos clínicos de não inferioridade para os medicamentos biológicos não considerados novos passaram a ser mandatórios. Apesar de mais rigorosa, a RDC nº 315/2005 não orientava os fabricantes quanto às diferentes categorias de produtos biológicos.

Em 2010, a Anvisa publicou a RDC nº 55/2010 e instituiu um novo marco regulatório, além de novas definições para produtos biológicos e produtos biológicos novos: “XV - Produto Biológico: é o medicamento biológico não novo ou conhecido que contém molécula com atividade biológica conhecida, já registrado no Brasil e que tenha passado por todas as etapas de fabricação (formulação, envase, liofilização, rotulagem, embalagem, armazenamento, controle de qualidade e liberação do lote de produto biológico para uso). (...) XX - Produto Biológico Novo: é o medicamento biológico que contém molécula com atividade biológica conhecida, ainda não registrado no Brasil e que tenha passado por todas as etapas de fabricação (formulação, envase, liofilização, rotulagem, embalagem, armazenamento, controle de qualidade e liberação do lote de medicamento biológico novo para uso)”.

Essa resolução trouxe também necessidade de estudos de imunogenicidade, plano de farmacovigilância e de minimização de riscos. Outra inovação apresentada pela RDC em relação às anteriores foram as recomendações específicas aos diferentes tipos de medicamentos biológicos. Assim, vacinas, hemoderivados e produtos de origem biotecnológicas receberam requerimentos diferenciados. Podemos dizer que a RDC nº 55/2010 foi um avanço em termos de regulamentação e colocou o Brasil alinhado a práticas regulatórias internacionais.

Outro avanço na regulamentação de medicamentos biológicos foi a RDC nº 49/2011, que definiu as alterações pós-registro. Até então, os tais requerimentos eram tratados dentro da mesma regulamentação destinada a registro de produtos biológicos. A RDC nº 49/2011 categorizou as alterações em três níveis conforme a complexidade: as alterações de nível 1 não precisam de anuência prévia da Anvisa para implementação, já as de níveis 2 e 3 somente poderão ser implementadas após a aprovação da Agência.

A regulamentação sanitária para pesquisa clínica

Assim como as Boas Práticas de Fabricação e as informações sobre produção e controle de qualidade de um medicamento, as informações de segurança e eficácia são partes essenciais do pacote regulatório que será avaliado pela Agência para a concessão do registro sanitário.

No entanto, no caso da pesquisa clínica, existem duas grandes avaliações: a ética, que irá considerar se o protocolo proposto está em conformidade com a regulamentação nacional e internacional para a condução de pesquisa em seres humanos salvaguardando a segurança e o bem-estar dos participantes da pesquisa, e uma técnica-regulatória, voltada para questões sanitárias.

Assim como ocorreu para os demais elementos que formam o registro, a regulamentação sanitária para pesquisa clínica vem evoluindo gradativamente. Antes da criação da Anvisa, o documento que previa os requisitos sanitários para pesquisa no Brasil era a Portaria nº 911, de 12 de novembro de 1998. Trata-se de um documento publicado pela Secretaria de Vigilância Sanitária, com redação simples, em que estavam listados 11 documentos que deveriam ser apresentados nos pedidos de autorização para realização de pesquisa clínica com fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos novos. Apesar da superficialidade do documento, as questões éticas foram preservadas, uma vez que entre os requisitos listados estavam a necessidade de comprovação de que o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição onde seria realizada a pesquisa estava registrado e aprovado na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e do parecer consubstanciado do CEP da instituição onde seria realizada a pesquisa, aprovando o protocolo clínico e seu consentimento livre e esclarecido.

Após a sua criação, a primeira regulamentação de pesquisa clínica publicada pela Anvisa foi a RDC nº 219/2004, a qual estabeleceu o regulamento para elaboração de dossiê para a obtenção de Comunicado Especial (CE) para a realização de pesquisa clínica com medicamentos e produtos para a saúde. A RDC nº 219/2004 trouxe a necessidade de maior detalhamento dos documentos que deveriam ser apresentados na solicitação de pesquisa clínica, e colocou a possibilidade de a Agência realizar auditorias para verificação do grau de aderência às boas práticas clínicas e à legislação brasileira vigente.

Essa Resolução foi alvo de críticas ao estabelecer que, no caso de pesquisas multicêntricas, deveria ser solicitado um CE para cada centro participante, o que gerava demora para aprovação da pesquisa clínica.

Em junho de 2008, a Anvisa publicou a RDC nº 39/2008, passando a ser este o marco regulatório válido. A RDC nº 39/2008 buscou colocar a regulamentação brasileira nos moldes internacionais, pois permitiu que estudos que tivessem sido analisados e aprovados em países com agências regulatórias de referência tivessem um processo de análise simplificada. Na ocasião foram consideradas as seguintes: FDA - Estados Unidos; Agência Europeia de Medicamentos (EMA, sigla em inglês) - União Europeia; Agência de Aconselhamento Farmacêutico e Médico (PMDA, sigla em inglês) - Japão; e Saúde Canadá - Canadá.

A partir da RDC nº 39/2008, todos os estudos fases I, II, III e IV passaram a ter que apresentar comprovante de registro de pesquisa clínica na base de dados do Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBEC) ou comprovante de submissão. Para casos anteriores à publicação da resolução, foram aceitos comprovantes de registro das pesquisas na Plataforma Internacional de Registro de Ensaios Clínicos (ICTRP, sigla em inglês).

Outro ponto positivo da RDC nº 39/2008 foi a avaliação simultânea para todos os centros de pesquisa, com emissão de um único CE por estudo, o que tornou o processo de aprovação do estudo relativamente mais rápido.

Atualmente, o marco regulatório válido para pesquisa clínica é RDC nº 9/2015, publicada em 20 de fevereiro de 2015, a qual revogou a RDC nº 39/2008 e trouxe o conceito do Dossiê de Desenvolvimento Clínico do Medicamento (DDCM) e Dossiê Específico de Ensaio Clínico. Enquanto o segundo concentra as informações para cada estudo, como, por exemplo, o protocolo de pesquisa e comprovante de registro na base de dados, o primeiro, DDCM, será composto do conjunto de informações e documentos sobre todas as etapas de desenvolvimento do produto até o momento da submissão. Confirmando seu compromisso com o desenvolvimento da pesquisa no país, e entendendo que os longos prazos de análise prejudicam a credibilidade nacional e internacional da Agência, com a publicação da RDC nº 9/2015, a Anvisa buscou estabelecer estratégias para dar celeridade às avaliações dos processos, sem prejuízo à qualidade técnica.

Por todo esse histórico, os autores do artigo avaliam que a Anvisa é, hoje, reconhecidamente uma Agência forte, desempenhando um importante papel no fortalecimento da indústria farmacêutica brasileira. Produtos registrados no Brasil são considerados seguros e com qualidade garantida. A evolução do processo de inspeção da Agência é visível. Partiu de uma avaliação baseada em itens de verificação (check list) em 2003, por meio da RDC nº 134/2003, e alcançou, em 2019, uma inspeção baseada em riscos, em que o sistema da qualidade é avaliado de forma sistêmica. Mas os pesquisadores concluem que há desafios para os laboratórios públicos: além da atualização do parque industrial, devem também investir em capacitação e modernização da gestão.

Leia o artigo na íntegra, publicado em Cadernos de Saúde Pública ( v. 36, suplemento 2), aqui.



Fonte: Cadernos de Saúde Pública

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